Lee Ranaldo: “Fidelidade não tem influência da qualidade” | Conversamos com o papa do lo-fi

13/10/2014

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Marcelo Bergamin Conter

Por: Marcelo Bergamin Conter

Fotos: Marcelo Bergamin Conter

13/10/2014

Passei nove meses no Brooklyn fazendo doutorado sanduíche, nome curioso para o programa de intercâmbio acadêmico da CAPES. Estou escrevendo uma tese sobre lo-fi, envolvendo discussões sobre a interferência de novas e velhas tecnologias na música pop. No meu último mês, tive o prazer de entrevistar Lee Ranaldo, guitarrista do Sonic Youth, que vem mantendo sua carreira solo desde que o grupo acabou há quatro anos. As minhas perguntas foram voltadas para questões da minha tese, mas as respostas de Lee são interessantes para qualquer amante de música underground. No dia da entrevista, Lee se apresentou em um evento independente que contava com várias outras bandas, organizado no salão paroquial de uma igreja no centro de Brooklyn, em 5 de setembro. Antes de sua performance, que envolveu 20 minutos de microfonias, baquetas e um arco de violino, tomamos uma cerveja e conversamos sobre lo-fi, tecnologias fonográficas e seus próximos passos como compositor.

Eu sei que sua música não é lo-fi, mas você conviveu por anos com artistas que trabalham dessa forma. Então eu gostaria de falar sobre isso. Antes de tudo, portanto: o que é lo-fi para você?

*

Bem, lo-fi é um tipo de música que é gravada de modo muito simples ou primitivo. No início, com um gravador de fita cassete. Eu acho que os primeiros artistas a serem compreendidos como lo-fi foram Daniel Johnston, e as primeiras gravações do Low Barlow, antes do Sebadoh começar, quando ele apenas gravava cassetes em casa. Eu acho que, antes de tudo, isso é o que o lo-fi é: algo bem pessoal ou algo gravado de modo bem cru. E eu acho que para a maior parte das pessoas trata-se apenas de lidar com a limitação tecnológica que eles possuem. Quando eu ouço música, quando reflito se é bom ou se é ruim ou seja lá o que for, o modo como ela foi gravada certamente interfere nesse julgamento. Como eu disse, não acho que para a maior parte dos artistas lo-fi esse é um estilo que eles estão procurando, é muito mais utilizar o material que eles tem em casa. Usar os gravadores de fita cassete mais baratos que tiver, ou gravar com um iPhone… eu faço isso o tempo todo. É bem lo-fi, mas é mais uma questão de produzir do modo mais simples e econômico o possível. Quando o Daniel Johnston estava fazendo suas fitas, ele não tinha nenhum estúdio para ir. Não tinha dinheiro para alugar uma sala, apenas um gravador de fita cassete. E é por isso que, quando você ouve suas gravações, elas parecem bem pessoais. Dá pra perceber que ele gravou em uma sala ou no seu quarto, ou no porão ou o que for, que ele não foi para um estúdio e passou dias a fio aperfeiçoando cada trilha – pelo contrário, foi bem natural. Eu acho que essa é, de certo modo, um dos grandes marcos do lo-fi: um estilo bem pessoal e natural.

Certo. Mas talvez hajam outros modos de pensar o que é lo-fi. O Loveless (1991) do My Bloody Valentine foi um disco que custou muito caro para ser produzido. Kevin e o resto da banda tinham toneladas de equipamento à disposição, e o resultado, no que concerne apenas à experiência de escuta, é uma sonoridade extremamente distorcida, resultando em melodias e harmonias com contornos pouco definidos. Você diria que, de certa forma, esse disco é de baixa definição?

Eu não sei se eu diria isso. Eu acho que é uma música que foi altamente produzida para soar desse modo. Eu nunca ouviria esse disco pensando-o como lo-fi porque não se enquadra no que eu entendo como tal. Essa música está tentando alcançar um certo tipo de som embaçado, e eles conseguiram fazer isso muito bem, é muito bem produzido artisticamente, não soa cru. Você sabe, quando eu digo lo-fi eu acho que só significa algo que foi gravado de modo bem cru e simples. […]. Mas nem sempre por escolha. Eu acho que depois que todo mundo ouviu aquelas canções do Daniel Johnston, mais gente pensou “bem, acho que eu também posso gravar no meu quarto usando um gravador de fita cassete. Eles não queriam ir para um estúdio, esses artistas queriam gravar do modo mais simples o possível, mas com músicas que chamassem atenção mesmo assim, independente de serem gravadas de forma crua, cheia de chiado, ruídos externos e coisas do tipo. Meio que se lixando para todas as coisas normais que se prezam em uma boa gravação. Eles dizem “não precisamos de estúdio, não precisamos que soe bem, apenas precisamos de um suporte. Era bem punk, de certa forma. Então, naquele período, eu acho que tinha alguns artistas que estavam conscientemente fazendo discos desse modo. Mas eu acho que a maior parte desse pessoal, assim que puderam, assim que tiveram dinheiro para fazer música de outro modo, eles fizeram!

