Esta matéria foi publicada originalmente na edição 137 da revista NOIZE, lançada com o vinil de Olho de Peixe (1993), de Lenine e Suzano, em 2023.
O clima era tenso na casa de Lula Queiroga em 30 de outubro de 2022. Caso o xará não levasse a presidência no segundo turno, o compositor estava com as malas prontas para trocar Recife por Lisboa até o final do ano. “Me preparei para sair do país. Tudo o que eu falo e fiz na minha vida, não serve para esse mundo”, diz o artista em entrevista à NOIZE. O resultado acirrado das eleições trouxe alívio envolto em cautela, mas os planos de mudança foram abandonados.
Após viver no Rio de Janeiro do final da adolescência até os 30 anos, o escritor, hoje com 63 anos, fixou raízes nas margens do rio Capibaribe, em 1991, e nunca mais deixou a cidade onde criou os quatro filhos. “Pernambuco é um estado diferentão, culturalmente rico, dono do maior acervo rítmico do país – e o mais orgulhoso. A nossa bandeira é gay e exibe um arco-íris no meio, acho tudo isso sensacional”, divide Lula.
Como apreciador e estudioso da história local, ele ressalta que são essas particularidades da formação da região que compõem o que seria a alma pernambucana. Dentro desse combo, a geografia também deve ser levada em consideração: “É um estado profundo com um pequeno litoral. O pernambucano tem essa coisa de dizer que o encontro dos rios Capibaribe e Beberibe deu origem ao Oceano Atlântico. Essas prestações malucas refletem a ideia de sempre levantar o sarrafo, de sempre buscar se superar”.
O “rio das capivaras” tem 248 km de extensão e foi inspiração para poemas de João Cabral de Melo Neto, conterrâneo de Lula e um de seus escritores favoritos. Em seu novo disco, Capibaribum, lançado em cinco de abril deste ano, Lula mergulha nesse universo mítico para criar os temas que habitam o registro. Com 10 faixas, o registro traz participações de Ailton Krenak, Chico César, Marcelo Falcão, Zé Renato, Martins, Ylana Queiroga, Bruna Alimonda e da dupla Caju e Castanha.
Ao longo de 40 anos na música, lançou seis trabalhos solo, e soma mais de 200 composições gravadas por nomes de diferentes gerações, como Marcelo Falcão, Elba Ramalho, Ney Matogrosso, Milton Nascimento e Roberta Sá. Para trabalhar com a escrita, segundo o experiente letrista, basta se manter atento ao presente: “Viver é criar. Estou o tempo todo colecionando palavras. Alguém falou algo lá longe, mas que me saltou aos ouvidos, eu roubo para revisitar em outro momento. Não é inspiração, é atenção”. As anotações são feitas em cadernos espalhados pelos cômodos da casa, nos computadores e celulares, o que estiver à mão resolve.
Ao citar exemplos de ideias que lhe despertam curiosidade, divide algumas músicas que estão em processo de lapidação. Uma delas seria o “Forró do Nevoeiro”: “Todo mundo fala do forró pé de serra, mas na serra tem nevoeiro, então ninguém vê quando a névoa desce, deixando todo mundo louco. É o encontro do Ensaio sobre a cegueira [livro do escritor José Saramago] com o forró”. Já em “Passagem Secreta”, ele se encantou com a ideia da curva da luz, de Albert Einstein, e com a possibilidade de um labirinto em linha reta.
“Esses jogos mentais e essas brincadeiras são o meu alimento. Você começa a construir com as palavras e passa a achar graça, então o momento do garimpo é essencial e pode durar anos”, comenta o compositor. Em seu trabalho solo, Lula aprecia sem pressa o sabor de cada letra em infinitas possibilidades de serem encadeadas. Acima de tudo, o texto musicado precisa unir som e significado: “Não adianta a palavra dizer coisas, mas ela é feia na hora de encaixar com as outras. Eu trabalho muito a questão fonética porque não adianta a música existir, se você não entende o que a pessoa está cantando”.
No passado, o processo de colaboração, se não fosse ao vivo, poderia ser por mensagem na caixa eletrônica. Hoje em dia, Lula continua trocando figurinhas pela tela do computador. Fora a dinâmica, o processo em si se renova a cada ocasião, mas a abordagem se repete, pois pode surgir a partir de um verso ou em cima da melodia. Com os parceiros mais frequentes, um esboço por áudio no WhatsApp já dá pano pra manga: “Tento seguir as repetições, então eu levanto os fonemas da melodia e começo a dar um sentido para aquilo. Colocar uma palavra diferente do que a pessoa já vem cantando é complicar a vida”.
Como muitos de seus colaboradores são de longa data, ele já conhece o vocabulário e a forma como essas pessoas se comunicam. “A felicidade da criação é insubstituível. Quando esse momento acontece desperta algo religioso, ele suplanta tudo, parece que você justifica a sua existência. Tem gente que quer iate, jatinho, eu quero ter o refrão de uma canção”.
Ocupação do espaço sonoro
Foi na juventude no Rio de Janeiro que Lula entendeu o papel que a música teria na sua vida. Ao mesmo tempo em que tocava em bandas com os amigos, mantinha uma carreira como roteirista para televisão, na qual escrevia para Chico Anysio e Renato Aragão. Ainda que seja um prolífico compositor, esse lado não dominou todo o seu tempo. Há 27 anos, desenvolve projetos culturais e audiovisuais na Luni, a produtora criada ao lado da esposa, Danielle Hoover.
