Música preta, Xenia é teu instrumento

03/10/2017

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Por: Iarema Soares

Fotos: Tomas Arthuzzi/Divulgação

03/10/2017

Xenia França é a força negra e feminina que emerge no cenário musical brasileiro atualmente. A voz doce e potente que rasga ao mesmo tempo em que cura começou a carreira em 2007, em São Paulo, quando cantava sambas e outros clássicos da MPB nos bares e casas da cidade. Mais tarde, ela juntou-se a outros 11 homens e formaram a mega-banda Aláfia. Nos primeiros passos rumo ao trabalho solo, Xenia lançou, ano passado, o single “Breu” que remonta o caso de Claudia da Silva, mulher negra que foi arrastada por uma viatura da PM do Rio de Janeiro por 300 metros. Com esse trabalho, a cantora, que já é referência de empoderamento e reconhecida como uma artista que propaga o resgate da cultura afro-brasileira, entendeu qual percurso estético e político ela queria traçar com o primeiro álbum solo.

– O meu disco é bem auto-representativo. É sobre intimidade comigo mesma, sobre dramas e dores, ancestralidade, honra, respeito e fé. Inquietações, questionamentos e sonhos. Sobre afetividade, solidão e violência. Identidade, empoderamento e fragilidade. Sobre ser negra. Sobre ter voz. Sobre cura e transcendência – afirma a cantora.

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A sonoridade de XENIA vai do chão ao entérico, do tradicional ao contemporâneo, as influências vêm da diáspora negra e são compostas pela pluralidade de ritmos como o eletrônico, jazz, samba-reggae, rock e R&B. A musicalidade e cultura cubana também ganham evidência no álbum com o uso do Batá, tambor sagrado em Cuba, que ajuda a compor a harmonia final do trabalho. Além da cadência dançante e hipnotizadora, Xenia faz desse disco uma ferramenta que rompe os silêncios que calam mulheres negras há séculos. A artista cria sua própria narrativa e aborda a complexidade do que é estar à margem da sociedade apesar de fazer parte da população preta/parda, que é maioria no Brasil. As canções propõem a reconexão entre as Américas e a África e causam uma identificação quase instantânea com as pessoas negras por meio de letras que abordam problemas comuns a essa parcela populacional. O álbum torna-se necessário justamente por dialogar com os negros e por expor à branquitude brasileira as dores e chagas que o racismo, o machismo e a intolerância causam.

Produzido por Lourenço Rebetez e Pipo Pegoraro. O trabalho traz duas composições de Xenia, “Miragem” e “Perfeita para você”, além de uma parceria sua com Lucas Cirillo em “Para que me chamas?”. O álbum conta ainda com participações de Roberta Estrela D’Alva, que recita “Garganta” como um interlúdio, e letras de Antonio Carlos e Jocafi, Chico César, Luísa Maita, Verônica Ferriani, Theodoro Nagô e Tibless. Na nossa entrevista, conversamos sobre racismo, afetividade e representação da mulher negra, autoconfiança e a decisão de voar solo, confira.

Foto: Tomas Arthuzzi

A cultura negra é popular, mas as pessoas negras não, visto o silenciamento da população branca frente às temáticas raciais e até mesmo o uso, meramente, acessório de negros em manifestações culturais e artísticas criadas por eles. Como você enxerga essa dualidade na qual a branquitude coloca os sujeitos pretos?

Isso sem dúvida é efeito da mente colonizadora e da cultura do embranquecimento. E a imposição estética, no caso das manifestações artístico culturais, é apenas mais uma das muitas facetas do racismo. Alimentada no nosso cotidiano pelos meios de comunicação de massa, essa prática se naturalizou no Brasil nos fazendo acreditar que a maioria da população é branca. A publicidade massiva em volta da imagem de quem detém o poder não só estabeleceu um modelo de beleza, comportamento, moral, etiqueta, assimilados a partir de um modelo branco europeu como, ao contrário, caracteriza estereótipos negativos à imagem da população negra principalmente.

Reforçando uma ideia de um grupo fraco e cheios de atributos vexatórios, desprovidos de bondade, sucesso, genialidade, beleza e civilização. Logo a sua imagem não é exaltada. O falso mito da democracia racial criado pelos brancos para encobrir uma série de atrocidades deferidas contra o corpo negro é uma boa muleta para que o Brasil não assuma que é um país racista. Vivemos em uma sociedade em que todas as plataformas de poder são brancas. A política, os meios de comunicação de massa, instituições financeiras, as leis, as escolas e universidades e etc. Logo, a representação desse modelo estrutural social não reflete a imagem da maioria da população que sustenta a base de tudo.

A maioria dos negros no Brasil ainda estão encurralados e com dificuldade de desenvolvimento social. A nossa cultura é popular porque é mais um produto nas mãos de quem sempre ditou as regras. A violência e invisibilização do corpo negro, é um processo histórico e ainda em desenvolvimento e provoca distorções sérias na construção de identidade. É o racismo em suas mais variadas formas e subjetividades que gera o apagamento e silenciamento de uma população que já chegou no país em condições extremamente violentas e desfavoráveis e continua.

Foto: Tomas Arthuzzi

A imagem da mulher negra está associada a diversos estereótipos degradantes como o da hipersexualização. Gostaria de saber como você retrata a mulher negra em seu trabalho e como lida com o fato de sua presença e suas músicas serem entendidas como ferramentas de empoderamento para outras mulheres?

Sim. A objetificação do corpo negro e, principalmente do corpo negro feminino, é mais uma agressão imposta pelo racismo ao longo dos tempos. Ser um “Símbolo Sexual” ou vistas como “Mulheres Quentes” e entre outros pensamentos racistas a nosso respeito, não só nos desumaniza como continuam a reforçar e justificar os estupros históricos sofridos pelas nossas antepassadas. Essa herança negativa estigmatizou a mulher negra gravemente e acarreta em danos físicos, psicológicos, emocionais e morais.