Essas gravações desse primeiro período do lo-fi [1978-1988] são frequentemente relacionadas com a falta de virtuosismo, com cantar e tocar mal, desafinando, com amadorismo. Se você diz que o som do My Bloody Valentine não é de baixa definição porque é bem produzido e lapidado, por outro lado, muita gente enquadra Beat Happening como uma banda lo-fi. Mas eles optaram, conscientemente, por soar assim, mesmo em estúdio, e eles até trocavam de instrumento num esforço para se manter amador, sempre aprendendo a tocar ––

Não, mas isso é diferente, isso não é lo-fi, é uma estratégia de como se fazer música. Tinham muitas bandas que mudavam de instrumento entre as canções. Tinha um grupo que a gente era bem próximo durante os anos 80 chamado Ut. Elas eram assim. Elas mudavam de instrumento a cada música, não tinham um baterista ou guitarrista fixos, e antes de o show terminar todo mundo já tinha tocado todos os instrumentos. Na época do começo do no-wave, as pessoas prezavam esses grupos que não sabiam tocar direito os instrumentos, mas faziam música mesmo assim. Eu acho que isso não tem nada a ver com lo-fi, é muito mais anti-virtuosismo ou algo assim, e para muitos grupos, como o Beat Happening ou o Ut, eu acho que era só uma estratégia para manter um certo tipo de naïveté. Você tá ficando muito bom na guitarra, então é sua vez de sentar na bateria (e você não é um bom baterista, mas ao menos consegue segurar um ritmo por duas ou três músicas). Eu não vejo isso como lo-fi, é só uma estratégia composicional, mais do que qualquer coisa. Para alguns grupos, isso aconteceu porque eles honestamente não sabiam tocar, e para outros grupos era porque eles queriam se manter desprevenidos: não ficar muito bom em algo que você só está repetindo padrões incessantemente. Eu acho que há uma diferença entre alguém que é anti-virtuoso e alguém que é lo-fi.

Dá pra dizer que Beat Happening seria então anti-virtuosismo, e a carreira solo do John Frusciante, por exemplo, lo-fi?

Bem, acho que sim. Frusciante é um guitarrista fantástico, e mesmo assim ele grava coisas no seu quarto em cassete… mas ele entraria na categoria do lo-fi apenas pelo modo como foi gravado. Muito disso é sobre a experiência de escuta, você ouve essas coisas, é quase o equivalente a escrever uma carta ou um e-mail. A carta é algo que alguém faz de modo bem privado, e quando você abre e lê, você sente uma conexão bem pessoal por causa da escrita, e quando você ouve uma música gravada em cassete, no quarto de alguém… Bem, hoje em dia, boa parte das gravações são feitas em estúdio, eles são em um grau ou outro, intercambiáveis, e eles não tem uma ambiência própria. Já alguém gravando em seu próprio quarto com fita cassete ou com um iPhone, o lugar em que foi gravado acaba sendo um fator determinante para a sonoridade, afinal, dá pra ouvir uma porta batendo, ou alguém gritando lá fora, as sirenes da polícia tocando, ou o que for. É um ambiente menos controlado – esses registros são, parcialmente, sobre isto. O estúdio é um ambiente asséptico e totalmente controlado, enquanto que uma gravação lo-fi é feita de um modo muito mais pessoal e simplório.

Tem outra coisa que acontece na música underground que é entender a música lo-fi como mais autêntica. Daniel Johnston é um exemplo disso…

Bem, sua música era autêntica. E seria autêntica independente de como ela teria sido gravada. Apenas ocorreu de ele gravar de modo mais simples porque ele não tinha outro modo de gravar. Ele era um autêntico savant. […] Aliás, o Daniel não grava mais desse jeito, hoje em dia. A gente poderia discutir se a música dele ainda é boa ou não é mais, mas assim que ele pôde, ele foi para um estúdio decente. Ele nunca olhou para trás e disse “puxa, eu adoraria voltar a gravar uma fita no meu porão”! Quer dizer, ele só fazia isso porque ele precisava, e ––

Ele queria ser um Beatle!

