Exclusivo | Do tupi ao kimbundo, Tom Zé canta o país em “Língua Brasileira”

20/06/2022

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Gabriela Amorim

Por: Gabriela Amorim

Fotos: Ariel Fagundes

20/06/2022

Tom Zé, 85, lança nesta sexta-feira (24) o álbum Língua Brasileira (2022), pelo Selo Sesc, com onze canções produzidas em parceria com Daniel Maia e Daniel Ganjaman. Partindo da ideia inicial de ser a trilha sonora do espetáculo de teatro homônimo, que teve consultoria geral de Caetano Galindo e direção de Felipe Hirsch, o disco se materializa agora em formato físico e digital com proposta de investigar a língua e a cultura brasileira, celebrando suas especificidades e riquezas.

Estreando quase cinco anos após o álbum Sem Você Não A (2017), Língua Brasileira segue o ritmo de criações questionadoras da mente tropicalista de Tom Zé, fruto de seus estudos multidisciplinares. Para a produção do novo disco, foram necessárias pesquisas profundas em Teatro, Letras e Antropologia. Durante dois anos, Hirsch e Tom Zé desenvolveram um trabalho de análises sobre o idioma falado no Brasil, contando com as contribuições de acadêmicos e especialistas em línguas como o kimbundo e o tupi, incluindo Yeda Pessoa de Castro, Viveiros de Castro e Eduardo Navarro

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Tom Zé em sua residência na Zona Oeste de São Paulo. (Foto: Ariel Fagundes)

Língua Brasileira apresenta, em ordem, as faixas: “Hy-Brasil Terra Sem Mal”, “Pompeia – Piche no Muro Nu”, “Língua Brasileira”, “Unimultiplicidade”, “Gênesis Guarani”, “Metro Guide”, “Índio Desliga Jaraguá”, “A Língua Prova Que”, “San Pablo, San Pavlov, San Paulandia”, “Clarice” e “Os Clarins da Coragem”, esta última sendo o single do disco, lançado no dia do “descobrimento” do Brasil, em 22 de abril. Na letra, mesclam-se português e tupi-guarani, provocando uma reflexão sobre a chegada dos portugueses ao Brasil, exibindo um país “que até hoje não há” e que “elege carrascos letais”. 

Com a energia em alta e mantendo um ritmo constante de trabalho, o cantor e compositor conta à Noize que o segredo de sua longevidade criativa é a sua esposa, Neusa Martins, 81, com quem segue isolado em residência na Zona Oeste da capital paulistana, após ter tomado quatro doses de vacina. “Meu único segredo é Neusa”, diz Tom Zé com bom humor.

O artista irá realizar dois shows de lançamento do disco, nos dias 9 e 10 de julho, no Sesc Vila Mariana (Rua Pelotas, 141, Vila Mariana, São Paulo). Os ingressos serão vendidos de forma online, pelo site oficial do Sesc São Paulo, a partir do dia 28 de junho e também presencialmente, nas bilheterias das unidades, no dia 29 de junho. O valor dos ingressos variam entre R$ 12,00, para credenciados, e R$ 40,00, a inteira. 

A seguir, confira, na íntegra, nossa conversa.

NOIZE: O disco Língua Brasileira (2022), que tem previsão de lançamento para o dia 24 de junho, dia de São João, foi uma criação sua com a parceria de Felipe Hirsch, que também assina a direção artística do álbum. Como foi para você realizar a produção de dois anos desse projeto?

Tom Zé: Bom, na verdade esse espetáculo [a peça “Língua Brasileira”] ia estrear em março de 2020. O Felipe me consultou de fazer um espetáculo com músicas minhas, e eu mandei o que eu acho que é o meu melhor disco, Estudando a Bossa (2008), que tem as coisas mais bonitas. Mas aí ele me disse: “Não, Tom Zé, eu descobri uma música sua, ‘Língua Brasileira’ [lançada no Imprensa Cantada (2003)], que tem mais a ver com o que meu pessoal trabalha”. Eram pessoas especialistas em língua, como Eduardo Navarro, Caetano Galindo, Yeda Pessoa de Castro… E, durante o tempo todo, a cada assunto, eu recebia um calhamaço [de estudos deles].