Na minha vida, tento criar um processo de cura para mim mesma e percebo que muitas meninas se identificam comigo por causa da exposição do meu trabalho. Foi feito um verdadeiro estrago em nossas vidas emocionais e qualquer coisa que uma mulher negra decida fazer ela vai esbarrar nos dramas afetivos que ela carrega e muitas vezes nem sabe. O trabalho de autoconhecimento, para mim, foi a porta de entrada para que eu começasse a compreender o meu universo interior e acredito que, com paciência e disposição, cada pessoa pode encontrar o que faz sentido para si e transcender esses códigos tão pesados e tristes.

“Se quero pixaim, deixa. Se eu quero enrolar, deixa. Seu quero colorir deixa. Se eu quero assanhar deixa, deixa, deixa a madeixa balançar”. Essa letra do Chico César mostra uma exaltação do negro pela estética. Em uma sociedade que, constantemente, faz chacota do fenótipo negro, você busca ajudar a desenvolver uma nova construção da beleza negra?

Eu, particularmente, demorei para reconhecer a minha real beleza, talvez seja até uma coisa recente na minha vida. Acho importante a militância estética. O racismo nos ensinou a nos odiarmos e a termos baixa autoestima. Eu mesma ainda tento me curar disso também. Acredito que com a visibilidade do meu trabalho e, principalmente, através das redes sociais consigo ter um contato mais direto com meninas que se identificam comigo e, consequentemente, eu com elas. Vejo que alguns dos meus questionamentos passam pelos mesmos que elas passam. Podemos trocar e diminuir esse impacto emocional. Hoje em dia, temos um número maior de referências negras e estamos começando a desenvolver um novo conceito de autoconstrução dessa própria imagem através da identificação e autoaceitação.

Bom dia minha gente…vou me sentar aqui pra esperar o lançamento de sexta feira que vem! ✨ 📷✨: @wcarolinelima 👗✨: @reisnayarareis ❤❤❤❤

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No imaginário brasileiro a mulher negra é lida, também, como aquela figura forte e cuidadora que, muitas vezes, acaba sofrendo com o preterimento, abandono e solidão. Uma de suas músicas fala sobre amor, versar sobre a afetividade da mulher negra é uma maneira de humanizá-la para a sociedade na sua opinião?

Escrevendo sobre afetividade, estou expondo a minha fragilidade. Todos os setores da vida de uma mulher negra passam por esse campo emocional. E não me refiro apenas ao campo romântico, mas familiar, entre amigos, no trabalho e etc. Falar sobre amor também é política porque, historicamente, ele nos foi negado, e isso foi passado de geração para geração. A medida que os estereótipos racistas foram ficando cada vez mais sofisticados, a figura da mulher negra quando não invisibilizada, foi violentamente usada principalmente pela mídia com códigos sexuais, nos privando de humanidade. E isso influenciou o pensamento de toda a sociedade sobre nós.

Foi isso que eu quis dizer no meu disco, que somos sensíveis, que choramos, que queremos ser respeitadas e amadas como qualquer outra mulher. Porque acredito que a maioria das pessoas com quem nos relacionamos nem pensa sobre isso, agem no automático. Carregamos um fardo de que somos muito fortes e que aguentamos tudo e, quando nos posicionamos ou reivindicamos algo, somos “agressivas”. Eu não aceito ser tratada assim, nem ser vista dessa maneira. Acredito que muitas mulheres se sentem desse jeito e querem criar juntas, uma forma de transformar essas relações, começando pelo processo de transformação consigo mesmas, e um trabalho profundo de autocura e auto-amor.

“Pra que me chamas?” trata da questão da invisibilidade da população negra e apropriação cultural. Na tua opinião, como a população branca pode participar ativamente da luta anti-racista sem escorregar na apropriação ou na busca de um protagonismo que não é deles?
O racismo foi criado pelos brancos, assim como toda a estrutura racista que nos desprivilegia. E a estrutura precisa alinhar as coisas e olhar pra isso de frente. As pessoas negras chegaram até aqui mesmo com tantas formas de genocídio e inventaram uma forma de burlar a morte. As pessoas brancas, enquanto não encararem o seu preconceito e assumirem que o racismo é uma herança real e mais atual do que nunca, vão continuar fingindo que não são racistas e nada vão fazer para que isso acabe, inclusive, vão assumir um protagonismo que não lhes pertence e continuarão regozijando-se de seus privilégios fornecido por toda essa estrutura que foi feita para elas. James Baldwin disse que “o confronto nem sempre traz uma solução para o problema, mas, enquanto você não enfrenta o problema não há solução”, eu concordo.

No que seu trabalho solo difere do feito com o Aláfia e o que esses dois projetos têm em comum?
O meu disco é bem emocional e traz questões bastante internas. Mesmo os assuntos políticos passam por um olhar pessoal. Meu disco é como eu me sinto sobre relacionamentos em suas mais variadas formas. No Aláfia, a gente sempre trabalhou um eu politico mais embativo.

O lançamento da carreira solo é um passo em direção a tua independência e experimentação como artista?
Eu sempre quis ter um trabalho solo e, por vários motivos, só aconteceu agora. Numa fase ótima da minha vida, me sentindo muito mais segura sobre quem eu sou e o que quero do meu trabalho. Meu disco é um projeto de autoafirmação artística, no qual eu provo para mim mesma que sou capaz de dar novos passos e realizar novos projetos a partir do meu próprio olhar.

Aproveite e assista abaixo o episódio da websérie “Canto” dedicado à Xenia França:

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03/10/2017

Jornalista e feminista interseccional.
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Iarema Soares