“A música sempre está perto de mim, mas não queria melar porque não paga boleto. Compreendi muito cedo que dar certo tem a ver com empenho pessoal e sorte, e que o grande momento poderia não acontecer. Na época, lembro de pensar que não deixaria algo tão sublime ser a razão do meu fracasso ou da minha angústia”, divide o artista. O período mencionado seria o início dos anos 1980, na época em que vivia em Botafogo em uma casa com nove jovens. A turma batizou a residência de “trincheira nordestina”, por abrigar pernambucanos e paraibanos, como Lenine, Ivan Santos e Bráulio Tavares.
Em comunidade, os moradores compartilhavam discos, leituras e guarda-roupa. E juntos, se apresentavam pela cidade sob diferentes nomes, sempre entregando o máximo de energia. “A gente deveria perder dois litros de água por show. Era tanto suor e adrenalina que acabou chamando a atenção das gravadoras, em uma época onde o Rio estava meio blasé”, lembra. Com o repertório criado para o show “Trem Fantasma”, apresentado no Parque Lage no final de 1982, a Polygram os convidou para gravar o disco Baque Solto (1983), que reúne composições de Lula e Lenine em colaboração com Erasto Vasconcelos, Pedro Osmar e Zeh Rocha.
O álbum não fez o sucesso esperado, mas os amigos continuaram criando e tocando juntos enquanto moravam na mesma cidade. Em dado momento, a dupla, ao lado de Bráulio Tavares e Ivan Santos, ensaiavam com o nome de Wolfgang, mas nunca chegaram a pisar no palco. Algumas composições trabalhadas nesse período entraram em Olho de Peixe (1993): “Mais Além” e “O Último Pôr do Sol”. “Eu tenho uma pendenga com Lenine, porque ele botou ‘O Último Pôr do Sol’ e eu achava que o nome deveria ser mais épico – ‘O último homem no dia em que o sol morreu’. Bem mais grandioso, né?”, questiona Lula.
A dupla estava no Jardim Botânico quando o compositor apresentou uma frase que estava cantarolando há dias: “no dia que você foi embora eu fiquei…”. Havia um quê de samba misturado com maracatu ambientado na ficção científica, a faísca que deu origem à música. Eles buscavam símbolos que traduzissem a vontade de ser universal e eterno: “A letra [de ‘O Último Pôr do Sol’] nasceu desse sentimento épico. Por exemplo, as ruínas de Santa Cruz não são mais do que botar o nome de um lugar que tem em todo canto, porque onde tem religião católica vai ter um lugar chamado Santa Cruz. A gente impregnou a música com sinais claros do desejo de ser maior do que era”.
Já “Escrúpulo”, gravada por Paula Morelenbaum em 1992, e imortalizada por Lenine, pode torcer o nariz dos problematizadores de plantão. “Eu tenho medo dessa música porque a gente está pedindo para não ter tanto escrúpulo, e hoje as pessoas são muito literais. A palavra sozinha seria um indicativo de que a gente pede para não ter nenhum escrúpulo, mas não é o caso, até porque esse é um dos sinais éticos da vida”, comenta sobre a faixa.
Na época pré-redes sociais e smartphones, a vida acontecia em outro tempo, então especialmente quando se está descobrindo o mundo, inventar histórias se torna uma maneira de sobreviver. Para Lula, o disco de 1993 é uma obra prima e o maior exemplo de como ocupar o espaço sonoro de forma harmônica. “O som de Lenine e Suzano é o Olodum, é alto e sonoro, são dois caras fazendo o maior barulho com um pandeiro, um violão, uma voz e alguns efeitos”, fala o compositor. Revisitar essas músicas para o relançamento do disco nas plataformas de streaming e no vinil despertou a sensação de saudade de outros tempos e felicidade por ter vivido tudo aquilo.
A parceria com Lenine se manteve nos discos seguintes, em que juntos escreveram “A Balada do Cachorro Louco”, de O Dia em que Faremos Contato (1997), “Alzira e a Torre” e “A Rede”, de Na Pressão (1999). Em paralelo, Lula trabalhava no seu primeiro disco solo: Aboiando a Vaca Mecânica (2001), em que gravou “Profano”, de Chico César, e “Noite Severina”, uma parceria com Pedro Luis.
Com inspiração no livro Morte e Vida Severina, lançado em 1955 por João Cabral de Melo Neto, essa canção foi regravada por Ney Matogrosso e Elba Ramalho, e continua rendendo mensagens de pessoas que acabaram de conhecer. A letra narra uma tocaia na madrugada árida do sertão, mas conforme ela cresce, os versos também abrem margem para múltiplas interpretações: “Há muitos anos, essa música anda sozinha. Acho que tem a ver com a humildade da música, da pessoa se conformar em nunca ser vista, mas estar sempre olhando a pessoa amada e imaginando o que ela pensa de olho fechado e aberto”.
Essa foi mais uma oportunidade para misturar realidade e ficção, pois logo na introdução da música, uma voz feminina narra versos sobre o ato de dormir e sonhar. Lula convidou uma amiga nascida na Espanha para emprestar a voz, mas no dia da gravação, ela o questionou sobre o termo “fenomenalia”, que não existe em espanhol ou português. O letrista não teve dúvida, sustentou o neologismo e ainda botou a culpa no vocabulário acadêmico: “Eu coloquei até no texto de apresentação do disco, falo que a palavra foi extraída de livro de fulano e cicrano, esses nomes de sempre, mas fui eu mesmo que inventei”.
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