E no princípio não tinha ainda nem pandemia. Quando a pandemia começou, eu estava dentro de casa noite e dia, porque eu não componho com facilidade, e eu sou um trabalhador bem assanhado, então eu ficava noite e dia trabalhando aqui. Fora que, no princípio [da pandemia], eu nem sabia se tinha ou se não tinha, porque eu não saía, e dentro de casa não se usava máscara, então estávamos eu, Neusa e a Tania [Lopes, sua produtora] vivendo em outro mundo. O fato é que eu trabalhei dois anos, de manhã, de tarde e de noite.

Daniel [Maia], o guitarrista da minha banda, que está sempre comigo, é um pouco a cabeça da coisa. Eu fazia os rascunhos de uma música e pedia a ele para tocar, porque tem gente que não pensa na música, mas toca (risos). Eu tinha uma ideia se a coisa estava bem para um arranjo ou se estava mal, porque o Daniel estava diariamente comigo. Depois de cerca de dois anos, começou a se falar novamente em estreia [da peça], e eu já tinha todas as músicas que eram pedidas. Teve músicas que foram modificadas quatro ou cinco vezes, ou modificadas na hora de fazer a gravação definitiva.

[O produtor Daniel] Ganjaman foi uma colaboração que deu confusão, mas acabou sendo mais eficiente. Porque, veja bem, eu estudei numa escola de música e ele estudou na rua, ele é um professor. Estudou fazendo a música punk. Então, são duas escolas muito diferentes. Quando um faz a música e passa para o outro, não tem a mesma continuidade, aí eu arrancava os cabelos (risos). Mas fiquei muito contente do Ganja ter estado junto, porque o disco tem uma característica rítmica, que principalmente ele foi a presença que mais contribuiu.

O Ganja é uma pessoa bondosa e humilde. Quando ele ouviu minhas peças, ainda desastradamente gravadas, ele teve a bondade de entender que aquilo era um rascunho. Minha formação é universitária, mas e daí? Não é melhor do que a dele, não.

NOIZE: O disco é um grande projeto seu e de sua banda, porém na faixa título, “Língua Brasileira”, você traz a participação da jovem artista Maria Beraldo, por exemplo. Como você vê a sua relação com a juventude da música brasileira?

Tom Zé: A minha relação com essa juventude se deu muito por movimentos sociais. Quando me mudei para aqui [São Paulo], nos anos 70, a universidade PUC era como se fosse o meu quintal, então todo dia que tinha uma greve eu estava lá. Eu ia pro TUCA [Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo], então minha música sempre estava perto do público jovem que embarcavam nessa comigo. Até hoje, eu tenho muito orgulho do que a música brasileira faz, sigo acompanhando muitos artistas atuais.

NOIZE: O seu disco apresenta várias pegadas de um Brasil atual. Na faixa que abre o disco, “Hy-Brasil Terra Sem Mal”, você fala sobre uma utopia de ilha, sem fuzil e sem bala civil, e termina o álbum com “Os Clarins da Coragem”, que diz “Brasil que até hoje não há”, “que elege carrascos letais”. Como é pra você, um artista de 85 anos, enxergar o rumo que o Brasil está levando?  

Tom Zé: Olha, eu não faço propaganda. Será que as pessoas não sabem que falando mal, botando lá a fotografia do presidente, seja ela a mais feia que conseguem, estão falando do cara, fazendo propaganda? Eu não faço isso. Sobre o Brasil de hoje, eu digo que tem um perigo muito grande essa queda da escolaridade, da informação, da leitura. Um historiador que viveu antes de Cristo, chamado Políbio, noticiou um povo que abandonou suas lendas, começaram a voltar para a barbárie e mataram-se uns aos outros. Desapareceu esse povo assim. O Brasil tá, agora, nesse caminho. Você, na estrada pra Salvador, vê aqueles grupos de pessoas indo não sabem pra onde, porque não tem comida. É isso que eu tenho medo no Brasil: ir diminuindo a informação, diminuindo a escola, diminuindo o livro, diminuindo as artes em geral. A coisa vai ameaçando a ficar como a da tribo que chegou na barbárie.

