Prestes a se apresentar no Coala Festival, Don L trocou uma ideia com a NOIZE sobre os preparativos para o show, o panorama atual do rap brasileiro e os caminhos de sua carreira.
Após o grande sucesso de Roteiro pra Ainouz Vol. 2, seu último álbum, o rapper vem de uma sequência de lançamentos de singles. O remix de “Favela Venceu“, com participações de Djonga e Bakari, além da capa e visualizer do artista visual Desali, foi lançado em julho, encerrando o ciclo do disco.
Já “Lili“, lançada no último dia 7, é uma parceria com Terra Preta e dá sequência à pesquisa de Don com o afrobeat. O single foi lançado com um vídeo visualizer dirigido por Yan Felipe. Abaixo, confira a entrevista completa.
Don, como está a expectativa para o Coala? Você preparou algo especial para o show?
Vai ser um show com banda, que a gente vem fazendo em algumas ocasiões. Não é sempre que rola, porque é um show mais elaborado, mais difícil de fazer. Tem que organizar a agenda de todo mundo e a maioria dos músicos toca em muitas bandas, é uma galera muito braba. A gente tem feito alguns e já estamos bem entrosados. Tem alguns meses desse show com banda e acho que tá no ponto alto desse formato, saca? Eu fazia o show mais no formato tradicional do rap, só com DJ e MCs, e aí começamos a fazer esse com a banda mais completona, do jeito que eu sempre quis, que é um formato não tradicional, não tem bateria (o DJ é o baterista, no caso). Mas tem guitarra, sax, teclado, baixo. E a gente já tá fazendo há um tempo bem razoável, então estamos bem entrosados, e é um show bem legal.
Qual a formação da banda?
O DJ Roger, Thiago França no sax, Fernando Catatau na guitarra, Thamyres Silveira no teclado, Beatriz Lima no baixo. E aí, de vozes, tem eu, Terra Preta e Alt Niss. É uma banda em um formato não muito usual no rap. Quando a galera faz assim, normalmente coloca bateria, mas eu acho que desconfigura um pouco a proposta do que eu queria fazer, que era um som mantendo a característica de música eletrônica, só que com instrumentos ao vivo, com espaço pra improvisos, pra coisas acontecerem na hora, que não estavam programadas. Não é um show mapeado. Uma coisa muito feita hoje são shows milimetricamente planejados, principalmente shows híbridos, que têm elementos eletrônicos e instrumentais. Mas esse show não é. Ele tem espaço pra improvisos, pra esticar um compasso a mais em tal hora, inventar coisas no meio do show, entendeu? É mais orgânico mesmo.
O line do festival tem nomes de destaque do rap. Você, FBC, KL Jay e Rodrigo Ogi. O Coala se declara como um espaço de “fortalecimento da música brasileira” e tem um público considerado “alternativo”. Como você vê a entrada do rap nesses espaços?
A gente que faz rap no Brasil sempre teve uma busca por um diferencial. A gente nunca quis fazer uma cópia do rap americano. Eu também tinha essa busca. E a gente trabalha muito com samples, né? Então, comecei a comprar discos e comecei a ficar muito fã da música brasileira desde os anos 50. Comecei a ouvir os clássicos do samba, do brega, do partido alto e tal… E a partir de certo momento, eu vi que, mesmo quando a gente não tá de forma mais óbvia sampleando música brasileira, a gente tinha criado algo muito próprio. Mas, na medida em que a gente vai amadurecendo, vai ficando mais latente essa urgência de fazer uma coisa muito mais nossa, cada vez mais nossa.
E acho que esses artistas que estão no Coala refletem muito isso. Você vê o que o FBC tem buscado fazer, o que o Ogi tem buscado fazer, o que eu venho buscando fazer… O que o KL Jay sempre buscou fazer, né. Lembra que o KL Jay foi o cara que sampleou Originais do Samba, com aquela música do Xis: “Na subida do morro é diferente…”, fazendo aquela mescla de samba com hip-hop. Então, acho que isso também fala algo sobre a curadoria do festival, que talvez tente colocar coisas que conversem mais com a música brasileira. Não que a gente tenha como não fazer música brasileira sendo rapper brasileiro. Independente de qualquer coisa, a nossa música é brasileira. Mas no sentido de dialogar com essa tradição da música brasileira, isso que eu quero dizer, entendeu? Acho que é isso.
Em um arco temporal, revisando sua trajetória: é muito diferente a forma como o rap é lido hoje da forma como era da época do Costa a Costa? Que diferença é essa?
