“Me chamavam de brega”, diz Otto em entrevista à NOIZE

28/06/2023

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Marília Feix

Por: Marília Feix

Fotos: Rafael Rocha

28/06/2023

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 68 da revista NOIZE impressa, lançada com o vinil de Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos, em 2016.

As lembranças de Otto flutuam entre as curvas do Morro do Vidigal e as ondas do mar. No bairro em que encontrou a paz, cercado de amigos e natureza, o filho de Xangô e Oxóssi abriu sua porta para a NOIZE entrar.

*

Certa manhã, Otto já não era mais o mesmo. Algumas pessoas não estavam mais ali. Em 2009, quando este disco foi lançado, o nosso protagonista havia perdido a mãe e se separado da esposa, a atriz Alessandra Negrini, com quem teve Betina, na época com 4 anos. Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos faz referência à primeira linha do romance A Metamorfose, de Kafka, no qual o personagem principal acorda transformado em um inseto. Talvez tantas mudanças tenham sido a força motriz para a realização de um dos álbuns mais marcantes da carreira de Otto e sua busca impávida por essa tal felicidade.

Hoje vai ser uma Ottoterapia. A gente vai ter que voltar um pouco no tempo.
Pra esse disco sim, vai ser bom. Cada busca minha, um dia eu estava pensando, tem um porquê. Nunca
é solto, sabe. Foi um momento bem forte, porque eu perdi mãe, me separei… É um disco que mexeu muito com as pessoas, mexe muito. Como o amor pega, né? O Sem Gravidade já foi romântico. E esse é o pós-romântico, a dor.

Em uma resenha desse álbum, de autoria do Xico Sá, chamada “Das dores do mundo e da doce vingança de estar vivo e de novo” ele escreveu que você soube sacanear com a tristeza.


É, o tempo todo. Quando eu canto “Quando eu perdi você, ganhei a aposta” Você pensa: “Que aposta?” Sei lá, essa é a frase que cabia… Mas mexeu muito. A Alessandra cantou no Sem Gravidade todo. Foi o disco da Lua de Mel. E o Certa Manhã… foi o disco da separação. É inerente, não dá. Eu vou sempre compor coisas do ser humano e o mais perto de mim sou eu.

Na capa do disco parece que você encolheu ou que você está furando o olho do mundo.

Esse prego é parte de uma exposição de um grande artista plástico, o Tunga. São esses pregos cruzados em asas de borboleta, casulos, moscas. Trazem a sensação de que você está enfiando alguma coisa mesmo. Cada ferro tem três quilos, é gigante. O Jô Soares disse que eu pareço o personagem do filme O Incrível Homem que Encolheu, chamando a atenção do mundo. Esse é o lado bom de ser independente, poder fazer coisas bonitas com os amigos. Ser independente lhe possibilita assinaturas legais na sua arte. Sempre faço produção ao ar livre, nunca é em estúdio porque fica mais caro. Estou feliz porque vai ser meu primeiro vinil, o primeiro da minha vida, com essa capa do Tunga, que é uma loucura. Não tive essa lógica antes e posso ter agora.

Em A Metamorfose há interpretações de que Gregor Samsa, o personagem que vira um inseto, teria desejado aquela transformação, já que sua vida como humano estava ainda mais triste. O disco também fala de mudanças necessárias, porém difíceis.

É, talvez todo mundo já fosse inseto pra ele. Mas o que eu gosto no Kafka é que ele é muito humano, muito simples. Eu tento ser muito simples também. No meu caso, o mais simples é como permanecer aqui nessa porra. Não ficar muito surpreso. Eu tento passar uma coisa contemporânea. Eu falei muito desse amor contemporâneo que está acontecendo por aí. As pessoas são mais livres. A tecnologia deu isso. O amor está mais valorizado. Perdeu-se tanto, brigou-se tanto, pelo simples fato de que todo mundo está online.

Ainda na temática de A Metamorfose, a música “Crua” traz um viés mais instintivo do ser humano?


