A relação com a virtualidade em 2020 está mais intensa do que nunca e, por mais que não estejamos todos os dias querendo interagir nela, é com gratidão que celebramos sua capacidade de promover reuniões mesmo à distância. Só assim foi possível propor uma roda de conversa – em contexto pandêmico – para dar conta de conhecer mais os e as artistas que fazem parte de um projeto essencialmente coletivo: o Ressoa.
Ele é um dos frutos do Coletivo Palma, que reúne profissionais da cultura do Rio Grande do Sul ao redor do estímulo a artistas locais e da vontade de fazer da música veículo de transformação social. Selo, produtora cultural e musical, o Palma faz do Ressoa seu canal de divulgação e profissionalização de artistas gaúchos independentes. Hoje, 19, inicia-se a sequência de singles inéditos dos músicos que participam do projeto. Na largada, Samba de Máquina com a canção “Maio”.
Até 11 de dezembro, o Ressoa vai soltar um single toda a semana; fique de olho para conferir os trabalhos de Pâmela Amaro, DUDEL, Nina Nicolaiewsky e Gabriela Lery, Handy, Batuca na Bituca, Wazla, Anico, Oliva e Giovanna Mottini. Ao final, eles ainda vão compartilhar saberes entre si em uma rodada de cursos. Entramos no embalo e propomos a eles uma corrente de perguntas e respostas. Um artista recebe uma pergunta de outro colega, responde e já engata em uma pergunta para um terceiro colega. Ficou confuso? Simplifique: desça e confira na sequência a entrevista coletiva com os dez artistas!
Samba de Máquina: O que vocês valorizam no processo de criação em duo?
Nina e Gabriela: Para nós, a beleza da criação em duo está na imprevisibilidade dos caminhos. “Teletransporte” foi escrita aos poucos, trocando mensagens por WhatsApp. Nesse processo, nossas ideias foram se encaixando, se complementando, equilibrando nossos gostos e jeitos de forma muito singela. Conseguimos criar um imaginário comum que possibilitou que escrevêssemos uma canção distante daquilo que faríamos sozinhas; e, ainda assim, extremamente genuína dentro dos nossos fazeres artísticos. No nosso caso, o processo de compor a duas não foi sobre preencher espaços pré-designados; foi sobre encontrar uma terceira voz possível, que parte das nossas, mas se descola e se sustenta por conta própria. E a imprevisibilidade está justamente aí, nessa grata surpresa do encontro, do novo, do que é compartilhado.
Nina e Gabriela: Como foi o processo de composição da música?
Batuca na Bituca: A “Monocromia” foi composta em duas fases. Na primeira, em 2018, a canção apareceu naqueles momentos em que todos os sentimentos estão transbordando e sua única opção é transcrever o que a alma está sentindo. O segundo momento, foi quando começamos a trabalhar no conceito do álbum Antes De Envelhecer em 2019, pois havia um cuidado em relacionar o tema da música com o tema do álbum. “Monocromia” acabou se tornando a saudação da passagem do tempo na perspectiva do amor romântico do álbum, onde o eu lírico reflete sobre o tempo passado e vivido com a pessoa amada de maneira aclamada, na mesma intensidade em que saúda o futuro e a vida ao lado dela. Uma perspectiva de um relacionamento que busca sua melhor tonalidade, como se as cores de suas almas fossem se misturando ao longo do tempo, tendo cada um absorvido o melhor do outro. Ficando apenas uma cor, um tom. Sendo o tempo o encarregado de mostrar aos amantes o que de fato é necessário guardar para o futuro.
Batuca na Bituca: Duda, conta pra gente como está sendo a transição da Duda Rocha para a Dudel e quais são as influências em seu novo trabalho? Na perspectiva de uma cantora e compositora do Vale do Paranhana-RS, de que forma a pandemia afetou seu processo de criatividade?
