Laços do Mundo Livre S/A com o zapatismo levaram o Manguebeat ao México

01/10/2024

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Rui Mendes

01/10/2024

O ano de 1996 foi o ápice do Manguebeat. Por um lado, Chico Science e Nação Zumbi explodiam com o lançamento de Afrociberdelia. Por outro, a música pernambucana borbulhava, despontando artistas como Mestre Ambrósio, Devotos do Ódio, Sheik Tosado, Eddie e DJ Dolores

Junto a Chico e à Nação, o Mundo Livre S/A foi a banda mais importante para a fundamentação discursiva que traçava o fio condutor de todo aquele cenário. Afinal, seu vocalista e fundador, Fred Zero Quatro, foi o autor do texto “Caranguejos com Cérebro”, de julho de 1992, um release que entrou para a história como o primeiro Manifesto Manguebeat. Em 1996, Fred e seu grupo lançavam seu segundo disco, Guentando a Ôia, dando sustentação à cena. 

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“Em 1996, o movimento mangue tinha estourado mesmo”, lembra a diretora e roteirista pernambucana Sephora Silva em entrevista à Noize. Após uma temporada no México em 1993, ela retornou ao país em 1996 para fazer um curso técnico de Cinema na Universidade de Guadalajara, e levou na bagagem os discos dos seus conterrâneos, introduzindo os mexicanos ao manguebeat. 

“Apresentei para o pessoal lá e eles enlouqueceram, pela qualidade musical. Como eu já tinha amizades lá, eu falei: ‘Olha, que tal a gente fazer um esquema de trazer o pessoal do Brasil pra se apresentar aqui?’. E todo mundo adorou”. Nesta época, Sephora foi convidada para fazer um quadro quinzenal sobre música brasileira no programa Bar Calavera, do locutor Che Bañuelos, que era transmitido na Radio Universidad, uma emissora FM com grande audiência jovem.

Quando o Manguebeat chegou às ondas radiofônicas mexicanas, encontrou um país tensionado, defrontando-se com uma revolução. Formado por uma multidão de indígenas, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) havia declarado guerra ao governo e seus membros tomado conta de uma extensa área do estado de Chiapas, no Sul do México, transformando-a em um território autônomo. Sua ocupação persiste até hoje, mesmo após o EZLN ter abandonado as armas, em 2006. 

Cyberpunk com fuzil na mão

“O levante zapatista foi no réveillon de 1994, eles sabiam que a tropa ia estar comemorando e aproveitaram para invadir o quartel e roubar as armas”, lembra Fred Zero Quatro à Noize: “Foi justamente no ano da assinatura do NAFTA, o acordo de livre comércio do México, Estados Unidos e Canadá. E eu sempre acompanhei isso de perto. O nome Mundo Livre S/A não é à toa. Tanto a economia quanto a geopolítica sempre foram dos meus temas preferidos, e também a questão da tecnologia”.

Desde o início, a insurreição de Chiapas chamou atenção do músico, que vivia seus primeiros anos de conexão com a rede mundial de computadores. “Foram surgindo vídeos na internet, e eu me tornei um seguidor à distância. Era quase irresistível, pra quem tinha o mínimo de consciência e de cidadania, o discurso do zapatismo. Foi o primeiro movimento guerrilheiro a utilizar bem a internet. Foi um raro momento em que um movimento de extrema esquerda assumiu a vanguarda em termos de estratégia e eficiência de comunicação”, analisa Fred.

A poesia, a estética, a arte visual e a música cumpriram papéis importantes na disseminação do movimento zapatista, cujos membros ficaram conhecidos por aparecerem em público sempre com os rostos cobertos. Fred explica que essa intenção antipersonalista foi fundamental para despertar seu interesse pela figura do então líder do EZLN. 

“Me interessa muito a persona do Subcomandante Marcos. Já começa daí, o zapatismo era um levante que não tinha um chefe: ele era o líder, mas recusava se assumir como comandante. Ele era o ‘subcomandante’, dizia que os líderes eram os índios de Chiapas. Mas o Subcomandante Marcos tinha muita agilidade usando a internet pra divulgar os manifestos. E era um filósofo humanista, com uma verve literária absurda”. 

Apesar do seu título mencionar o Império Romano, como uma analogia mais ampla ao imperialismo, “Desafiando Roma”, a quarta faixa de Guentando a Ôia, é uma saudação explícita aos zapatistas. Sua letra começa assim: “Salve Marcos! / Salve, salve! / Combatente da contra-informação / Envenenando as redes / Cyberpunk com fuzil na mão / Disseminando a contra-hegemonia”. 

“Sephora, que era simpatizante do zapatismo no México, assim como boa parte da comunidade universitária, quando ouviu ‘Desafiando Roma’, fez de tudo pra que a universidade formalizasse um convite pra gente tocar lá”, afirma Fred. A diretora de fato ajudou muito na produção que levou a banda até lá, mas, quanto ao seu envolvimento, ela pondera: 

“Os camponeses mexicanos são, praticamente todos, indígenas. As pessoas entendiam qual era a situação dos camponeses, e muita gente fazia protestos para ajudar o movimento zapatista. Eu cheguei a ir [nos territórios zapatistas], mas era até perigoso, era um lugar de guerrilha mesmo. Eu, enquanto mulher e estrangeira, não podia me envolver muito”. 