NOIZE: Você já fez algumas faixas sobre São Paulo (“Augusta, Angélica e Consolação” “São Paulo Meu Amor” “A Briga do Edifício Itália com o Hilton Hotel”) e agora canta a letra de Douglas Diegues, “San Pablo, San Pavlov, San Paulandia”, que fala sobre os imigrantes que constroem a cidade e pergunta: “O que seria de você, São Paulo?”. Você conheceu a cidade em 1964 para participar da peça teatral “Arena Canta Bahia” e voltou em 1968 para residir fixamente. Queria saber qual a sua ligação com a cidade hoje? 

Tom Zé: Minha ligação acabou sendo de uma forma, que se fez por conta própria, que foi o bairro de Perdizes, é onde mais fico. Hoje em dia, por exemplo, todo mundo que é do bairro já me tem como uma laranja normal, eu vou pra lá e pra cá sossegado, às vezes as pessoas falam comigo, às vezes não, mas as pessoas me conhecem. Então, esse bairro, para mim, virou Irará, porque, lá, você fala “bom dia” com todo mundo, conheça ou não conheça. E, aqui, também segue assim, com as opções de gestos que são considerados comprimentos.

NOIZE: Nosso idioma é resultado de processo milenar de miscigenação, tendo ligação com línguas africanas e indígenas, e para esse projeto você teve auxílio de Eduardo Navarro, Caetano Galindo, Viveiros de Castro e Yeda Pessoa de Castro. Você pode contar um pouco sobre sua investigação atenta às especificidades brasileiras, no que diz respeito à língua portuguesa?

Tom Zé: Quando eu era pequeno na Bahia eu já tinha muito contato com o que aquele país me ofereceu, tive contato com tudo que a Yeda conta [nas suas pesquisas]. A Bahia é um país mais negro, é muito falada a língua negra, como muita coisa do Candomblé é falado em kimbundo, que acabou sendo a língua da África que mais influenciou o português. Não sei como é que [os brasileiros] podem falar o português do Brasil e serem racistas, porque estão falando uma coisa que se transformou. Em Portugal, é muito [enfatizado o som de] consoante. No Brasil, a língua é toda pousada nas vogais, se torna uma língua cantante, muito bonita. Porque, na língua kimbundo, em todo lugar que tinha uma consoante, se bota uma vogal. Tanto que a palavra “Brasil” termina em [som de] “U”: “BrasiU”. É uma influência que transformou a fisionomia da língua.

NOIZE: Na música “Metrô Guide”, você faz uma brincadeira entre o inglês e português, falando números de telefone da cidade de Nova York e também de Irará, sua cidade natal, como os números do hospital maternidade, SAMU, SUS, e também cita que na cidade não existe corpo de bombeiros. Como veio essa ideia de musicalizar números de telefone?

Tom Zé: Não tem incêndio em Irará [risos]. Eu tinha feito outra música, que falava sobre expressões faladas no metrô do Estados Unidos, “NYC Subway Poetry Department”, faixa do disco Tropicália Lixo Lógico, aí veio a ideia de musicar o caderninho, já que, no metrô, vem um guia sobre números de socorro público. No Brasil, se fala inglês pra caramba, e cada vez mais tudo tem inglês nesse país. Eu sugeri para Felipe [Hirsch] a ideia do “Metrô Guide”, só que, como tinha que ter algo relacionado com a Bahia, automaticamente pensei em Irará, que tem os telefones mais absurdos.

NOIZE: Existe algum segredo para se manter na arte e na música, até hoje, aos 85 anos?

Tom Zé: Meu único segredo é Neusa [Martins]. Eu tenho um sistema que é perguntar para Neusa o que ela achou dos meus trabalhos, isso me traz uma grande colaboração. Seja o trabalho, ou uma coisa qualquer, a partir do momento em que ela fala: “Isso não é digno de você”, para mim acabou, está encerrado. Às vezes, eu digo que é porque eu fiz mal feito, mas muito raramente [risos]. Outras pessoas já falam que ela é meu Google, e eu realmente aqui [na entrevista] já me queixei que ela não estava por perto para me ajudar. Então, ela é meu segredo.

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20/06/2022

Gabriela Amorim

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