É, “Crua” é a música que mais chega em Kafka. Nas minhas obras eu sempre busco os clássicos. Hoje há uma imensidade de referências estéticas, por isso eu fico nos clássicos. Principalmente na literatura, os clássicos se eternizam, são atemporais.

E A Metamorfose é isso, a coisa da pele, do bicho. O homem sempre vai ter esse lado bicho. A capa do disco também retrata isso, é o mofo da humanidade. O que eu sentia era assim. A gente já era bicho, a gente já era mofo e a gente ainda estava discutindo se a gente era ou não era, e a gente já era.

Aquele “lado que pesa e outro lado que flutua”?


É isso, é bem simples.Você sofre, você não é feliz o tempo todo.Você vai, mas você tem ciclos, sabe. E a pele é crua. E eu também pensei na minha filha, me coloquei um pouco no lugar dela. Daí entra “por isso na primeira vez dói”. Saber que dói já é uma coisa boa pro homem é sobre a sensação de ser pai também sabe, ter uma filha.

E “Naquela Mesa” e “Filha” também entram no tema da paternidade.


“Naquela Mesa” é isso. Eu sempre escolho um clássico. Do segundo disco (Condom Black) pra cá, eu sempre me dou o direito de regravar, fazer a releitura de uma obra. Essa, do Jacob do Bandolim, eu ouvi muito quando era pequeno. Remete à figura do pai. Eu nunca relacionei com pai brigão. Era um pai novo, ele estava falando de um artista.

Você contou em uma entrevista que seu avô foi morto porque se envolveu com uma mulher casada. E como era o seu pai?


Não falo muito com o meu pai. Ele teve outras mulheres, teve um filho fora do casamento. Minha mãe aceitou, daí ele foi lá e ficou com a secretária.

E você?

Eu tenho a mesma parada do meu avô e do meu pai, com mulher. Mas ainda bem que eu virei músico.

E por que, ainda bem?

Na arte, eu posso ser menino. Mas nunca fui um cara mal. Agora não, eu estou na minha melhor fase, estou casado com uma francesa.

Xico Sá também escreveu que esse disco mostra “a força de um pé na bunda”.


Ah, é? Às vezes o pé na bunda fica pro homem mesmo. Por falta de controle.

Você se dá um pé na bunda?

É, lógico, você não aguenta.Você fracassa. Não é fracassar. Você não consegue, você diz: “Não tá dando”. No caso do homem, eu estou com 47, estou começando a ver o que talvez seja um homem. Até aqui eu fui um guerreiro. Agora eu virei homem. Mais agora.

É difícil, né?

Porra! Eu faço um disco pro homem tentar melhorar, e ele pode, ele pode.

Você tem esperança?

Tenho, é verdade. Eu sou bem LGBT, eu sou perfeito pra isso. Sério. As pessoas, ficam na boa. Está meio desvalorizado ultimamente, por embriaguez, mas tem uma coisa bem forte, bem boa. A gente chora. Eu choro muito.

As participações do disco também são bem importantes. “Lágrimas Negras” ficou ainda mais bonita com a voz da Julieta Venegas.

O encontro com a Julieta foi maravilhoso. É uma mexicana muito boa, muito legal. “Lágrimas Negras” foi porque eu escutei Mautner e Caetano gravando o disco Eu não peço desculpa, que o Kassin estava produzindo. Eu senti que remetia a um Caetano antigo, com frases brilhantes. Na mesma época eu estava fazendo a trilha do filme Só Deus Sabe, do Carlos Bolado. Quando eu faço trilha de filme, eu já penso que a música deve servir ao meu disco também. Então eu compus “Saudade” e regravei essa.

Já “Saudade” eu ia compor sozinho, mas a Julieta Venegas, que é uma grande artista, disse que queria fazer uma parte também. Então ela foi pro hotel e, no dia seguinte, chegou com este poema pronto:

“No tengo medo es la verdad
Y lo que sucederá
Podría perderme en esta felicidad Cuando estás comigo

La distancia y el silencio
Son solo un instante que ya terminó”

A dor da separação aparece em “O Leite” de forma literal e metafórica. E a participação da Céu também traz o lado feminino à tona.