Muito diferente, Erick, totalmente diferente. Agora, eu tendo a ter uma visão mais ampla disso e enxergar que essas mudanças não tem a ver só com o rap, mas com como a cultura brasileira passou por diversas mudanças de lá pra cá. A gente passou por reviravoltas culturais nesse meio tempo, como por exemplo, a popularização do rap e a afirmação do funk enquanto música popular brasileira. Naquela época, a gente ainda era muito categorizado como música de favelado, revoltado. O rap sempre vai ser música de favelado, tá ligado? Mas hoje a gente conseguiu colocar isso de uma forma positiva, entendeu? Naquela época, era uma coisa marginalizada mesmo. Assim como todos os ritmos brasileiros que genuinamente vieram do povo brasileiro, do povo pobre brasileiro, o rap foi discriminado. O samba foi, o funk foi e continua sendo, e o rap não deixou de ser em certo sentido e em certo nível. Mas como, hoje em dia, isso representa um giro de capital muito grande, fazendo circular muito dinheiro, e alguns dos artistas mais populares do Brasil fazem trap ou fazem funk, a gente tem uma visão diferente da sociedade.
Esses ritmos, que foram em certo nível discriminados, hoje representam muito dinheiro. É uma visão que oscila muito. Depende do ponto de vista de quem você tá falando. Ainda tem gente que considera o rap como uma “não música”, ou “música de bandido”. Tem gente que considera o funk como “música de favelado”. Toda vez que um funk, por exemplo, estoura mundialmente, não demora pra aparecer aquele pessoal dizendo que “isso não é música”. Até que vem um professor de teoria musical e explica a complexidade do que está sendo feito ali. Foi o caso da “Tá Ok”, do Kevin O Chris, que gerou um burburinho nesse sentido. Então, esse embate continua existindo, mas como existe um giro de capital muito maior, a tensão vai sendo aliviada em alguns espaços.
O RPA 2 teve uma aceitação muito grande, tanto por parte do público, quanto por parte da crítica. O que esse álbum significou para a sua carreira?
Eu acho que esse disco, na verdade, foi bem pensado pra ter o resultado que teve. Porque eu tenho um trabalho sólido desde o começo, uma discografia sólida. Venho subindo degrau por degrau, sem ascensões meteóricas, sem fórmulas fáceis de fazer superhits e tal. E são coisas que eu poderia ter feito. Se você considerar, eu sou um músico que, dos top 5 do Spotify, tem pelo menos 3 artistas que me colocam como suas maiores referências. Então, eu poderia ter sido um cara oportunista, utilizado essa minha influência e feito grandes hits, que desconfigurariam a minha proposta musical. Não tenho nada contra quem optar por isso, mas minha escolha foi trilhar um caminho sólido e de longevidade. Nesse sentido, acho que esse disco vem em um momento em que as pessoas podem constatar que eu tenho um trabalho sólido, que não é um lance de one hit wonder, “do cara que fez um disco cool”.
Acho que me firmei ali. Botei minha marca na música brasileira, o que eu proponho, o que eu sou como artista, de onde eu venho, onde eu quero chegar. E o RPA 2 é uma obra que equilibra essa coisa entre o popular e o que eu quero, as minhas ambições artísticas, que incluem o discurso (porque a forma inclui também o discurso e o discurso não é descolado da forma). Se você pega esse disco, ele tem beats que são tendências dentro da grande esfera que o hip hop é capaz de abranger, só que com a minha personalidade de produção ali, com elementos muito próprios de um cara que vem de Fortaleza. E com um discurso que, se não fosse uma música com tanta possibilidade de cativar as pessoas, seria extremamente impopular, porque eu tô falando de coisas muito profundas, enquanto as pessoas tendem a querer consumir o mínimo o possível de profundidade. A gente deu essa equilibrada, pra conseguir chegar em mais pessoas, e acho que tivemos êxito nisso. Conseguimos chegar em bastante gente com um disco que tem uma profundidade razoável, vamos dizer assim.
Sobre os próximos projetos, você pode adiantar algo?
A gente tá trabalhando em coisas novas pra lançar, singles. E também no Caro Vapor Vol. 2, pra depois fazer o RPA Vol. 1. Então, tem muito trabalho pela frente, muita coisa. Continuo querendo realizar coisas no audiovisual, que eu não consegui ainda, porque é uma brincadeira mais cara, precisa de recursos. Um artista que tem posicionamentos como os que eu tenho acaba ficando muito limitado numa era da música em que tudo é propaganda. Seja lá qual for a marca, tudo se esvazia de propósito e você fica preso a esse ciclo de conseguir apoio, patrocínio, coisas que são voláteis, modas e tendências voláteis. Mas a gente tem conseguido fazer alguns projetos que vão ser realizados em breve, em termos de audiovisual, que é algo que eu sigo querendo fazer e espero conseguir financiamento pra coisas cada vez maiores.
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