Foram dois anos que valeram por 20. Entre 1994 e 1995, o jornalista, músico e produtor Carlos Eduardo Miranda se juntou aos Titãs em uma aventura comercial sem precedentes na indústria fonográfica brasileira chamada Banguela Records.
Acabou de ser lançado no festival In-Edit o documentário Sem Dentes: Banguela Records e a turma de 94, dirigido pelo jornalista Ricardo Alexandre, e nós aproveitamos para trocar uma ideia com o Miranda sobre a história desse selo histórico. Através de uma parceria com a gravadora Warner, o Banguela lançou os discos de estreia do Raimundos, Mundo Livre S/A, Graforréia Xilarmônica, Maskavo, Little Quail and The Mad Birds (banda do Gabriel Thomaz, do Autoramas), Kleiderman (projeto de Branco Mello e Sérgio Britto paralelo aos Titãs) e das menos conhecidas Party Up, !Pravda e Linguachula. Além disso, lançou em 1995 três coletâneas: Alface (com bandas de Curitiba), Pircorócócór (com bandas do interior de São Paulo) e Segunda Sen Ley (com bandas de Porto Alegre, lançamento que oficializou o início da carreira solo de Júpiter Maçã).
Conversamos com Miranda sobre o que foi o Banguela Records, veja abaixo:
Como surgiu o projeto do filme Sem Dentes: Banguela Records e a turma de 94?
Cara, não tem nada a ver comigo, só me entrevistaram. Na verdade, é muito engraçado porque eu tive a ideia de fazer outro filme sobre a época que não tem nada a ver com esse. Não vai ser sobre o Banguela, e sim sobre a época em si, com foco no Raimundos como centro da história toda. Vai falar do Cólera, do sertanejo, mas mais focado no lance do Raimundos. Faz uns três anos que tô organizando esse filme junto com o Vladimir Cunha lá de Belém, que dirigiu o Brega S/A. Ele que vai ser o diretor, tá na fase de captação. Então foi uma coincidência, mas eu fiquei muito feliz quando o Ricardo Alexandre falou desse filme aí.
Ah, entendi… E como nasceu o Banguela? Desde o início ele era atrelado à Warner?
Não. A ideia surgiu de mim, que sugeri pros Titãs de fazermos esse projeto. Aí a gente foi buscar alguém pra apoiar, que foi a Warner. Que era a gravadora do Raimundos, por isso foi a primeira que a gente foi atrás.
Mas o Banguela era teu ou dos Titãs? Como era a relação de vocês?
Cara, conheci os Titãs durante a gravação do Titanomaquia (1993), eu era repórter da Bizz na época. E tinha uma coincidência muito interessante: os Titãs sempre estavam muito perto do meu caminho apesar de a gente nem se conhecer, eu só conhecia o Paulo Miklos e o Charles rapidamente. Mas eu trabalhava com o Moleque de Rua e eles conseguiram um esquema pra fazer um disco e quem foi o produtor foi o Charles Gavin. Produzi o disco do Volkana, um grupo de metal de mulheres de Brasília, e quem botou elas pra abrir shows foi o Titãs. Comecei a ver que os Titãs estavam muito perto de onde eu tava e apoiando também os artistas. Quando coincidiu de eu encontrar eles foi num momento em que eu tava com uma mina de ouro na mão – que era uma maletinha que eu carregava com as demos do Raimundos, do Little Quails, do Planet Hemp, do Charlie Brown… Todas essas bandas tavam na fase de demo e eu conhecia todas e sabia de tudo que tava acontecendo. Foi um momento muito importante e calhou de eu encontrar os Titãs num estúdio naquela época. No começo, eles eram desconfiados porque tinham uma certa restrição com a imprensa, que pegava no pé deles, zoava eles, a própria Bizz já tinha zoado eles. Quando eu cheguei, eles ficaram desconfiados, mas, nos intervalos de gravação, eles jogavam Sonic no Megadrive e eu sabia tudo do Sonic, todas as passagens secretas, tudo! Eu era foda no Sonic! Aí eu comecei a falar: “Ó, vocês querem aprender uns truques nesse jogo?”. E comecei a mostrar, ensinar os truques, e a gente se aproximou, ficou amigo, eles viram que eu não era um mala da imprensa qualquer, eu era um cara que tava em outra história, sabe? A gente se aproximou, aí um dia eu falei: “Velho, deixa eu mostrar um negócio pra vocês”. E comecei a mostrar as bandas, Chico Science, Raimundos, os caras ficaram apavorados quando ouviram aquilo! “Que que é isso que tá acontecendo?”. Eles ficaram muito felizes, se empolgaram e disseram que tinham que fazer alguma coisa por essa galera. “Ah velho, quem sabe a gente monta um selo”, falei. “Como assim um selo?”. Aí eu expliquei pra eles o que eu tinha na cabeça.
E o que você tinha na cabeça?
