No coração do centro de Belo Horizonte, praça Sete, Juliana Perdigão veio lançar seu segundo disco, Ó, na sexta-feira (12), sob o palco do Cine Theatro Brasil Vallourec. Em casa, portanto não haveria lugar mais propício para “chutar a famiglia mineira”, como conclama o Hino da Alcova Libertina, marchinha-êxtase que encerrou em alta a apresentação: “Os moralistas com sua sina querem fazer nos valer sua rotina”. Se como reivindica o senador Aécio Neves na sua tomada de posição pelo impeachment – Minas Gerais é o “núcleo duro” da economia nacional, Juliana Perdigão e os Kurva (João Antunes, Chicão, Moita, Pedro Gongom) são tão somente dinamite ou pluma leve que vem falar de outros tempos, de rompante contra o conservadorismo que hoje se instaura. Tocar na cidade natal é também regressar às raízes e recobrar as forças.
“Ó” vem atravessado pelos sentimentos de regresso à casa primeira e de mudança de ares, em Fantasma, entregue ao público com a participação especial de Romulo Fróes, diretor musical do disco. Também pelo trânsito entre cidades, BH que ficou, SP que chegou, em “21 Horas”, do parceiro LG Lopes, e “Depois que o 9 virou 6″, cuja letra foi encomendada ao artista plástico Clima (Eduardo Climachauska). Esta última trata justamente dessas permanências que carregamos, que nos carrega e constitui – na gravação de estúdio o arranjo em cordas é de Marcelo Cabral (Metá Metá, Passo Torto) – e, não por acaso, foi preservada no relicário de Ó para estrear aqui em Belo Horizonte, de todo coração, retribuição e agradecimentos à cidade formou Juliana em música, desde as rodas de choro aos amigos das antigas Makely Ka e Luiz Gabriel Lopes.
Por aí já se vê que Juliana Perdigão está rodeada de gente massa e que a mudança pra São Paulo marca sua inserção ao lado de músicos sem os quais a música brasileira de experimentação hoje é impensável, todos estes colaboradores do disco: Kiko Dinucci, Ava Rocha, Ná Ozzetti, Thiago França, Marcelo Cabral, Tulipa Ruiz, Negro Leo. E nada disso seria possível sem pedir a benção antropofágica ao Teatro Oficina, por onde Juliana teve uma passagem significativa, e ao mentor espiritual assim creditado Zé Celso Fela Kuti Rimbaud, que abre alas e fecha a roda, no disco, com a onomatopéica “AEIUO”, música originada no Oficina, ao que tudo indica como exercício vocal, corporal e orgásmico. No começo de julho, na Virada Cultural de BH, Juliana teve a oportunidade de fazer uma prévia do show, no Sesc Palladium, logo na sequência da peça Para dar um fim no Juízo de Deus, adaptada de Artaud pelo grupo de Zé Celso. Juliana Perdigão toma para si a performance e deixa baixar clarinete, clarone, flauta transversal, corpo todo em vibração e a força substancial que vem das raízes, da música mineira. Foi ótima surpresa durante o show uma versão para “Maria Três Filhos”, de Miton Nascimento e Fernando Brant.
Digo música de experimentação porque desde a estrutura fissurada do disco – entre indagações das “Dúvida 1″ e “Dúvida 2″, que são inserções de poesia urbana declamada às pressas, velocidade que atropela ela mesma, própria do cheirador e/ou do contemporâneo – às ambiências que vão se criando ao longo do show, é sempre de um profundo descompasso que se trata, seja entre o tempo dos vagabundos e o tempo dos moralistas, ou de um outrora que ainda perdura. E ainda o tempo destroçado, fora do tempo, da cantiga-em-abismo “Crack para ninar” de Kiko Dinucci, momento bastante especial do espetáculo, solo de Juliana com clarinete, clarone, pedais de distorção e voz pro verso suplicado: “Me dê a mão / Eu vou cair / Além do chão”. Pode ser anti-canção ou a boa e velha… “Ó” emerge da matriz em efervescência da música paulistana, do “núcleo duro” de Passo Torto/Metá Metá, melhor dizer, da gema. Nesse sentido é crucial a intervenção de Rômulo Fróes na direção musical, sua atenção para a complexidade musical esquizometropolitana, certa concepção do sensível urbano como saturado de ruído, o que se cristaliza nos álbuns Passo Elétrico (2013) e Barulho Feio (2014) e desdobra o mesmo vigor, distorção e mal contato, pero también ternura, em discos tão distintos como A mulher do fim do mundo (2015), de Elza Soares e Ó (2016). Com Rômulo a parceria já vinha do Álbum Desconhecido (2011), trabalho anterior de Juliana em que ela gravou o samba-canção “Cidade Baixa”, e agora foi a vez de Pierrot Lunático. Rômulo se precipitou sobre o palco sem ser anunciado e foi recebido com energia pelo público para cantar ao lado de Juliana a faixa 5, “Fantasma”.
No mais, dá pra dizer que foi um espetáculo de fôlego, que or Kurva tão que tão e esse show ainda vai render. Juliana fez questão de provocar aqueles que “acham que artista é tudo vagabundo” e consagrou o show a – por meio deste – confirmar essa sua posição: “é verdade”. Escrachando a caretice na parceria patrioticamente engajada com Negro Leo, Na frente da bandeira: “Estou bêbada / De resto sou imoral como todos meus contemporâneos / E a família nuclear é um terrível abalo psíquico pra uma pobre selvagem desse continente”. Ah sim, ela ainda mandou a singela A cocaína, “composta em 1926 em homenagem ao então promissor empresário Roberto Marinho” – reza a história da composição nessa versão refinada por Juliana, então quem somos nós, sem helicóptero nem triplex, pra desconfiar? Por fim, Juliana Perdigão se despediu do público “garrada” na simpática boneca inflável de boca aberta em ÓÓÓ que ilustra a capa do disco, e que há poucos minutos ela havia chutado no palco.