Sim!

Ele não queria continuar fazendo música desse jeito, certo?

Exato. Ele fazia mixtapes de suas canções, passava para outras pessoas, e daí outras pessoas vinham e perguntavam “você pode me fazer uma cópia?”, e aí elas foram se espalhando desse modo. Um exemplo clássico de baixa-fidelidade se espalhando por boca-a-boca. Alguém copiou 20 ou 30 fitas, e aí esse cara, Jeff Tartakoff, que foi o produtor do Daniel por anos, pensou “isso é fantástico, mais gente tem que ouvir isso, eu vou fazer uma centena de cópias”, e aí apareceu uma nova geração de cópias de cópias dessas fitas, que eram ainda mais lo-fi, e depois surgiu outra geração ainda pior, entende? Mas de algum modo a música emerge em meio aos chiados e o som podre do cassete, e a música era muito impressionante. E ela ainda capturava um momento muito específico da vida de Daniel. Foi muito comovente para muitas pessoas. Aquelas canções eram realmente fascinantes, elas provam que fidelidade não tem influência da qualidade. A música em seus primeiros cassetes continua impressionante em termos da música e também do clima que elas criam. Temos uma sensação do lugar em que elas foram gravadas, do ambiente ao redor, você ouve a mãe do Daniel falando, tudo isso faz parte da experiência. Seja o que for que você apresentar para alguém como som gravado, você está apresentando uma experiência inteira, seja gravada em um estúdio de alta tecnologia ou no pior e mais cru modo o possível. Enfim, os artistas nem sempre tem a intenção de que esses aspectos sejam parte do registro, mas, ao mesmo tempo, todos os aspectos são parte dele! Quando você ouve esses registros hoje em dia, você olha por cima a qualidade sonora crua e você sente esse centro emocional, e é bastante impressionante. E não seria assim se fosse gravado em um estúdio, teria se diminuído, de certa forma. O fato é que era um projeto de um homem só, sem engenheiros, técnicos ou pessoas olhando para níveis e controlando tudo, e é isso o que torna tudo mais impressionante. Mais pessoal, também.

O guitarrista em um show do Sonic Youth na Ucrânia, em 1989

O guitarrista em um show do Sonic Youth na Ucrânia, em 1989

Mas isso depois virou uma prática dos estúdio também, não? Quero dizer, no estúdio é possível produzir sons cristalinos, livres de imperfeições, mas ainda assim é comum “sujar” o som – adicionar distorções ou efeitos dessa ordem – para que o produto final soe mais “realista”. Isso ocorre até mesmo com artistas da música eletrônica. O que você pensa a respeito?

Bem, todo mundo tem um certo som na cabeça, então se tem artistas optando por fazer um som mais sujo, então é isso o que eles vão fazer. Não tem nada a ver com ser lo-fi ou hi-fi, apenas com lidar com a tentativa de produzir um som que está na sua cabeça. No caso da música eletrônica, eu não sei se “realista” é a palavra certa, eu acho que eles fazem isso apenas porque procuram por um determinado som. Música eletrônica é um som bem limpo e estéril em geral porque, você sabe, ela é feita com chips e computadores. Toda a vez que um guitarrista pisa num pedal de distorção, ele está sujando o sinal. Mas isso é muito mais coloração do que fidelidade.

Outra banda que muita gente relaciona com lo-fi é o Neutral Milk Hotel. Eu ouvi In The Aeroplane Over The Sea por anos em mp3, e eram arquivos de qualidade razoável, 256kbps. Mas daí eu comprei o vinil em agosto, e quando eu ouvi pela primeira vez, eu me dei conta da diferença. Quando você ouve algo que tem tantos harmônicos agudos ressoando por causa da distorção e do fuzz, é óbvio que vai soar lo-fi em mp3, mas no vinil está tudo lá, é um disco hi-fi!

Eu não sei se eles estavam gravando com equipamentos sofisticados, eles estavam fazendo esses discos em uma casa na Carolina do Norte ou algum lugar assim––

Não, na verdade, de acordo com o livro da coleção 33 1/3 sobre o disco––

Tem um [livro dessa coleção] sobre esse disco?