Então, eu andava junto com o Skowa e a Máfia, com Os Mulheres Negras, eles eram a minha turma em SP. E eu via o quanto a gravadora gastava com eles. Tipo, pra fazer um disco era mais de R$ 300 mil. É o normal, fazer um disco com custo de hotel, avião, custa isso até hoje. Um disco fuleiro feito rapidamente, mas com boas condições, custa uns R$140 mil. Mas eu tinha uns parceiros na Gravadora Eldorado, que era uma gravadora independente, onde tava o Sepultura, Ratos de Porão, e lá a gente fazia tudo com muuuito menos grana. A gente fazia disco com R$30 mil! Dez vezes menos. Eu comecei a fazer as contas: “Pô, os caras gastam R$ 300 mil pra fazer um disco, com R$300 mil eu faço vários! Quer saber? Dá pra fazer um negócio revolucionário”. A ideia era pegar o dinheiro que a gravadora usaria pra fazer um disco e gravar vários – um deles ia funcionar bem, ia vingar, e isso manteria tudo. Foi o que eu propus pros Titãs. Eu vinha de uma experiência como empresário estepe pro Sepultura por alguns meses, um trabalho rápido que eu fiz, e também tinha feito o trabalho de botar o Skank no mercado. Então eu sabia com o fazer um artista ficar conhecido na imprensa, sabia como consolidar a imagem dele no mercado, que foi o que eu fiz com o Sepultura, sabia como fazer um disco com pouco dinheiro e o quanto eu podia tirar de uma grande gravadora se eu fizesse uma parceria com ela. O Titãs era a ponte perfeita pra isso e eles toparam. Entramos em contato com a Warner através do Sérgio Afonso, que era o diretor de marketing na época (hoje ele é presidente da Warner), um cara muito legal, nosso amigo até hoje, e ele topou a aventura, resolveu encarar com a gente, arriscar esse negócio. O jogo era esse: com a verba de um disco, eu fazia vários. Foi como a gente começou o Banguela. Esse conceito tinha o apoio do sucesso do Nirvana, todo mundo sabia que ele tinha surgido gastando muito pouco dinheiro. Isso nos ajudou muito: “Ó, nos Estados Unidos é assim que acontece com a galera independente. Nós temos esses grupos aqui e eu sei como se faz”. Assim surgiu o Banguela.
Aí vocês lançaram o Raimundos, que foi um sucesso gigante.
É, primeiro foi lançado o Raimundos, o segundo foi o Mundo Livre S/A, que eram bandas que nós sabíamos que marcariam muito, pelo sucesso e pela ousadia. Tanto que os dois foram os Discos do Ano, junto com o do Chico Science e a Nação Zumbi, que eu não consegui segurar. Deixei eles pra Sony. Até porque não adiantava ficarmos com tudo e termos a responsabilidade de fazer uma geração vingar sozinhos. Tem que deixar que o concorrente pegue alguma coisa também.
Também saíram discos de bandas que acabaram não tendo tanto sucesso assim, como a Graforréia Xilarmônica, o Maskavo…
Sim, a Graforréia pra mim era um ponto de honra. Porque eu considerava eles uma banda que vislumbrava muito do futuro, eu sempre gostei muito deles. Quando tive oportunidade, chamei eles pro selo, os Titãs gostaram, viram que era uma banda muito especial. Era uma banda que eu sabia que não ia ter um estouro imediato, até porque as bandas do sul são muito desarticuladas por natureza, mas era um grupo que, com o tempo, seria reconhecido, viraria cult. E não errei nisso. É uma banda que foi importante pra carreira do Los Hermanos, do Pato Fu, inspirou muita gente.
Qual era o nível de ingerência dos Titãs no Banguela?
A gente decidia tudo junto. Todo mundo participava de tudo. Em todos discos eles tavam bastante próximos, até emprestavam equipamento… Inclusive, alguns discos foram coproduzidos juntos por mim e eles. O disco do Maskavo foi feito por mim e pelo Nando Reis. O disco do Mundo Livre foi feito por mim e pelo Charles Gavin. No disco do Raimundos, o Nando Reis toca violão, em “Selim”, o Toni Belotto emprestou uma Gibson Les Paul pra gente gravar o Raimundos. No do Mundo Livre também usamos guitarras dele, eles tavam sempre presente.
Até a Malu Mader, mulher do Toni, participou do disco do Mundo Livre, né?
É! A gente era muito unido. Quando fomos pro Rio ficamos hospedados na casa do Toni e da Malu, era tudo assim. Todo mundo junto. Marcelo Fromer participava muito, o Sergio também. Todo mundo era muito ligado. Integraçao total mesmo…
E por que o Banguela durou tão pouco tempo?
O Banguela acabou quando os Titãs voltaram a fazer turnê. Aí acharam que não teriam tempo pra se dedicar ao selo, que ia ficar tudo muito na minha mão, e eles não queriam que o selo fosse uma coisa que eles não estivessem participando ativamente. Foi muito natural. Eles resolveram sair fora e a gente deu continuidade criando a Excelente Discos, em parceria com a Polygram.
O fim do selo foi algo que partiu dos Titãs então?
Partiu dos Titãs. Eles iam voltar pras turnês, tavam com o [Manoel] Poladian como empresário… Aí ele disse pros Titãs: “Meu, vocês vão deixar isso aí na mão do maluco do Miranda? Vai dar merda! Vocês vão se fuder”. Aí eles saíram fora. No início, quando fizemos a Excelente, o Charles, o Brito e o Branco iam continuar com a gente. Mas na última hora eles acabaram desistindo. Ficaram tão ocupados que realmente não tinham tempo de estar ali com a gente.
E, pra Warner, talvez nem fizesse tanta diferença acabar com o Banguela porque ela poderia ficar com o Raimundos, que estava trazendo retorno financeiro, e deixar as outras bandas pra lá.
Na verdade, a Warner não interferia em nada, só emprestava o dinheiro e botava o disco na loja. Quem fazia o resto era a gente. Não é como as pessoas imaginam, como se fosse mesmo vinculado à Warner. Quem cuidava das coisas éramos nós. Uma equipe fuleira, que não tinha ninguém, mas fazia chover.
Mas os contratos dos discos ainda estão todos com a Warner?
Os do Banguela, estão.