“O Leite” eu compus em um dos piores dias da vida. Nesse momento não tinha mais a ver com a Alessandra. Foi no dia que eu saí de casa e dormi longe da minha filha. O dia em que eu me separei da minha filha. Acho que identifiquei com a minha relação de filho, sabe. “Quando eu perdi você, ganhei a aposta”… Eu já estava levando muita lapada por ser casado, engraçado. E foi
o dia em que eu saí.“Quando eu saí da sua vida bati a porta”.FoiengraçadoeuterchamadoaCéu.EaCéu tinha acabado de se casar e não tinha engravidado. Eu disse pra ela,“ó, leite derramado é o útero, você vai cantar essa música e vai engravidar”. E a Céu engravidou logo depois.

O poema do Lirinha em “Meu Mundo Dança” parece expressar bem o que você estava sentindo naquela época.

Lirinha é um poeta. Eu gosto de como ele viaja com as minhas coisas. É sempre forte a presença dele como artista e é sempre bom estar ao lado dele, trabalhar com gente boa. Essa música também é do Rica Amabis, do Instituto.

A sua religiosidade aparece em “Janaína”, uma homenagem à Iemanjá. Você já havia feito o mesmo no álbum Sem Gravidade, com a música “Lavanda”. Também tem uma estátua dela na sua mesa da sala.

Ela é muito mãe, mulher, mãe, mar, é a grandeza. Uma orixá muito bonita. E “Janaína” é uma homenagem
a ela, a banda toca muito feliz. Meus percussionistas são ogãs. A gente adora tocar essa. É o “terreirinho” da gente.A música é uma homenagem a Salvador também. Recife eu já tinha homenageado e o Rio eu vou homenagear no próximo disco.Tem toda aquela magia de Iemanjá no dia 2 de fevereiro. É um dia em que se celebra o candomblé ao ar livre. É a força da Bahia. Eu sou muito ligado ao candomblé e à natureza. Por ser percussionista, eu evoco. Sou misturado. Meu irmão caçula é moreno e meu avó era mulato.

É holandês também?

Eu sou tudo que você quiser, garota. Uma mistura. Minha vó é índia.Tem essa coisa com o candomblé, com a natureza, a percussão. A gente aprende mais no babado do que fora dele.Você está lá junto, você está sentindo.

“Seis Minutos” talvez seja a música mais dramática do disco, principalmente no que se refere a sua interpretação.


Em seis minutos eu morro, ressuscito, eu vivo, acabou, morreu. Eu ia passar por aqui, se a minha memória es- tivesse recente, em seis minutos. É o que você vai fazer quando você morrer, você tem seis minutos. É uma música muito bonita e também volto ao Kafka porque é humana, simples. Antes eu queria pular, gritar, passar pro nada.

Hoje o que eu quero dessa vida é ficar aqui. Quando você começa a ter público, você começa a vivenciar o ofício. E esse foi um dos poucos discos brasileiros que teve resenha no NewYorkTimes. Foi um momento em que eu não estava bem. Neguinho estava queren- do me matar, perdi a mãe, me separei, estava mal. Dai eu conheci o Ilhan Ersahin que é saxofonista, é um cara sofisticado, e virou parceiro de “Seis Minutos”. Ele é do Wax Poetic, um coletivo do qual a Norah Jones é cantora. Eles começaram a fazer o jazz e eu comecei com a letra. Ele falava sempre pra mim,“Otto, grandes estádios.” Aquela hora em que o estádio para, uma coisa americana, por seis minutos. Por isso que ela se chama assim. Fui muito feliz nessa música. Ela tem esse cunho rock’n’roll que eu adoro.

O álbum abre e fecha com arranjos de cordas. “Agora Sim” é intensa e leve, ao mesmo tempo.


Sempre tem as cordas, quem fez foi o João Carlos, lá de Recife. Sempre que eu posso, eu uso. Em “Crua” também.“Agora sim” foi um devaneio pop.