Apesar do contexto tenso de 1996, ela conseguiu o apoio institucional da universidade em que estudava para trazer a banda. “Consegui a hospedagem, alimentação, transporte local, lugares pra fazer shows. Os meninos foram super bem recebidos. O lugar onde ficaram hospedados era a Casa do Cerimonial da Universidade de Guadalajara, que recebia doutores e phDs do mundo inteiro para suas palestras. Era uma casa mexicana autêntica, mas com um puta serviço maravilhoso de hospedagem”, diz Sephora.  

Porém, a chegada até lá não foi nada tranquila. Fred diz que, na ocasião, o visto para artistas brasileiros se apresentarem no México estava demorando muito para sair e, na iminência de perder o prazo da viagem, o Mundo Livre resolveu viajar com vistos de turismo. “A gente entrou meio que na gambiarra”, diz. A ideia era que eles voassem até a Cidade do México e, lá, uma pessoa da universidade estaria os esperando para liberar sua entrada na imigração e irem de ônibus até Guadalajara. No entanto, por algum motivo, o voo foi alterado e a banda teve que descer em Cancun. 

“E, lá, não tinha ninguém pra liberar a nossa imigração. Aí, a gente desce, sem um tostão pra gastar com turismo, e vai pra fila de imigração. Só tinha turista, aquele pessoal bronzeado, comprovando grana, e a gente, aquele bando de músico independente, sem dinheiro nenhum, nem nome de hotel, sem nada. Antes de chegar no guichê, vieram uns cinco soldados armados, nos cercaram e conduziram para uma sala. A gente sequer falava castellaño, arranhava um portunhol, e ficamos sem saber o que dizer. E o pessoal perguntando o que íamos fazer lá no México e tal, até que, no desespero, alguém mostrou o disco [Guentando a Ôia], que tinha nossa foto na capa, e a carta de convite da universidade. Aí, os caras relaxaram, deram até risada, e liberaram”, diz Fred. Mas a história continua: 

“Aí, a gente foi pro avião e o Pinha, que era o operador de PA na época, chegou pra mim: ‘Escuta, Fred, aqueles caras armados interrogando a gente são a favor ou contra Marcos?’. Aí, eu disse: ‘Porra, aqueles caras querem matar Marcos!’. Aí, ele falou: “Puta que pariu… ainda bem que fiquei calado, porque eu ia dizer: ‘Salve, Marcos!’. (risos) Quando ele disse isso, eu gelei… Enquanto o avião não decolou, e demorou que só, eu ficava rezando para os caras não descolarem um aparelho de som. Porque, se eles fossem ouvir o disco, fudeu! A música já começa assim: ‘Salve Marcos…’. Foi uma tensão do caralho!”. 

Encarando impérios

O Mundo Livre S/A chegou ao México na metade de janeiro de 1997. Na ocasião, os zapatistas enfrentavam grande repressão do governo, que mantinha já três anos de negociações com os insurgentes, mas também de agressões, direta ou indiretamente, com o apoio de grupos paramilitares. Foi nesse contexto que a banda chegou a Guadalajara. “A gente tinha um show confirmado, que era um evento como se fosse uma homenagem ao Brasil e tal, porque não podiam dizer formalmente que era uma banda que ia homenagear o zapatismo”, diz Fred.

“Não podia falar sobre isso, não”, confirma Sephora: “Na época, estava no auge do conflito, estava muito sério, os camponeses realmente estavam sendo acuados e estava tendo uma guerrilha mesmo. E aí, chegar um grupo do Brasil e vir justamente falar sobre isso, era muito complicado. Guadalajara é uma cidade muito conservadora e totalmente em oposição ao que estava acontecendo [em Chipas]. Então, a gente não podia ficar mencionando isso, sabe? Embora os meninos quisessem falar, em alguns momentos eles até introduziram”.

Fred afirma que tentou: “Teve um episódio bizarro. A gente estava dando entrevista para uma rádio e, quando eu comecei a falar que tinha uma música em homenagem ao zapatismo, ‘faltou luz’ na rádio. Interromperam na hora o programa”. Perguntado se acredita na possibilidade de uma coincidência ou se realmente desligaram a energia por causa de sua fala, Fred não tem dúvida: “Claro que desligaram”. Sephora, que testemunhou a história, concorda: “Foi cortado. Ninguém podia falar nisso, estava no auge da guerrilha”. 

Apesar disso, Sephora e o Mundo Livre não se intimidaram muito: “Eu tive a ideia de fazer um clipe de ‘Desafiando Roma’. Já tinha pensado mais ou menos no roteiro e, quando conversei com eles, eles adoraram. A ideia do clipe era eles fazerem um passeio por Guadalajara e, em vários lugares, a gente ia identificar alguém zapatista, usando aquela touca que só deixa o olho à vista. Sempre ia surgir, de repente, nos planos, alguém zapatista no meio da história. Foi uma loucura, mas a gente conseguiu fazer”, conta Sephora. 

