No último dia 5, Chico Salem lançou “Sangue“, single inédito e abrasivo, em parceria com Zeca Baleiro. Composta pelo próprio artista e o companheiro de vida (e palcos) Arnaldo Antunes, a canção surge em um dos momentos mais delicados e isolados do país — ainda que tenha sido escrita um ano antes do cenário atual.
Como prévia do próximo trabalho, ansiado ainda para 2021, a música retrata as tensões do Brasil e prepara um grito de revolta. O projeto chega logo após os lançamentos “Só Que Não” e “Beijo de Rimbaud“, parceria com Felipe Antunes e Lenna Bahule.
Em entrevista exclusiva concedida à Noize, o artista refletiu sobre os próprios anseios e processos criativos, além de compartilhar os detalhes sobre a próxima produção. Leia abaixo:
Como você está sentindo o lançamento de “Sangue”?
Estou super feliz, muito contente. Tivemos uma recepção muito calorosa com o pessoal escrevendo muito, agradecendo por esse “grito”. A música está indo super bem nos streamings. Fico feliz com esses 20 mil plays no Spotify. Para um artista independente, esse é um número relevante e estou muito contente pela recepção no meio político e dos amigos repostando em suas páginas. Troco ideia direto com o Zeca [Baleiro] e com o Arnaldo [Antunes] de como a música tem ido bem.
A música tem um discurso super forte e você mal sabia que viveríamos em uma pandemia. Como foi revisitar o som e perceber que ela fazia muito sentido com o agora?
Pois é, as grandes canções — não que necessariamente ela seja uma grande canção [risos] —, mas elas têm esse poder, né. De serem meio atemporais, de poderem ser contextualizadas a qualquer momento. Ainda mais no Brasil que uma música de protesto sempre vai poder ser adequada a uma determinada situação que está acontecendo. Mas de fato, a letra de “Sangue” foi escrita pelo Arnaldo Antunes duas semanas antes da pandemia começar. E logo depois que começou esse processo de abertura e as pessoas fazendo festas, eu escrevi para ele: ‘Cara, você previu? Como você sabia que isso ia acontecer?’. Parece que a música já foi feita nesse contexto de pandemia, né, então tem um lado meio premonitório. Mas também tem um lado, que, na verdade, fez com que a pandemia só ressaltassse os aspectos de um Brasil colonial, escravocrata e elitista. Então é uma música que, na verdade, cabe em qualquer contexto. Mas dentro da pandemia, ela fica muito forte. Ainda mais com essa fala: ‘Tá tudo bem, tá tudo normal, ninguém se importa’. É uma música que, de certa forma, a pandemia bateu a favor dela.
Interessante. E como tem sido pensar em novas composições durante esse período? Como sua inspiração tem te tocado?
Funciono muito por projeto, então a minha cabeça, às vezes, fica meio adormecida. Mas quando tenho um projeto em mente, ela volta a pensar. De fato, no ano passado, eu estava muito afastado do meu lado criativo. Bem introspectivo mesmo. Mas no fim do ano, desenhei esse álbum que eu vou lançar em 2021 chamado Canções de Guerra, Gritos de Amor. É um disco que traz um lado meu muito verdadeiro e vísceral, um lado de quem quer denunciar, protestar, mas eu sou um romântico sem cura [risos]. Um romântico incurável. Então, eu resolvi trazer um pouco disso para esse álbum. De certa forma, ele é meio esquizofrênico, porque é uma porrada e vem uma super canção de amor. Porrada e amor. É até comum o fator transformador que isso se dá, acho muito interessante como o amor toca as pessoas, amacia. Que aí você pode vir com uma música mais forte e depois relaxar. Então, com esse lote na mão, comecei a ficar mais criativo.
Acabei de finalizar uma versão do Leonard Cohen, uma música que ele escreveu para a Janis Joplin, que será uma das próximas a sair. Também estava trocando mensagens com o Zeca agora e estamos finalizando uma versão de uma música do Pablo Milanés, um cantor muito importante nos anos 1960, durante toda a ditadura da América Latina. É uma música muito bonita que se chama “Eu vou pisar às ruas novamente”. E também é uma música que cabe na pandemia, né. Então minha cabeça está a mil, estou em uma fase muito bem produtiva. Tanto para compor, como para finalizar umas coisas que eu já tinha no estúdio.
Além do Zeca, tem mais convidados do disco que você pode compartilhar com a gente?
Claro! Tenho uma parceria que se chama “O Ódio, Meu Amor”, que é uma música que eu escrevi, dei para o Chico César e ele musicou lindamente. A música foi gravada no disco da Paula Mirhan, uma cantora que eu gosto muito. Ela fez um disco sobre o ódio, então essa música eu fiz como uma encomenda para o disco, mas vou gravar. Já está gravada, na verdade. Tem mais parcerias minhas com o Arnaldo, com Edu Mantovani. Sou um cara muito das parcerias, tenho esse tesão em compartilhar uma ideia, uma melodia com alguém e ver o que vem do outro lado. Sempre acreditei nesse poder do encontro: que um + um é mais do que dois. É dois + tudo aquilo que surgir desse encontro. O disco também vai ter participações vocais, o próprio Zeca está cantando “Sangue“, Arnaldo está cantando “Naufrágio“, que é uma parceria nossa. Quero ver se o Chico [César] grava uma voz na música do Ódio, enfim, se deixar, eu convido todo mundo que eu gosto para participar [risos].
