Objetividade e inquietação estão por trás do sucesso de Marina Lima. Com uma carreira que atravessa décadas e gerações, a cantora, compositora e arranjadora sempre buscou a melhor nova versão de si a cada obra lançada. Desde Simples como fogo (1979) até Novas Famílias (2018), cada disco apresenta um panorama possível das infinitas possibilidades de ser Marina Lima.
Em 2021, ela dá passos firmes rumo ao futuro através do registro do seu presente no EP Motim, e mais consciente dos passos dados no passado, agora documentados em Marina Lima – Música e Letra, um songbook totalmente digital e gratuito com todas as letras e partituras de suas 175 músicas, tendo os 21 discos já lançados, além do EP, como fios condutores.
O e-book pode ser baixado no site oficial da cantora. A transcrição foi feita pelo músico Giovanni Bizzotto, as fotos por Candé Salles e o projeto gráfico por Renato Gonçalves. Já Motim conta com produção de Marina e Alex Fonseca, e parceria especial de Mano Brown na faixa “Nóis“. Em um papo para a NOIZE, a icônica artista fala sobre sua rotina na pandemia, o refúgio que encontrou no estudo de música, as crises durante a revisão do projeto do livro e sobre Motim. Desça, solte o player e leia na íntegra.
Marina, gostaria de começar perguntando como está a sua rotina produtiva e criativa em meio à pandemia?
Logo que ela começou, foi um caos, porque, de uma hora pra outra, ninguém podia fazer nada, ninguém podia sair, fazer show ou ver ninguém, então, foi muito confuso. Quando consegui entender a proporção do buraco, comecei a estudar música como forma de aproveitar o tempo ocioso que eu tinha, e também pra não me desanimar. Me fez muito bem porque acabei preparando esses novos produtos e trabalhei à beça. Agora, a pandemia em si, é um descalabro! É uma coisa que puxou o tapete de todo mundo, e que está sendo terrível, com as mortes e o despreparo do Brasil todo. Mas, pra quem pode, é uma chance de olhar pra dentro e ver o que é necessário mudar na sua percepção sobre o mundo. Não se perde sempre, há ganhos também; saber bem distinguir isso, nesse momento, vale muito.
Em 2018, você me deu um entrevista que foi publicada na nossa revista NOIZE #82, que integrou o kit #018 do NOIZE Record Club ao lado do vinil de Letrux Em Noite de Climão (2017). Reli esse papo e me deparei com a seguinte declaração sua: “Eu olho muito enquanto tô fazendo, não olho muito para trás”. O que fez você olhar para trás e entender que seria o momento de fazer um songbook de toda a sua carreira?
Eu tenho o temperamento de ir fazendo as coisas e pronto, tá resolvido! E já penso: “Qual é a próxima coisa?”. Eu gosto de fazer, de criar coisas, eu sou muito objetiva. Só que tem uma hora que você percebe que você tem 21 discos, que você tem uma obra! E que é importante ter a prova dessa obra. O meu tesouro, o que vale para mim, não são tanto as canções que eu escrevi – elas são muito importantes, falam muito de quem eu sou – mas, mais do que isso, são as canções que eu gravei. Quando eu percebi que eu tinha 21 discos, vi que era a hora de, espertamente, registrar as partituras, cifras e letras de todos eles, ordenando isso, para que eu possa hoje, aos 65 anos, chegar em qualquer conversa e poder presentar quem eu sou através do songbook com todos os meus discos. Além de ter o trabalho de rever tudo o que eu fiz um vez só na vida (risos). O Giovanni Bizzotto é um grande violonista e foi o músico que eu escolhi para transcrever tudo isso. Ele demorou dois anos porque é muito trabalho, são 21 discos! Tem até menos músicas inéditas porque alguns deles são ao vivo, mas é bastante coisa. Ele precisou organizar as letras, fazer as partituras, as cifras, organizar de uma forma que fosse didática. Eu queria um livro didático porque eu estudei muito música, e sei que a coisa mais importante pra um aluno de música é o songbook. É importante ter um material profissional, didático, simples, interativo, que seja fácil pra pessoa, que ela possa baixar. No meu caso, também quis dar o livro de graça porque era a forma que eu, Marina, via de retribuir tudo o que esse público no Brasil me deu. Eu não tinha noção de que eu era tão conhecida, não tinha noção do meu sucesso, até eu começar a viajar fazendo show pelo país todo, de norte a sul. Percebi que o público que conheceu as minhas músicas passou isso para seus filhos. Não precisava cobrar pelo songbook, ele, passando de pessoa para pessoa, é o que mantém a minha obra viva.
