Indicados ao Grammy Latino 2019 com o disco Vulcão (2018), os sergipanos da The Baggios estiveram em São Paulo para uma turnê de oito shows em dez dias que acabou no sábado, 12, com um tributo a Raul Seixas. Na terça-feira, 8, enquanto esperava a chuva passar em um boteco no centro da capital, o vocalista, compositor e guitarrista Júlio Andrade conversou com a NOIZE por telefone. Julico, como é conhecido, falou da indicação ao prêmio, dos 15 anos de banda, da cena musical nordestina, do momento político nacional e, principalmente, das ideias e sentimentos por trás do disco Vulcão.
Natural de São Cristóvão, quarta cidade mais antiga do Brasil, na região metropolitana de Aracaju, Júlio fundou a Baggios quando tinha apenas 17 anos, em 2004, como um duo de blues-rock. Gabriel Carvalho (o Perninha), atual baterista da banda, assumiu as baquetas em 2008, substituindo Elvis Boamorte. Três anos depois, estava lançado o primeiro álbum: The Baggios. O segundo, Sina, veio em 2013, e o terceiro, Brutown, em 2016. Foi quando o tecladista Rafael Ramos, que participou das gravações de Brutown como músico convidado, acabou sendo incorporado ao projeto e transformou o duo em trio.
Quarto álbum de estúdio, Vulcão foi lançado em meio às eleições presidenciais do ano passado. “O Brasil estava completamente em choque, em colapso político. Começou realmente a aparecer nos ouvidos da galera em janeiro”, lembra Julico. Depois de shows de lançamento em Sergipe e São Paulo, fizeram as malas rumo à Europa. Entre março e abril deste ano, foram 23 apresentações por Itália, Suíça e França.
Como conta Júlio, o álbum é uma mescla de rock setentista, desert blues, soul, afrobeat e música nordestina. O trabalho conquistou público e crítica e, no mês passado, recebeu a indicação ao Grammy Latino na categoria “melhor álbum de rock ou música alternativa em língua portuguesa”. Dois anos antes, Brutown também esteve entre os cinco finalistas do prêmio. Vulcão dá sequência ao disco anterior tanto em termos de sonoridade, com maior abertura às influências da música brasileira, quanto em termos conceituais. “Foi uma onda de continuação. Uma pessoa que chegou ao seu ápice de ansiedade, no caos daquela “brutown”, e precisou sair da doideira para entender o que se passava na cabeça, o que representava aquela angústia”, explica Julico. O álbum tem um clipe lançado: “Bem-Te-Vi”, canção em parceria com a cantora Céu. O próximo, “Vulcão”, está previsto para o final deste mês.
A volta da turnê a São Paulo marca também o lançamento do álbum em vinil, um mídia que tem o maior carinho de Julico (que, aliás, é assinante da NOIZE Record Club). “Tem todo aquele ritual de pegar o encarte, botar na vitrola, virar do lado A para o B. Você não está ouvindo música dirigindo no carro, digitando um e-mail, pedalando. Vocês está ouvindo música concentrado na música”, define.
Assistimos ao segundo show da turnê, no SESC 24 de Maio, e conferimos uma banda instigada, tocando as dez faixas de “Vulcão” e outros sucessos em uma hora e meia de pura erupção. Além dos três músicos da Baggios, a apresentação teve nos palcos o reforço de um percussionista e um trio de metais, reproduzindo os arranjos do álbum como foram gravados. Embalado por Vulcão, desça a página e confira a entrevista:
Em 2017, Brutown já havia sido indicado ao Grammy Latino e agora vocês repetem a dose com Vulcão. Como foi receber a notícia?