Dudel: Eu estou na estrada há mais de 15 anos fazendo covers, cantando composições de outras pessoas. Há cinco anos eu dei início a um projeto solo, que era para ser a minha identidade com a arte que eu faço. Naquela época, recebi várias canções de amigos, tentei encaixar a minha fala naquelas canções, com a minha interpretação, mas nunca estava do meu jeito, com a minha “cara”; sempre era a cara dos amigos ou de quem produzia, não chegava a uma sonoridade que realmente tivesse a ver com a minha personalidade e a forma com que eles me enxergavam era diferente do que eu queria passar. Quando participei do Girls Rock Camp PoA, a minha percepção como artista foi totalmente alterada, de forma que consegui perceber o motivo que o resultado nunca chegava ao que eu queria passar a mensagem: eu precisava tomar um lugar que era meu e compor o que eu quisesse passar, ou encontrar meninas que se identificassem e pudessem contribuir nas composições. Então, decidi mudar o nome, peguei o apelido de infância e acabei estudando instrumentos, me reconhecendo como a compositora que sou. Posso dizer que, sim, o Camp mudou totalmente a minha vida artística. Foi um marco. Assim nasceu a DUDEL e esse single que vou lançar pelo Ressoa. Eu compus a letra e um pouco da melodia, depois encontrei três rapazes geniais que souberam respeitar as minhas influências e entenderam como eu realmente sou e quero que meu trabalho ressoe. A pandemia não afetou a criatividade, pelo contrário, o tempo obrigatório em casa tem sido um fator incrivelmente produtivo em relação as canções, consigo compor bastante coisa e já estou louca para colocar isso no mundo em breve.
DUDEL: Num mundo caótico em relação a todas estas transformações pelas quais estamos passando, como tu deseja que tua música impacte a vida das pessoas?
Wazla: Na verdade, não penso muito sobre “impactar” pessoas com a música, prefiro entender isso como uma possível consequência. No processo criativo, o que mais me toca é criar algo com o qual me identifique, consiga me ver ou, simplesmente, me expressar sobre temas que me são relevantes. Este é um caminho que comecei a vislumbrar com músicas mais recentes, embora as transformações feitas já em “Espectro” tenham me deixado realmente satisfeita. Digo que novas composições com temas que me atravessam estarão mais presentes, como algumas crises, espiritualidade, meio ambiente e a causa animal, que vem cada vez me impactando mais, então consequentemente, nesse sentido, passar alguma mensagem sobre isso é importante pra mim, uma vez que a ação das pessoas afeta todo o meio ambiente e a qualidade e dignidade da vida animal.
Wazla: Quais as aspirações para o futuro artístico?
Pâmela Amaro: Eu desejo gravar um disco só com canções autorais, um disco de samba. Se conseguir isto, já realizei um dos propósitos da vida. Quero sentir como este disco poderá impactar o surgimento de novas compositoras, sobretudo, incentivando mais mulheres pretas sambistas. Depois, penso em voltar a fazer teatro, ainda quero atuar novamente, quem sabe em musicais!
Pâmela Amaro: Quais tuas referências musicais pra arranjar e compor?
Handy: As referências são muito diversificadas pois acredito que, seja pra compor, arranjar ou tocar, o exercício de escuta deve sempre se fazer presente. Os pagodeiros como Belo, Tiee, Diney e Prateado são referências cruciais do meu fazer musical tanto quanto músicos de jazz como Gonzalo Rubalcaba e Tânia Maria. As fases que vivemos como indivíduo são muito influenciadoras da nossa escuta e, em tantas dessas fases, já visitei muito João Bosco, Tom Jobim, Emílio Santiago, Stevie Wonder, Michael Jackson, Léo Santana (do pagodão baiano), e assim decolamos, viajando o mundo na busca por definir as nossas referências.
Handy: Levando em consideração as coisas que tu almeja, o que seria o “chegar lá” pra ti ou como definiria o sucesso dentro da tua própria trajetória?
Givanna Mottini: Acho que neste exato momento que estou escrevendo o meu “chegar lá” tá mudando bastante. Sempre quis muito chegar em um certo objetivo, com certas validações de certas pessoas, ser reconhecida, etc. Mas essa coisa de pensar sempre num objetivo me tirava muito do processo. “Chegar lá” acabava sendo sempre um gatilho pra ansiedade e pra impaciência comigo mesma. Hoje, vejo que querer pular etapas ou me cobrar demais acaba sendo só sofrimento. Hoje, não penso tanto em “chegar lá”, embora ache necessário estar sempre desejante para que eu tenha algo que me guie e eu não pare nunca de seguir meus sonhos. Portanto, sucesso pra mim é estar presente no processo todo da carreira artística. É estar aqui e agora, tipo Gilberto Gil: “o melhor lugar do mundo é aqui e agora”. Ter paciência comigo e com es outres, respeitando os tempos da vida. Sucesso pra mim é ter tranquilidade e segurança pra eu ser quem eu sou de verdade, tanto na vida quanto na arte. Sucesso pra mim é estar rodeada de pessoas amorosas e respeitadoras, ter tempo pra criar, concretizar e lançar. Sucesso pra mim é poder respirar e derramar o que vem de dentro. Almejo estar sempre completa, podendo ser autêntica e respirante.