Que sensações vieram durante essa revisão da sua trajetória? Como foi essa experiência?
Foi difícil. Teve uma hora que eu falei que tava de saco cheio de olhar para músicas antigas, foi foda. Com tudo pronto, o Giovanni veio me encontrar para a revisão, e já era pandemia, aquela coisa de máscara, tudo novo, uma loucura. Eu estava na companhia e de mais dois caras que contratei para a preparação do songbook e do EP. Um deles era o Candé Salles, um grande amigo, com quem tive a experiência super positiva através do meu documentário Uma Garota Chamada Marina (2019), e que topou filmar esse processo. O outro também é um grande amigo, o jornalista e acadêmico Renato Gonçalves, e que prepararia o conteúdo para a imprensa. Estávamos todos aqui ouvindo os discos, eu super simpática, revendo tudo que já fiz – o que, pra mim, parece uma perda de tempo, porque eu poderia estar fazendo outras coisas. Lá pelo sétimo disco, eu tive um ataque inesperado e falei: “Não aguento mais, chega! Pra quê tanta música? Pra quê tanto disco? É música demais!”. Eles acabaram até rindo, mas eu tava puta! Eu me recompus, claro, entendi que eu tinha tido um ataque de raiva, que aquilo era uma coisa que eu tinha pedido para fazer, logo, me obriguei a fazer. De certa forma foi até bom porque o livro é em ordem cronológica; então, todo mundo que ouvir, vai entender como foi a evolução da Marina artista. Eu, muito feliz, descobri que tenho obras-primas mesmo, descobri que tinham algumas músicas que eu nem tinha que ter gravado… e só agora eu ia olhar para isso. Tiveram coisas que não gostei, mas eu simpatizei com a minha obra, gostei de mim, entendi o caminho que fiz e fiquei feliz de ter conseguido tudo isso. Mas não deu para apenas revisitar minha obra. Eu e Giovanni começamos a trabalhar nisso em 2018; dois anos depois, veio a pandemia. A saída que achei foi estudar para não ficar louca e fazer um buraco para me enfiar dentro. Me tranquei em casa e comecei a estudar música, violão, computador, tudo. E na hora que alguém como eu começa a estudar, logo começa a compor.
De que pesquisas, insights e inspirações nasce o EP Motim?
Eu não queria mais lançar outro disco, pô, ninguém tem tempo, ninguém aguento. Eu, por exemplo, quando um artista que eu admiro lança um disco, eu preciso separar um dia em que ninguém vai me chatear, que vou tomar um uísque e vou ouvir. É uma coisa que requer tempo. Assim, pensei que já tinha 21 álbuns da maneira “antiga” de se fazer música e quis fazer um EP com quatro músicas independentes que sintetizem às pessoas como eu me encontro agora. Escolhi “Pelos Apogeus” e “Motim” por serem mais violonísticas e esse ser um instrumento que eu trabalho, enquanto “Kilimanjaro” e “Nóis” por serem meu lado eletrônico.
Marina, foi dito que a decisão por se desatrelar da necessidade de lançar discos era motivada por um desejo de mais liberdade. Qual é a importância dela para você e sua arte?
Poxa… parece uma pergunta óbvia, mas ela é a chave de tudo! A liberdade é quem dá asas ao homem, ela é fundamental. Ter liberdade de poder experimentar, fazer um álbum algum dia de novo, ou um EP, ou uma trilha sonora; inventar um nome que não seja o meu e, com mais dois músicos, e criar uma obra. Este tipo de liberdade é inspiradora.