Pô, velho, uma curiosidade é que a gente estava na estrada indo gravar cenas para o clipe [da música] “Vulcão”. Recebi a mensagem do Felipe Rodarte, do nosso selo e do estúdio Toca do Bandido, e eu fiquei assim… extasiado! A gente recebeu a notícia na estrada e depois não conseguiu responder mais ninguém, porque não tinha sinal de celular onde a gente estava gravando, então a gente só foi realmente absorver a notícia quando chegou em casa. Não imaginava que dois discos seguidos poderiam ser indicados ao Grammy. Não por achar que Vulcão tenha menos crédito do que Brutown, inclusive, acho que é o contrário. Para mim, é o melhor disco que eu pude produzir, como letrista, como compositor. Mas a gente ficou muito surpreso, em êxtase, e fomos gravar o clipe naquela vibe de alegria mesmo, no meio da mata, como é a história da música. Os prêmios trazem para nós um impulso, uma instigada para continuar fazendo a parada e acreditar no trabalho. Lançamos Vulcão em um momento muito complicado, depois do primeiro turno [das eleições presidenciais, em outubro de 2018]. O Brasil estava completamente em choque, em colapso político. A gente estava extremamente preocupado com o país, o futuro, as pessoas estavam focadas em outra coisa. Começou realmente a aparecer nos ouvidos da galera e nas listas de discos em janeiro. A indicação era uma expectativa, mesmo que inconscientemente, mas não componho pensando em listas, prêmios… Só estou dando o melhor de Julico como compositor, músico, amante da música. A base do Vulcão tem soul music, afrobeat, “rockão”, música nordestina, desert blues, enfim, tudo o que eu estava ouvindo no período está ali. É o melhor de mim em dois três anos de pesquisa musical e dedicação.
No show no SESC 24 de maio, você fez questão de reivindicar a cultura nordestina nos intervalos entre as canções. Como você avalia a cena regional hoje, especialmente neste contexto político de governo Bolsonaro?
Essa posição se deve muito ao momento político mesmo porque todas essa doideira dos discursos de Bolsonaro referente a nós, desvalorizando a cultura da nossa região, dão mais orgulho do que a gente faz e nos motiva a buscar referências novas. Como é uma coisa nossa, na vivência mais íntima, mais profunda, a gente realmente tem propriedade para explorar e se orgulhar. Acho que a cena musical nordestina nunca parou de apresentar novidades e de crescer. Se você acompanhar a música brasileira dos anos 1960 e 1970, uma parcela gigante da mbp surgiu de lá. Hoje em dia, você vê artistas mais novos se destacando, como BaianaSystem, Josyara, Giovani Cidreira, Maglore, Luedji Luna. Isso é só Bahia. Mas você vai para Pernambuco e tem vários nomes antigos que mantém sua carreira ativa, criando, gerando discos e tal. Sei lá, velho, são muitos nomes. É difícil lembrar nesse calor da conversa, mas vejo que a cena nunca parou e está sempre gerando uma visão nova do que é Nordeste por caminhos diferentes, por sons e cores diferentes. A gente vai evoluindo, acompanhando o tempo, se posicionando e trazendo para a arte tudo o que a gente está passando e sentindo na pele.
Ainda no show, você citou como referências Alceu Valença e Zé Ramalho. Quais as principais influências do disco?
No Vulcão entram outros nomes bem importantes como Tim Maia e Jorge Ben, junto com Alceu, Sá, Rodrix & Guarabyra, Os Mutantes, Rita Lee, Secos & Molhados. São os nomes que mais chegam à mente quando se fala de música brasileira. Mas o blues pra mim é fundamental como guitarrista. Buddy Guy foi um cara que me mostrou a guitarra elétrica de uma maneira muito intensa. Hendrix, Black Sabbath, Led Zeppelin, o classic rock também é muito presente na hora de compor. O punch, o peso da Baggios tá muito ligado ao rock 70. Isso é uma essência desde o primeiro álbum. A gente também tentou sintetizar umas referências mais atuais. Eu descobri o desert blues e, por exemplo, Bombino e Tinariwen. Isso me mostrou uma outra concepção da guitarra elétrica, reacendeu minha chama de pesquisar guitarra e formas diferentes de tocá-la. Também tem influência da psicodelia turca! Descobri uma coletânea muito foda que me ajudou a ter uma visão oriental na música da Baggios. Se você pegar algumas referências nos solos, sempre tem uma mescla de [escalas] pentatônicas com mixolídias. Isso percorre o disco todo, desde a primeira música “Louva-a-Deus”, até “Caldeirão das Bruxas”, “Limaia”, que é uma mescla de uma música folclórica de Sergipe com o desert blues, até a própria “Deserto”, que é a música em que o BaianaSystem participa. Mas, por exemplo, o Clube da Esquina me entrou muito forte nos últimos dois anos. “Bem-Te-Vi” foi fruto dessa referência que tenho no Clube da Esquina, com os acordes mais complexos, com a linha um pouco mais melódica, com mais leveza na composição. Para mim, o disco é uma coleção de percepções, influências e emoções que você sentiu em determinado período. Nesses dois anos, 2016 a 2018, segui muito na busca do autoconhecimento enquanto ser humano e cidadão, reconhecendo o momento de parar e respirar, de não se deixar entregar por uma correria doida e cobranças malucas. Me fez respirar, parar no mato, dar atenção às coisas mais calmas. Percebi tudo isso. E todas essa galera que citei me veio mais forte nos últimos anos.