A sua temporada em Nova York com os músicos da Nublu Records também influenciou na sonoridade do disco?


Essa fase foi muito boa, do tempo em que passei em NovaYork.Acho que a aproximação com o jazz de lá, com o fino trato, me ajudou bastante. Nublu é bem pequeninha, mas tem jazz todo dia. Acho que afinou mais a minha música. E a compreensão que eles têm de mim, que é o melhor.Tipo, antes neguinho achava que eu não falava coisa com coisa. Mas eu me entendia.

E você cantava em português, numa época em que a moda era cantar em inglês.

Antes eu era muito brega por causa disso. Me chamavam de brega. Hoje já têm outros representantes. Hoje eu vejo Céu,Tulipa. Raul e Roberto fizeram rock em português.

Você nasceu no mesmo dia que o Raul. Como você interpreta essa coincidência?

Mesmo dia, 28 de junho. Eu sempre adorei a música dele, as letras dele, essa ideia de transcendência, esse apertar o foda-se.Você vê a quantidade de gente que gosta dele e como ele morreu assim, sabe. É o caminho de um ídolo mesmo. Eu agradeço por ser do mesmo dia que ele. E quando eu tinha meu programa da MTV, olha o que aconteceu. Não acontece com ninguém à toa não. Eu tinha um reality chamado “Viagem ao centro do Brasil”. Era eu de carro, não tinha roteiro. Daí eu tinha que ir pra Salvador, e eu queria ir no enterro de Raul. Isso não tem mais gravado porque a MTV perdeu a fita. Foi roubo, sei lá. Quando eu cheguei lá, havia umas 2 mil pessoas. Não é todo mundo que consegue isso. Daí me apresentaram pro líder lá e eu entrevistei o cara que inventou o “Toca Raul”, um negão coroa sem camisa, me emprestou o violão, me deu vinho. Eu digo,“agora eu quero ver.” Cheguei pro líder e mostrei minha identidade e disse: Sabe que dia é hoje? Quando eles viram que era meu aniversário, eu já saí do chão pro alto. Já estava no alto. Daqui a pouco, eles me levantaram de frente pro céu e me pu- seram deitado de frente e balançaram em cima do túmulo. E eu ainda tive esse arrepio célebre. Eu fui batizado de uma forma muito peculiar. Então a coisa de Raul é todo dia, toda hora. As pessoas me identificam muito. Sabe, pela bebida. Sei lá. Pelo que eu fui. Por essa coisa que eu busquei como músico. Muito por ser uma pessoa que se mete com tudo, mas hoje eu parei, sem precisar de ajuda. Acho que tem a ver com a busca. Só foi enjoo, acabou. Essas coisas só acontecem comigo. Ali eu entendi o porquê. Foi arrepiante.

Quem você era e quem você é hoje, qual foi a sua metamorfose?


Talvez esse disco tenha vindo como uma ruptura que a vida me deu. Acho que depois de passar por tudo isso, e por passar pra um disco, talvez eu tenha mostrado mais firmeza. Esse caminho mais conceitual, de querer contar uma história. Hoje eu trabalho mais tranquilo e esse disco me deu isso. Ou ele vinha e calava a boca do mundo e tocava por si mesmo, só. Ou, se não fosse pelo Ilhan, por esses amigos, eu não sei. Ainda bem que eu tive sempre as pessoas. Eu sou um vitorioso por tudo. Sou um pai de família e tenho uma filha maravilhosa, de uma mãe talentosa. O que mudou muito foi isso. Esse disco talvez tenha me tirado de um caminho… Me tirou de um caminho em que talvez eu pudesse ter me perdido. Não tinha mãe, dinheiro, não tinha nada.Tinha esse disco.Agora eu me sinto bem, agora eu vejo como eu sou, sabe. Foi essencial.“Seis minutos” foi uma música essencial. Ficou entre as dez melhores daquele ano nas revistas. Foi importante.

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Marília Feix

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