Entrevista | Os orixás na música brasileira e na vida de Eduardo Brechó, do Aláfia

02/09/2016

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Sté Frateschi/Reprodução

02/09/2016

Quem conhece o Aláfia sabe que a sua música é uma ferramenta de luta pela valorização da cultura negra brasileira e sua ancestralidade. Seu álbum de estreia, Aláfia (2013), e o seguinte, Corpura (2015), procuram comunicar ao público reflexões sobre esses temas de uma forma cada vez mais nítida, conforme explica o vocalista, guitarrista e diretor musical do grupo, Eduardo Brechó.

– No Corpura, reforçamos essa contundência de apontar alguns problemas. Foi natural que nos apronfudássemos nessa luta, é uma troca, a gente está dando isso pro nosso público porque a gente aprende com ele a como lutar – diz Brechó.

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Essa troca acontece muito nos shows do Aláfia e a banda está com várias datas marcadas. Nos dias 2, 3 e 4 de setembro, o grupo toca em Curitiba; no dia 5, se apresenta pela primeira vez em Porto Alegre; no dia 6, em Caxias do Sul; nos dias 22 e 23, em São Paulo; e, dia 3 de novembro, em Belém.

Quem tiver oportunidade de ver algum deles terá chance de lembrar que há bem menos distância entre a arte, as aulas de história e os ritos de matriz afro-brasileira do que muitas vezes parece. Brechó é um sujeito imerso no universo do candomblé há muitos anos e, abaixo, você confere um papo onde ele fala sobre a relação que mantém com a religião. A vivência fez dele um especialista na relação entre a música popular brasileira e os orixás, conforme ele demonstra abaixo.

Como surgiu seu interesse pelo estudo da cultura afro-brasileira?
Na verdade, não é um estudo, é uma vivência mesmo. Foi algo que não partiu de uma pesquisa, que já vem comigo porque eu frequento e sou criado no candomblé. A partir disso, levei essas coisas pro Aláfia. A cosmovisão iorubá me foi apresentada nos cultos, nos ritos, nos mitos, no dia a dia dessa tradição. É uma coisa natural, que está no meu trabalho não por uma educação formal, que tenha a ver com pesquisa. É mais por essa vertente da vivência, entende? É lógico que, quando você tem o interesse, você expande para além do que é passado nessas vivências. É natural que a gente queira se aprofundar na linguagem musical, e passa a também ter um tipo de pesquisa, mas o start pra isso, e sumo disso, é a vivência.

Conta como começou a relação com a música na sua vida.
Meu nome é Eduardo Brechó porque minha família sempre teve brechó de discos, livros, roupas e móveis. Eu comecei na música como DJ porque a gente sempre teve muitos discos e uma relação muito grande com o vinil. Eu sou auto-didata, compunha umas músicas, mas não levava muito a sério porque minha vivência tinha mais a ver com o rap. Nos anos 90, a maioria dos jovens que tinha a ver comigo atuava mais o rap, até porque a gente não sabia tocar instrumento. Aí escrevia umas letras, mas era DJ, tocava na noite e fui conhecendo muitas músicas com os discos de vinil. Eu fui percebendo quais eram os ramos da música que eu gostava mais, que eu achava que tinham um link com a minha natureza. Aí entra essa questão da religião. Na verdade, o rap dos anos 90 já trazia isso por haver aquele aspecto de afirmação da negritude de reforçar elementos africanos na cultura brasileira. O culto aos orixás estava presente no rap nacional também nos anos 90, então era natural, a gente conseguia ver a presença dessa tradição. Eu sou de Ribeirão Preto, só quando me mudei pra São Paulo que fui conhecendo outros músicos me aperfeiçoando como instrumentista, fazendo arranjo, produzindo. Aí fui conseguindo colocar uns elementos afro-brasileiros no que eu estava criando, elementos além do verbo, além do discurso. O primeiro trabalho que foi elaborado com as canções que são fruto dessa vivência é o Aláfia.

Quando você era DJ já estava bem envolvido com o candomblé?
Já, já. Inclusive, comecei a querer tocar na noite músicas da Música Popular Brasileira que tinham essa influência. E isso passou até a ser um movimento, das pessoas procurarem os discos brasileiros que tenham macumba, que tenham relação com isso. Eu estava inserido no começo disso. De a gente pesquisar e encontrar sons que tinham a matriz africana bem presente quando misturava com funk, com samba. Foi o que acabou virando até um certo modismo underground de alguns bares das grandes capitais. Eu vejo isso muito. Do pessoal gostar de tocar essas músicas que tenham influência afro-brasileira bem latente nos grooves, que fala de orixá e tal e que tava na MPB. Às vezes, você achava uma faixa do disco que falava disso: “ah, tem essa aqui do Antonio Carlos & Jocafi“… Sou um cara que conhece muito isso, tá ligado? Sei bastante onde apareceram os orixás, tanto no rap quanto na MPB, por ter essa vivência de DJ. Meu trabalho de DJ focou bastante nisso. O Aláfia gravou uma música chamada “Primeiro Barulho”, que traz trechos de raps dos anos 90 que falavam de orixás, justamente pra afirmar essa raiz de conteúdo no rap nacional.

Como você percebeu que queria fazer músicas que trabalhassem diretamente essas questões?
Eu achava que nem tinha como fugir disso, tá ligado? Quando se tem uma vivência religiosa, tem momentos em que a gente tá mais próximo da religião e tem momentos que nem tanto. Naturalmente. Mas no momento em que o Aláfia foi criado, até por ter esse nome, tive vontade de fazer uma musica afro-brasileira mesmo. Querer fazer música com o conceito de trazer esse ponto de vista africano pro contexto urbano do Brasil, sem ser folclórico. A princípio o conceito do Aláfia foi esse. Eu não pretendo fazer todos os meus trabalhos ligados a isso, não é algo que tem me prender. Mas o conceito de Aláfia carrega isso. É inevitável, sempre que tiver a ver com o Aláfia, vai ter a ver com isso. Pra mim foi normal, nao foi pensado. O Aláfia nasceu de uma coletânea de canções que eu já tinha há muitos anos e a maior parte delas falava disso. Por isso, o Aláfia nasceu assim e tem esse recorte.