Em relação ao disco anterior, Brutown, Vulcão traz referências mais amplas em termos de música brasileira. Houve uma busca por expandir o universo do rock? As parcerias com BaianaSystem e Céu refletem um pouco isso?
Eu sou apaixonado por música em geral. Ouço coisas que não cabem na Baggios, mas tento trazer uma leitura dessa pluralidade que me atinge. Desde o samba, as músicas africanas, folclóricas, é um universo muito grande. Juntar a Baggios ao BaianaSystem e à Céu é mais uma reverência porque a gente admira eles pra caralho . A parceria é uma forma massa de se aproximar e tentar trazer para nossa música uma experiência com outra perspectiva, timbre e visão. Acho que o Brutown já foi um começo disso, de a música brasileira estar presente mais forte. Se você pegar “Medo”, por exemplo, é um baião nervosão com total influência do jazz brasileiro, da música brasileira dos anos 1970. O Perninha é super fã de Hermeto Pascoal, eu e Rafa também. Quando a gente lançamos esse disco, a aceitação não foi somente do público do rock. Brutown foi uma introdução da banda para o universo da nova música brasileira. E Vulcão é uma continuidade, explorando esse rico universo. Uma das minhas maiores preocupações quando comecei a compor foi justamente não soar como uma banda de rock traduzido. Pegar aquelas melodias e tentar incluir de qualquer maneira a palavra em português, eu achava meio ridículo. Quando a gente consegue visualizar o que tem na nossa cultura, no entorno, e trazer para nossa sonoridade, chega para as pessoas como algo novo. Não como uma criação do zero, mas uma leitura original do que já é feito. Como a música brasileira tem um leque gigante de referências, sempre vai surgir algo novo.
Esta turnê em São Paulo também marca o lançamento do Vulcão em vinil. No show, você falou do carinho especial que tem com a mídia física. Como é essa relação?
A gravação de um disco é até algo romântico hoje em dia… A galera está numa vibe de lançar singles e as pessoas parecem que não têm tempo para ouvir um disco inteiro, com tanta informação recebida diariamente. O vinil ainda é uma forma de as pessoas entenderem a construção daquela obra. Tem todo aquele ritual de pegar o encarte, botar na vitrola no lado A, virar para o lado B. Você não está ouvindo música dirigindo no carro, digitando um e-mail, pedalando. Você está ouvindo música concentrado na música. Esse é um dos lados em que mais vejo a importância do vinil. É o que eu faço também. Quando compro os discos, leio as letras, entendo muito mais a fundo. E os discos da Baggios, os dois últimos, são conceituais. Tem um tema desenvolvido, tem um caminho, não é uma coletânea de músicas avulsas. O nome do disco tem um porquê. O “Deserto” tem um porquê, que está conectado ao Vulcão. O “Bem-Te-Vi” tem um porquê. Eu sou muito fissurado na concepção gráfica também. Sou designer, dou muito valor a essa parte de contar história através de imagens. O disco é muito imagético. Acho que é um caminho massa você ver os detalhes da capa, da ficha técnica. E tem o lance da qualidade. Se você tem uma boa vitrola, um bom receiver, você consegue tirar um som muito foda. No streaming você também pode ouvir música de alta qualidade, mas nem todo mundo está preocupado com isso. O consumidor do vinil, na maioria, ama ouvir música e numa qualidade massa. A gente gravou o disco num puto estúdio, gastamos uma grana mixando e gravando com os melhores equipamentos, no Toca do Bandido, estúdio lendário. Fizemos masterização na gringa com um puta cara foda que é o Felipe Tichauer, com masterização especial para vinil, CD, streaming... Se esse cuidado e sutileza que a gente agrega no disco não chega aos ouvidos das pessoas não vale a pena investir. Eu vi o Emicida comentando sobre isso em um vídeo em que me identifiquei muito. Ele diz que é um dos últimos românticos que pensa na obra de um disco. É o que eu falei, é uma forma de você contar com mais intensidade um tema, desenvolver com mais propriedade e profundidade. Eu sou provocado a compor quando tem um tema que me bate e vai na alma.