Sim! No livro, diz que eles não tinham muito equipamento, mas eles estavam usando um bom 8-track e também tinham a disposição um microfone da Neumann. O Robert Schneider [produtor do disco] nem tinha pedais de distorção, ele criava fuzz estourando o ganho de pré-amplificadores dos microfones––

Sim, se aproximando dos sons que um pedal de guitarra faz…

Então você diria que distorção não tem nada a ver com baixa definição, trata-se mais de obter um som específico?

Com certeza. Eu gosto dos discos deles, são cheios de distorção, e não são lo-fi nem um pouco, é apenas a sonoridade que eles [os músicos] queriam. Eu amo o jeito que esses discos soam, eles tem uma característica bem específica. Eu não sei se eu os consideraria lo-fi. Quero dizer, parte das faixas foram feitas de modo bem simples. Eu não sei o quanto o quão significativa a categoria “lo-fi” realmente é, de várias maneiras. […] As primeiras gravações do Daniel eram assim apenas porque não tinha outro jeito de fazê-las. São como as gravações de Lou Barlow. Foram gravadas de forma simples porque era o modo mais ligeiro de transferir uma música da cabeça dele para o público. E houve um breve período em que pessoas usaram essa técnica porque estava na moda. Ainda nesse assunto, poderíamos falar dos discos do Robert Johnson no final da década de 20. Tem umas gravações dele que foram feitas em um quarto de hotel em Lousiana ou algum lugar assim. Elas eram lo-fi, lo-fi mesmo, mas ao mesmo tempo era a melhor fidelidade que se poderia ter naquela época. Uma fita cassete gravada em 1984, ou seja lá quando gente como o Daniel Johnston começou a gravar, tinha uma fidelidade bem maior do que as gravações em cilindro da década de 20. Eu acho que usar a fita cassete em uma época onde existem técnicas mais sofisticadas é o que torna essa prática lo-fi. Se você pudesse transportar o gravador de fita cassete para os anos 20, seria o método de gravação de maior definição possível, e as pessoas não o encarariam como lo-fi. Então é meio que um termo relativo. Pode ser uma postura estratégica. Tem grupos que utilizam o gravador para se posicionar, tipo “nós não vamos gastar milhares de dólares, vamos gastar uns cinco dólares em um cassete e fazer disto parte de nosso posicionamento político”, entende? E para outras pessoas já se trata de uma postura de moda, assim como usar qualquer que seja a camiseta deste verão.

Então, o lo-fi não é um gênero musical do mesmo modo que o rock é, ele é mais um método e de gravação que envolve determinadas tecnologias. No que concerne a experiência auditiva de registros fonográficos, estamos vivendo em uma cultura lo-fi? Como é que compressão sonora, mp3, YouTube, Spotify, telefones celulares, alto falantes e fones de ouvido baratos e de qualidade baixa estão mudando o modo como ouvimos, experienciamos e criamos música?

Engraçado isso. Quando eu era adolescente, todo mundo aspirava ter o melhor aparelho de som estéreo o possível para ouvir gravações – alta qualidade, fitas bobina-a-bobina e coisas do tipo. Então é estranho que vivemos em uma era em que todo mundo aceita essas coisas que soam tão mal, tão cruas. Como você disse, se você está ouvindo um mp3, e aí troca para um vinil ou um CD, você ouve uma diferença enorme na qualidade sonora, mas ninguém liga pra isso hoje em dia. E em alguns aspectos, isso mostra como o espaço que a música ocupa na vida das pessoas reduziu. Elas estão felizes porque temos muito mais música à disposição (milhares de canções em seu telefone ou o que seja) do que tínhamos no passado, e podemos ouvir tudo mas não podemos ouvir de um modo aperfeiçoado. Mas é tudo meio que de baixa fidelidade, mesmo. Isso mostra uma atitude enfraquecida à música, ela ocupa um lugar menos importante na vida das pessoas, é um reflexo da nossa era. Ela ainda é muito importante para as pessoas, mas não do mesmo jeito que era há vinte ou trinta anos. As pessoas queriam ouvir música do melhor modo que pudesse ser reproduzida. Já hoje todo mundo está contente com fones cagados e mp3s, meio que só pegando a ideia da música. Acho interessante que essas mudanças também transformam o modo como artistas fazem música. Tem gente compondo para que a canção soe bem nesses formatos. Tem muita música, especialmente o hip-hop, que são super despojadas, não é exatamente música dance, as batidas são feitas em um drum machine bem simples, mas elas soam bem em uma mídia de baixa fidelidade como é o mp3. Se você pegar uma gravação de uma orquestra e ouvir em mp3, vai perceber que se perde muito mais do que a música pop do momento, porque ela é desenvolvida para ser ouvida nesses formatos.