E como a música pode ajudar na luta por igualdade social?
Você tem que falar em racismo. Estamos falando da herança africana no Brasil, como essa herança chegou aqui? Através de ancestrais que foram escravizados, torturados. Então essa cultura chegou, formou o Brasil e tem que ser levada em conta de maneira afirmativa. Pra reforçar esse valor e saber que essas pessoas que trouxeram a cultura pra cá são pessoas que sofrem no dia a dia o racismo institucional, o racismo cotidiano, e o racismo mata. As pessoas é que são o foco disso, não é só a cultura. Demonizando a cultura, você quer é acabar com as pessoas. É por isso que a gente fala de racismo. Quem está sendo discriminado, perseguido, são as pessoas negras que carregam essa cultura. Os brancos que carregam essa cultura vão sofrer menos, ta ligado? A gente tem que falar de racismo, se não falar de racismo quando fala de orixá, ou de qualquer coisa da cultura negra, a gente está sendo leviano. É um ponto muito importante. A gente tenta afirmar valores que trazem junto outros valores, valorizando a herança em relação aos cultos das religiões de matriz africana a gente vai valorizando outros aspectos do afro-brasileiro.

Como você disse, a herança afro não é defendida apenas nas letras do Aláfia, mas também na sonoridade dos ritmos, por exemplo. Como funciona isso?
Esses ritmos estão presentes nos padrões rítmicos mais gerais da música pop. Você percebe que as coisas se parecem. O funk carioca tem o padrão rítmico de um toque de terreiro muito comum. Assim, você percebe que as claves [melódicas], os padrões rítmicos, são eternos e a gente pode usar eles de maneira consciente ou não. O Aláfia procura ir além da clave, tocamos os toques com todas as nuances que o toque tem, com tambores graves, agudos e médios. Tentamos destrinchar esses toques dentro da nossa concepção musical, levar as frases dos tambores pra outros instrumentos, pra que a coisa fique amalgamada, não só na letra. Quem conhece o culto a Oxóssi sabe que o agerê é um toque importante pra Oxóssi. E a gente tenta colocar o agerê de alguma forma nisso. Ou então algo que tenha ver com o culto de Oxóssi de uma maneira mais profunda, mesmo que quase ninguém reconheça. A gente usa essas imagens até de maneira subliminar. Por uma convicção nossa, acreditamos que isso dê mais consistência pro trabalho. Gostamos de reforçar que alguns padrões africanos estão na música pop nos dias de hoje por um reforço afirmativo mesmo. Tem um resgate, mas não é exatamente um uso inovador porque esses padrões já estão presentes em vários estilos musicais. Se você pegar um arrocha pra ouvir, até um rock n’ roll, funk, vai reconhecer os padrões. Quem conhece esses padrões rítmicos, reconhece. O samba é um herdeiro direto, mas o rock é também um herdeiro direto dos terreiros. Se você pensar de onde vem o rock,é uma música afro-americana que tem a ver com o blues na essência, que é uma música de lamento de escravo americano. O rock é uma música de terreiro. A gente ouve algumas de rock que parecem opanijé! Que é um toque pra Omolu. É que, na evolução do que se chama de rock, naturalmente ele parece um ritmo branco porque se distanciou daquela raiz, mas a gente sabe que não é. O Chuck Berry era negro! O rock também é música de terreiro. Se você pegar os caras do Delta do Mississipi, vai reconhecer a África no som dos caras. É inevitável. O jeito de conduzir o blues que, se for pensar tecnicamente, é um 12×8, isso aí é terreiro puro!

E é impossível separar a música da experiência religiosa nos cultos afro, né.
A maioria das religiões usa a música, não é exclusividade africana. É um jeito que o ser humano encontrou de rezar. Nas igrejas evangélicas, a música é muito importante, na Igreja Católica tem música, nos cultos indianos também… A música em si é uma coisa espiritual.

E, para você, a experiência de tocar no palco tem um caráter espiritual relacionado?
A música, na minha vida, vem primeiro que a religião. Foi a primeira coisa que eu encontrei e me identifiquei plenamente. Se eu esquecer tudo, só lembro de música. Escuto música toda hora. Estar fazendo música e vivendo música, pra mim, é uma questão transcendente sim. Mas eu sou meio materialista em alguns aspectos. Eu vejo que a música é um combustível, que nem o oxigênio, e é natural que eu esteja perto disso. Eu não acho que ela me conecta a uma força de fora, acho que ela me conecta ao Todo e a mim mesmo. É mais nesse sentido de estar presente, de existir enquanto eu com música. Eu existo com música. Se é Deus, ou se é a Natureza, não importa. Eu não busco esse tipo de resposta. Sou um cara que não me preocupo com qual é a forma do Todo. Mas eu acredito que a música me liga sim a Tudo. Porque tudo tem música! Em todas religiões, o ser humano se apoia na música pra chegar mais perto de alguma coisa. Você percebe, quando tá em cima do palco, que a música te conecta com pessoas que você nunca imaginou que iria se conectar. Foi a música que fez você ligar. Você até pode ter algumas novidades da nossa conversa, mas eu espero que a minha música consiga te dizer essas coisas que eu to te dizendo.

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02/09/2016

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

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