A Baggios fez 15 anos no mês passado. Já dá para projetar o que vem pela frente nos próximos cinco, dez anos da banda?
Tenho dificuldade imensa de dizer sobre o futuro. Não consigo me ver velhinho, e nem daqui a dez anos. Eu tenho 33 anos e sou envolvido com música há quase 20. Não sei fazer nada a não ser tocar, compor e tal.
Eu vejo a Baggios no mesmo ritmo, no próximo ano e nos seguintes, por mais que a gente tenha toda essa dificuldade e o momento não ajude muito a nos motivar. Com a política no Brasil dos últimos dois anos pra cá, desde Temer até agora, que entrou um governo com viés fascista, a gente vê que a cultura vai amortecendo, perdendo as cores, perdendo o rumo. Muitas construções de longa data, como festivais, vão perdendo força e artistas vão se desestimulando. Mas a gente mantém esse tesão, essa paixão de ser músico no Brasil. Senão a gente nem faz, se começar a pensar em música como produto apenas, não como um dedicação quase espiritual… Porque é uma vivência muito além do material, a música transcende o que a gente realmente vê. Tem música que me vem que sabe-se lá como. E é uma forma de se posicionar. É um dos maiores meios de comunicação e conscientização. Por isso que esse governo bate muito na tecla de tirar força da cultura. Para quê eles querem pessoas inteligentes, com opiniões próprias, se eles querem manipular? Por mais que a gente perca força de um lado, de incentivo e investimento, por outro, a gente ganha força para a luta. De escrever sobre, de se posicionar em shows, em músicas. Agora, mais do que nunca, os artistas precisam se posicionar. Fazer uma leitura do tempo atual e não se perder naquela nostalgia dos tempos bons. Não adianta ficar cantando “mão pra cima, vamos dançar”, sabe? Não tem sentido, não tem clima pra isso, velho. Neste momento atual, em que todo mundo está à flor da pele, fervendo, angustiado, uma mensagem com uma visão próxima da tua te conforta. É uma parada necessária. E o Brutown já falava disso há três anos. Eu falei [da tragédia] de Mariana, de atentados terroristas, de Temer. Em “Saruê” já era referências a Bolsonaro, Malafaia, Temer. O Vulcão foi uma onda de continuação. Uma pessoa que chegou ao seu ápice de ansiedade, no caos daquela “brutown” e precisou sair da doideira para entender o que estava se passando na cabeça, o que representava aquela angústia. O vulcão nada mais é do que uma analogia à explosão de sentimentos. A gente vê o vulcão como algo inofensivo, que está quieto no seu lugar, mas dentro tem uma lava fervendo. Isso é o ser humano. Você vê pessoas que não demonstram suas emoções, não conseguem se expressar, mas estão sofrendo pra caralho. Acho que tem muito a ver com o Brasil. O Brasil meio que deu uma explodida. É uma analogia para um momento crítico, mas, ao mesmo tempo, traz um pouco de esperança, um caminho um pouco mais consciente.