Quando não se é músico, talvez não se reconheça claramente o quanto as frequências mais baixas e mais altas do espectro tem mais presença em vinil, mas de todo modo a profundidade que ele traz para o som faz com que você se envolva mais com a música, ela te toca, toca seu corpo. Isso nos traz para outra questão que se refere a relação do corpo com a música. Há uma relação entre o rock e a violência. Eu gostaria de falar sobre dois tipos de violência: para com o corpo dos ouvintes e músicos, e para com os aparelhos e instrumentos musicais. Vou dar um exemplo para explicar o que quero dizer. Algumas pessoas entendem que a primeira canção de rock foi “Rocket 88” – você conhece essa história – o amplificador do Ike Turner caiu de uma picape em movimento, e isso resultou em um timbre distorcido, que o guitarrista curtiu, e ele acabou usando o aparelho assim mesmo para gravar a canção. Daria para falar de vários exemplos como o The Who quebrando os equipamentos no palco, ou… como é o nome do cara do Kinks que esfaqueou o cone do amplificador?

Dave Davies.

Isso. Ele usou um estilete e tal…

Sim, mas isso já tinha sido feito antes do Dave Davies. Link Wray [famoso pela canção “Rumble”] é creditado como o primeiro a esburacar alto-falantes.

Ah, eu não sabia disso! Bom, então, violência também significa aqui suar, chegar à exaustão, se machucar, como ocorreu uma vez com Thurston Moore, quando ele ensaiava com um baterista ainda antes do Sonic Youth se formar, e ele tocava a guitarra com tanta vontade que sua mão direita estava sangrando muito, jorrando gotas de sangue no kit de bateria. Me parece ser crucial agir assim não só ao vivo, mas também no estúdio. Quero dizer que a violência no rock não é só uma questão de performance, mas também de ouvir a violência. Pra ficar num exemplo, na faixa secreta do Nevermind, Endless Nameless, que era também a música que eles tocavam quando iam destruir os equipamentos ––

Sim, eu lembro deles fazendo isso!

Sim, e daí você ouve isso no disco e, puxa, realmente soa como se eles estivessem derrubando tudo, esfregando a guitarra no amplificador, pisando em cima, soltando a afinação das cordas… você imagina isso acontecendo enquanto apenas ouve. Acho que a música “Don’t” do Dinosaur Jr também é um exemplo disso, pois Lou Barlow gritou tanto “WHY DON’T YOU LOVE MEEEE?” que suas cordas vocais sangraram no final da gravação. Você acha relevante um esforço como esse de tentar imprimir a violência de palco em um registro fonográfico?

Muito dessa violência, como você diz, vêm da performance. E é difícil para bandas que fazem esse tipo de coisa traduzir isso para discos. Porque é muito difícil fazer isso em um estúdio. O efeito disso em termos de rock and roll está no performer, seja lá quem for, Johnny Rotten, G. G. Allin… Dá pra ouvir “Endless Nameless” e tirar algo, mas não é nada perto do que ver Kurt voando em direção ao kit da bateria e coisas do tipo ao vivo. É uma experiência diferente. É difícil representar a violência. Eu acho que até um certo ponto, quando artistas realmente começaram a usar distorção em gravações, isso simbolizou um certo tipo de violência que as pessoas não estavam acostumadas a ouvir. Se você ouvir vários discos da década de 60 de grupos que você imagina serem super barulhentas, as gravações são super limpas. Não tem muita distorção. Daí, em algum momento, talvez pós-Hendrix, as pessoas descobriram pedais de distorção e tudo o mais. E aí o som mudou drasticamente. A ideia de como fazer seu som voltado para ser gravado mudou. E as gravações ficaram mais distorcidas e se tornaram um som mais aceitável. Mas eu acho que num primeiro momento, quando pessoas ouviram sons realmente sobrecarregados, elas ficaram chocadas, porque não tinha aquele som limpo que elas estavam acostumadas a ouvir.