Gipvanna Mottini: Como tu te conecta com tua inspiração e criatividade?
Anico: Meu processo de criação sempre me pareceu diferente por conta de tocar mais de um instrumento. Precisei entender como eles funcionam, existem e se manifestam dentro e fora de mim para descobrir na individualidade de cada um como todos se conectam. Por exemplo, quando estou na bateria, movimento o meu corpo inteiro e deixo tudo fluir, como se eu estivesse voando, com leveza e força. É intenso, como se nada me segurasse naquele espaço. Já no piano, é como se eu estivesse no mar. É delicado… e profundo também, como se as mãos estivessem tocando ondas, num movimento de vai e vem. Tudo acaba sendo intenso e natural porque acredito que sentir o corpo e colocar pra fora o que sinto, e o que também não sinto, é uma forma de conexão. E cantar é uma aventura nova para mim, já que este é meu primeiro single posto no mundo. Só fazia isso dentro do quarto, sozinha, cantando baixinho pra ninguém entender o que estava sendo dito. Com o tempo, aprendi que é necessário falar.
Anico: Conheço um pouco da tua trajetória e fico curiosa pra entender: quanto o meio gospel o influenciou? Porque também conheço esse lugar e sei que difícil desvencilhar. Como foi o processo pra chegar aqui, nesse momento teu?
Oliva: Foi bem difícil. Ser parte de um ministério de louvor e crescer na igreja me ajudou a perceber a minha capacidade criativa e me deu, de certa forma, um espaço na música… Por isso tudo, sou muito grata. Só que no momento que eu não me encontrei mais ali, naquela maneira de criar e me expressar, não foi automático perceber que poderia fazer essas coisas de outra forma. Demorou muito tempo até me aceitar como artista e entender que o objetivo do que eu faço é tirar de dentro o que dói ou o que eu não consigo descrever muito bem, e transformar tudo isso em algo concreto e que possa ser compartilhado porque, assim, já não é mais meu e sim do mundo. As coisas pesam menos assim. Comecei a desenhar o meu caminho pra além do gospel com esse exercício de expurgar o que passa aqui dentro e entender que isso também é um tipo de conexão comigo, com o mundo e com o que quer que seja que existe acima de nós. Sinceramente, esse processo dói bastante porque, além de me entender como pessoa criativa, precisei me entender como ser humano e me redescobrir, descobrir a minha personalidade, modificar os meus processos criativos e rever os meus objetivos. Eu não me encontrei como compositora e cantora logo que decidi me desvencilhar desse ambiente e ainda estou entendendo quem eu sou como mulher, cantora, compositora, artista. É doloroso, mas eu tento transformar essa metamorfose em música e, apesar dos pesares, esse caminho me trouxe até aqui e, aqui, eu me sinto confortável pra existir.
Oliva: Que espaço a produção de “Maio” teve e ainda tem no processo de descoberta da identidade de vocês enquanto Samba de Máquina? E na percepção do potencial criativo individual e coletivo?
Samba de Máquina: “Maio” foi a primeira faixa produzida pelo projeto e serviu como uma janela pra descobrirmos do que se trata o samba de máquina, a estética industrial dos timbres, o arranjo dissonante simulando um samba, a letra apontando pra um lugar desconfortável e necessário, tudo isso junto nos sugeriu a proposta de estética que refletiu em todas as outras musicas do álbum. Por ter sido a primeira musica a ser trabalhada, “Maio” estabeleceu uma ponte de diálogo criativo entre nós. Podemos perceber como funciona o desempenho de cada um no processo criativo e performático de fazer uma musica do zero.