Você sendo cantor, compositor e multi-instrumentista, a música te emociona em lugares diferentes na hora de fazê-la? Como você começa a pensar em uma música?
Olha, o meu processo de composição é muito variado, muitas vezes surge uma ideia melódica que eu tô ali viajando, cantando. Tenho uma memória muito curta, então quando essas músicas aparecem para mim, geralmente gravo no celular para não esquecer. E depois de meses, anos, acho essas músicas de novo. Como foi com “Sangue”, que é uma canção que eu fiz há mais de 10 anos. Na época, eu tinha feito uns shows com a Pitty e acabei fazendo essa música. Perdi, achei ela recentemente e falei: ‘Ó, Arnaldo! Achei uma música aqui, acho que ela tem a ver com você!”’. Mas às vezes quando começo a escrever uma letra, me vem uma frase na cabeça e aí a partir disso começo a compor. As vezes mando para alguém. Tem amigos que me mandam as letras, e eu faço a melodia. Então é um processo bem variado. Mas sempre tocado por uma emoção, é difícil eu fazer uma coisa que não me emocione, que não esteja acessando alguma emoção minha.
Teve um certo distanciamento, em questão de tempo mesmo, entre as suas obras. Por que sentiu que agora era o momento certo de lançar um novo projeto?
Na verdade, eu nunca tive um método muito pragmático de carreira. Meu primeiro disco é de 2002, fiquei 14 anos sem lançar nada, não por falta de vontade, mas enfim, fui muito tomado pela carreira de instrumentista acompanhando o Arnaldo. E aí lancei em 2016, e dessa vez que eu lancei, eu não queria demorar tanto tempo para lançar coisas novas. Então, em 2020 lancei o “Só Que Não”, que teve uma repercussão super legal, feito com mais de 130 pessoas comprando a ideia. Mas aí no fim do ano passado, senti esse desejo, tinha muita coisa para falar, e não ia dar para esperar muito.
É um processo muito orgânico, eu acho. Quando chega em um momento em que eu não estou aguentando mais, eu libero. Mas isso não faz parte de uma estratégia de carreira: ‘Já lancei um disco há dois anos, e preciso lançar outro’. Na verdade, acho que sim, não é legal demorar tanto tempo como eu demorei do primeiro para o segundo disco, mas eu acho que ele tem que ser um processo mais orgânico, que vem do desejo de dizer algo, de pôr algo para fora.
O que você acha que mais mudou entre os Chicos de “01” (2002), com seu primeiro disco, “Maior ou Igual a Dois” (2016) e o que vem agora?
Que difícil. Acho que o Chico de 20, 25 anos, era um Chico mais sonhador, que confiava mais nas pessoas, nos processos. A gente vai ficando mais velho e mais cascudo, vai percebendo que um processo de uma carreira não tem essa magia de que você vai lançar um disco e vai explodir. Você vai entendendo que é um processo mais de construção. Acho que esse Chico de hoje está menos comprometido com uma estratégia e mais comprometido em ter uma relevância dentro do segmento que eu escolhi que é a música. Então, antes de gravar uma canção, qualquer projeto, eu penso: ‘Vejo alguma relevância nisso? Esse projeto pode mudar alguma coisa? Pode fazer alguém se fazer alguma pergunta?’. Se a resposta for sim, essa é a justificativa que, para mim, me autoriza a fazer qualquer coisa. E isso era algo que eu não tinha antes. Hoje sou um cara mais criterioso com as coisas que eu lanço, estou sempre me questionando se vale a pena alguém gastar 3 minutos para ouvir isso no Spotify.
Você tem mais de 20 anos ao lado do Arnaldo e já colaborou com Marina Lima, Marisa Monte, Carlinhos Brown e muitos outros artistas. Com isso, qual foi a coisa mais importante que você aprendeu sobre música até hoje?
Olha, a mais importante talvez eu não consiga te dizer, porque são muitas. Mas acho que, primeiramente, eu pude, ao lado do Arnaldo, assistir de um lado de sideman, de quem está dando toda a segurança e estrutura para o artista poder se desenvolver. Aprendi muito da parte operacional, de produção, o que funciona, o que não funciona. As viagens, os tempos, o profissionalismo de fazer aquele pouco tempo render em uma passagem de som, então quando eu sigo uma carreira solo, autoral, sinto que vou para um lugar muito mais maduro. Além disso, o que também viabiliza um diálogo com a banda, com a equipe, porque durante muito tempo estou do outro lado, então eu sei o que é importante para quem está ali. Acho que é isso, de sempre estar dos dois lados, de entender que quando estou na posição de sideman, tenho que estar completamente na humildade de oferecer todo o conforto para o artista e saber que quando eu estou na linha de frente, cantando, preciso que a banda me dê esse conforto também. Saber pedir isso, sem ser autoritário, acho que isso é uma coisa super importante. Mas assim, especialmente com o Arnaldo, para mim, ele é uma referência artística absurda, essa inquietude dele, de jamais se prender a um formato, um modelo, um estilo e estar sempre buscando fazer arte com qualquer ideia e frase. Acho que isso é uma coisa que eu aprendi muito com ele. De entender que qualquer fala, tema, pode virar uma canção, uma arte. É um legado muito forte que eu levo dele. Ele é o grande totem que eu elejo.