Já que estamos falando sobre isso, quando você grava, você se interessa em inserir os sons dos equipamentos funcionando – o chiado dos captadores das guitarras, a vibração da corrente elétrica, o ruído da fita, o sinal do pedal de distorção…? Porque, é claro, tem muito disso nos discos do Sonic Youth, como parte de como a banda compunha. Mas você vê isso como um objetivo, como parte do “it” desse tipo de rock? Pra você, a presença destes sons faz a música mais interessante também?

Eu acho que isso se trata de reconhecer as limitações da mídia com a qual você está trabalhando. Se você grava em fita, vai ter chiado, e se você estiver usando equipamento elétrico vai ter ruídos e topo esse tipo de coisa. Aquele som de ‘click’ quando você pisa nos pedais para ligar e desligar… Ou você tenta esconder e suavizar essas asperezas, ou você decide que são parte da natureza da situação e você os mantém. Foi a grande mudança quando começou a gravação digital: “ok, não tem ruído”. E primeiro as pessoas estranharam a ausência dos ruídos, porque soava estéril, afinal, o ruído produz uma ambiência. Sempre tem ruído [para a nossa percepção]. Eu já estive naquelas câmaras anecoicas, e ainda assim tem ruído, dá pra ouvir o sangue correndo pelos vasos capilares do seu próprio ouvido… Por um tempo, as pessoas que gravavam de forma analógica tentaram minimizar os ruídos, foi quando surgiu tecnologias para tentar fazê-lo, como Dolby e DBS. Em um dado momento, para nós, nos demos conta que adoramos como a fita cassete soava, e você aceitava isso. […] No digital, se o volume fica muito alto, ocorre aquela distorção que ninguém gosta, e aí tem gente como Aphex Twin que está fazendo uso da distorção digital, dizendo que “este é um som que talvez as pessoas não gostam agora, mas ninguém experimentou, vamos usar”.

Hoje em dia, o que está em jogo para a música underground? E de que modo a relação entre underground e mainstream mudou?

A relação não mudou, o underground será sempre “underground”, e isto é uma oposição ao mainstream. Sempre tem coisas interessantes sendo feitas no underground. Eu não acho que vai realmente mudar […]. Eu ouço o tempo todo coisas sobre eventos ocorrendo no país e no mundo todo, sobre artistas tentando coisas pela primeira vez… Sempre tem gente fazendo essas coisas, e sempre vai ser mais lo-fi do que algo que você assistiria no Madison Square Garden, ou em um teatro apropriado. Mesmo o show de hoje à noite tem aspectos lo-fi, foi realmente produzido por nós mesmos, tem um PA simples. Eu acho que sempre vai ter um underground inventando coisas, e às vezes os ouvintes de mainstream vão ficar sabendo de algumas dessas coisas e transformá-las em música pop, às vezes não. Sempre terá um underground bem saudável acontecendo, galera que está começando, excitada pelo que eles ouviram ou aprenderam, e decidiram fazer algo com as próprias mãos.

Você está trabalhando em algo novo? Eu ouvi dizer que tem um álbum acústico no forno…

Sim, deve sair no próximo mês [outubro], ou no fim de setembro. Nós gravamos ano passado, em abril de 2013, na Espanha. A gente ia pra Marrocos pra tocar, mas o show foi cancelado no último minuto, e a gente estava em Barcelona nessa época. O Primavera Sound tem um selo agora. Começaram este ano. E vai sair por esse selo. Eles encontraram um estúdio para nós e gravamos por quatro ou cinco dias, e dois ou três meses depois já estávamos mixando. É um disco novo, mas não são canções novas – tem um outro álbum de inéditas que estou trabalhando –, são canções dos meus dois últimos discos, alguns covers e outras coisas, mas ele é todo acústico, usamos até um contrabaixo, e o Steve [Shelley] tocando maracas, pandeiros e chocalhos ao invés de um kit de bateria o tempo todo. E ficou bem bacana, acho que vai ser um disco bem bom. E eu estou indo pra Europa para fazer um tour acústico em outubro. Só eu cantando, acompanhado de violão, por três semanas, na mesma época em que o disco será lançado.

Por onde vai começar a turnê?

Primeiro eu vou pra Polônia pra fazer uma música nova com um grupo chamado Bang On A Can, um conjunto novo de Nova York, eu escrevi uma peça para eles há um tempo atrás e nós vamos tocar essa peça na Cracóvia. E hoje eu vou tentar algo com um quarteto chamado Dither, os caras que organizaram o evento.

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13/10/2014

Marcelo Bergamin Conter

Marcelo Bergamin Conter