“Depois de passar anos em um coma colonial, entre não-lugares, inseguranças e naturalmente alocado à margem, decidi saltar. Começo a existir nesse salto, livre, caótico, saturado, conflituoso e humano. De som e de ser”, reflete Seithy sobre o fio condutor de Haikai Espiritado, o seu primeiro disco lançado em junho. O compositor e luthier curitibano se inspirou nas sonoridades que o atravessam enquanto um artista latino-americano e amarelo.
No seu caldeirão de referências, há estilos musicais brasileiros e japoneses, e que inclui samba, noise, música eletrônica experimental, além de elementos como taiko, j-rock, enka e haikai. O primeiro single “Sem Nome”, lançado no final de 2021, marcou a estreia da parceria com o selo Diáspora, projeto do músico carioca Hugo Noguchi, que busca evidenciar artistas racializados.
No faixa a faixa a seguir, Seithy comenta as histórias que habitam as composições do disco de estreia:
“Encaixo”: Para mim mesmo, grito a vontade de pertencer, levando em consideração o meu corpo colonizado, encaixado, quadrado, redondo, porque independente da forma, ele nunca será suficiente para a branquitude. Uma dissidência me assombra – e em todos os contextos: nunca me permitiram existir sendo eu mesmo, então essa aflição palpita quase sempre na minha imagem, o meu silêncio é um grito, esse que vos sussurro entre os acordes.
“Sem nome”: Aqui, tento propor um exercício de reflexão, ao demonstrar como tudo – que não tem origem euro-descendente – precisa ser nomeado e valorizado pois a memória é a base da cultura. Se não vejo o nome, não lembrarei, não perpetuarei, estou morto. Num golpe de 1:17 de duração, a ideia é explorar a dinâmica frenética e incisiva com que esse não-lugar/território acomete os nossos corpos, sem eira nem beira, me pega toda vez que abro os olhos buscando me encontrar e me firmar aqui. Sobretudo, “Sem Nome” é um convite à reflexão para os ouvidos desatentos, na tentativa de que não mais sejam proferidas apropriações impróprias por corpos dissidentes, e que, a longo prazo, possamos viver em plenitude de quem somos de fato, cultural e individualmente. Corpos não-brancos em diáspora tendem ao delírio frenético, ao impulso que a fome de pertencer nos causa, são outras ansiedades que nos corroem, essas condições me trazem agressividade, entre taikos e sambas conturbados, o caldo espesso sonoro que se formou a partir disso vomitou essa música do meu violão pro mundo.
“Memorial”: Entre texturas de memória, aquilo que precisa ser lembrado reside tão longe nessa opaca “Améfricásia Ladina”. A vontade de ser reconhecido como nativo leva a necessidade de forjar a própria cultura, “a cultura é minha pra mudar” (como me disse @kemitchas), ela é um organismo vivo, feito de gentes, coletividade, ahistórica, popular, livre e descolonizada.
“Mundo Esperança”: Colônia Esperança, Terra, Nova Esperança, norte paranaense, onde fecundaram sangue do meu sangue, terra vermelha, sol, fartura, prosperidade, SONHO, SUOR E FÉ. Mais do que nunca, por conta do mundo que habitamos, as fronteiras geográficas não fazem sentido. Desse entrelaço de vislumbres de mundos é que parto e encontro Jadsa: ao me juntar a ela, pintamos futuros/presentes possíveis. É como se o macro e o micro fundassem um mesmo sonho e se fizessem a base para apoiar utopias de fé e liberdade. Sons e tempos formigam e confluem na margem do que se pode colorir na segunda música com maior tempo de duração do álbum. É como se as águas do Atlântico fizessem a misturação e a conexão precisa entre Bahia e Paraná.
“Monumento”: Memória cravada como um monumento, para lembrar de quem chegou aqui, quem aqui morreu, viveu e também nasceu. Monumento é um alento para que sempre haja lembrança e luta, que esse território da liberdade de ser quem se é, vale todo o esforço, ninguém tá sozinho! “Muitos espíritos salvaram a minha vida”, disse Negro Leo. A ancestralidade deve ser cultuada e tomada como parte do presente, para que essa espiral de tempo, que o você-memória, sirva de força para outros espíritos percorrerem sem medo a passagem deles pelo mundo. Como águas, que percorrem sem formas definidas, “Monumento” molha feito chuva o desejo imenso de existir. Beba dessa gota e se permita.
“Yukito”: Reconexão com os afetos diversos, me entendendo hoje como bissexual, escrevi “Yukito” propondo o medo e o desespero de quem ainda está se encontrando nesse universo de afeições. De certo modo, ainda vive coagido pela masculinidade a viver sobre uma certa conduta, então a música traz a memória dos corpos que provocam a cultura pop, como Yukito, do Sakura Card Captors, e Jimin, do BTS. No cerne dessa aflição, me desfaço em gritos e caos, que me permitem rasgar o padrão.
“Fado Frágil”: “Sasaeng” é o nome dado às pessoas que são muito fãs de K-idols, elas viajam o mundo todo para acompanhar turnês, tentam alcançar aquele ícone, aquela tentação, aquele que satisfaz a serotonina e o desejo mais carnal. Como um fardo, seremos nós portadores de lugar nenhum, corpos-territórios, eternamente caçadores de um território-nação-identidade para conseguir firmar o nosso espaço. Como um mantra entoado num rosário de mão, a ideia é justamente evidenciar essa prece-desejo em ruídos trincados, caminhos tortos, uma perseguição frenética, que exige agilidade e fluidez em cada passo, uma esquiva, um tropeço, mas sem perder o foco, ainda que a caça seja você.
“Espírito”: Nessa música, me entrego nu em um espaço onde nada tem sentido. Ela surgiu após duas sessões de improvisação. Em uma, sou eu e o violão vomitando o subconsciente em forma de som. Em outra, Hideo Handa, meu jichan, feito Clementina de Jesus, entoa cantos e improvisa palavras e sons, algo que ele fazia para os 11 filhos no final do ano. Em 1991, seis anos antes do meu nascimento, a família se registrou para manter a voz paterna viva. Essa canção resume o conceito de Haikai Espiritado. Existem forças para além da nossa compreensão, vórtices de um encontro caótico que nunca aconteceu nesta encarnação.
LEIA MAIS