Na noite de ontem, 22 de setembro, perdemos uma grande figura do soul brasileiro: o cantor, compositor e dançarino Gerson King Combo, estrela da cena de funk e soul da década de 70 que deixou sua marca na cultura do país.
Ele é considerado um dos pioneiros do movimento Black Rio: fenômeno de bailes blacks que tomaram conta dos subúrbios do Rio de Janeiro e que mobilizou discursos de exaltação do povo negro através da influência do soul e dos movimentos sociais antirracistas dos Estados Unidos. É nessa fase em que recebe as alcunhas de “James Brown Brasileiro” e “Rei do Soul Brasileiro”.
Conforme divulgado através da conta oficial de King Combo no Instagram, a morte do artista de 76 anos foi desencadeada por infecção generalizada e complicações de diabetes após uma súbita internação. Despedidas como essa nunca são leves. Para lidarmos com a sua partida, nos apegamos à sua contribuição para a cultura nacional enquanto um ícone negro com uma obra dedicada à máxima “Black Is Beautiful”.
Para a revista NOIZE #92, que acompanhou o vinil preto em 180g de O Dia Em Que A Terra Parou (1977), de Raul Seixas, no kit #028 do NOIZE Record Club, publicamos a matéria “All power to the Black Rio! Os bailes de soul do RJ e a repressão Militar”, que buscou apurar porque a Ditadura Militar se incomodou e investigou os bailes blacks da cidade. Na ocasião, tivemos a oportunidade de entrevistar Gerson King Combo em 2019.
Quando perguntado sobre a construção de uma identidade positiva enquanto homem negro, Gerson demonstrou a plenitude que o fez ser o amplificador de uma mensagem tão potente: “Sempre tive muito orgulho de ser negro. Bem antes do movimento estourar em 1976, 1977, eu já tinha plena consciência da minha negritude e de como minhas roupas, meu cabelo e minhas atitudes me representavam e como me sentia bem agindo assim”.
Abaixo, compartilhamos pela primeira vez a entrevista com Gerson King Combo com trechos que não foram publicados na matéria para a revista impressa. É a nossa forma de contribuir para que a memória e o legado desse artista sejam preservados. Obrigada, Rei!
Você lembra da sensação da sua primeira vez em um baile black? Por que esse espaço foi transformador pra você?
Comecei a ir no primeiro baile do Big Boy em 70 no Canecão, no Rio. Nesse baile tocava soul, muito James Brown, mas tocava rock também. Depois é que começaram os bailes no subúrbio, onde só tocava soul. Mas, nessa época, eu já tinha gravado dois compactos e o LP Brazilian Soul (1970), então já conhecia bem o som dos blacks americanos e já experimentava bastante com as misturas com os ritmos brasileiros.
Por que um movimento vindo do subúrbios e favelas e formado em sua maioria por pessoas negras parece assustar? Em quem dá medo [visto que foi alvo de investigação por dispositivos de segurança da Ditadura Militar]?
Infelizmente, o termo favela para maior parte da sociedade é sinônimo de violência, de brigas entre traficantes e tudo de ruim. Mas, na verdade, não é [assim]. A grande maioria das pessoas que moram nas favelas são trabalhadores e pessoas de bem. O movimento Black Rio veio também das favelas, mas veio basicamente dos subúrbios do Rio, onde residem muitos negros e mestiços. Não sei se dá medo, mas grande parte dos brancos não frequentavam os bailes porque eram bailes de música negra, onde os negros se encontravam para celebrar sua negritude. Eles preferiam ir nos bailes “Cocota” onde tocava rock, mas nunca tiveram o conhecimento que o rock também veio dos negros.
Havia muito medo de uma “Guerra de raças” por parte dos militares. Como você encara esse tipo de suspeita?
Na minha música “Mandamentos Black” [do álbum homônimo lançado em 1977] eu falo: “O que nós queremos é dançar, dançar e curtir muito som…”. Nunca achei que a guerra é a solução pra nada, a raça negra está presente em quase tudo neste país. Nós ajudamos muito a construir esse país, a cultura brasileira é muito em cima da cultura negra.
Na sua concepção, a repressão da Ditadura Militar foi um dos fatores responsáveis pelo o fim do Movimento Black Rio?
Acho que não, acho que foi um fator mais mercadológico. As gravadoras que antes se interessavam por nós passaram a lançar outros estilos e modismos costumeiros na indústria fonográfica nacional. Os bailes continuaram, com menos intensidade, mas estão aí até hoje.