O clipe foi filmado com os equipamentos da Universidade de Guadalajara, que ela teve acesso por ser aluna do curso técnico de Cinema e Vídeo. Já a montagem foi feita, em tempo recorde, na ilha de edição de uma produtora de um amigo. “A gente filmou das sete da manhã até mais ou menos às cinco da tarde. Depois, saí direto pra montar o clipe. Ele ficou pronto às sete da manhã do dia seguinte, em 24 horas”, diz a diretora. 

Contudo, o material nunca foi lançado e permanece inédito. A única cópia está com Sephora, em uma fita cassete. As fitas brutas, com as filmagens completas do Mundo Livre S/A no México, de acordo com a diretora, foram emprestadas para uma produtora fazer uma nova edição a partir delas e esta equipe perdeu as fitas. “Só faltei ter um infarto”, diz Sephora. 

Segundo Fred Zero Quatro, em 1997, quando voltaram ao Brasil, o vídeo não foi autorizado pelo selo da banda na época, a Excelente Discos: “Eu não sei se ela [Sephora] chegou a finalizar, eu sei que não foi autorizado pela gravadora”. Fred explica ainda que esse caso não foi o único na trajetória da banda.

“Os fonogramas não eram nossos, a gente não podia lançar um clipe do jeito que quisesse. Por exemplo, ‘Maroca’, um clipe de 97, foi de um amigo meu, ele bancou do bolso dele pra ver se a gravadora [Excelente Discos] aprovava. Esse tá lá no canal do YouTube, porque a gravadora autorizou. Teve outra amiga nossa que fez o clipe de ‘Musa da Ilha Grande’. Ela chegou a mobilizar uma produção de dois dias de filmagem, mas a gravadora [Banguela Records] não gostou e foi barrado. Ela chegou a exibir em alguns festivais, mas não está no YouTube e não é um clipe oficial”.

Motivo pra chorar

A temporada mexicana chegava ao fim com um saldo extremamente positivo para a banda. Ainda que não tenha conseguido circular pelo resto do país, devido aos custos logísticos para o transporte de uma equipe grande, o Mundo Livre S/A espalhou as sementes do mangue no México. “Eles passaram 15 dias em Guadalajara, fizeram quatro shows e muitas entrevistas, até de TV e de rádio. Inclusive, teve uma coletiva com 30 jornalistas pra saber do movimento mangue”, diz Sephora. 

O locutor e jornalista mexicano Che Bañuelos, que abriu um espaço para a música brasileira em seu programa Bar Calavera, foi um importante colaborador para o sucesso do grupo. “Quando contei que estava na produção para trazer pra lá Mundo Livre, Chico Science e outros grupos desse mesmo movimento, ele falou: ‘Por que a gente não vai introduzindo a música deles para as massas?’. Aí, ele me convidou [para o programa]. Eu fazia o setlist, falava sobre as músicas, sobre os grupos, fazia algumas traduções. Fiquei fazendo durante seis meses. Foi muito bom, porque, quando a gente anunciou que o Mundo Livre realmente vinha, ficou todo mundo louco”. 

Segundo Fred e Sephora, todos os shows do grupo foram acima das expectativas e sem repressão de nenhum tipo pela adesão evidente à causa zapatista. “Todo mundo adorou os shows, foi muito legal. A própria universidade nunca censurou, nunca recebemos nenhum tipo de represália porque estava tocando a música [‘Desafiando Roma’]. Mas porque era em português. Se estivessem cantando em espanhol, talvez tivesse”, diz a diretora.

Foram 15 dias de alegria, culminando no fim da viagem, como conta Sephora: “O último dia foi o único de folga que o Mundo Livre teve. Foi no domingo [2/2/1997], eles iam voltar para o Brasil na segunda. A gente saiu pra passear, fomos conhecer vários lugares, uma amiga nos convidou para um churrasco, foi super divertido, eles estavam super felizes. E lembro que, nesse dia, [o tecladista e guitarrista] Bactéria fez um comentário: ‘Nossa, a gente tá rindo demais. Quando a gente ri muito é porque vai ter motivo pra chorar’. Ele saiu com essa”. 

Então, nas últimas horas do grupo no México, o impensável aconteceu. “Aí, a gente foi pro hotel, porque eles iam embora à uma da manhã. Quando chegamos lá, estávamos sentados em uma mesa tomando um cafezinho e chega uma pessoa do hotel: ‘Senhor Fred, tem um recado para o senhor ligar para o Brasil com urgência’. A Maria Eduarda, que era esposa do Fred na época, estava grávida e com uma gravidez de risco. Aí, ele ficou louco, foi lá achando que era algum problema com a Eduarda. E aí, ele voltou –  eu lembro como se fosse agora – branco, tremendo da cabeça aos pés”, diz Sephora, que segue: 

“A gente falou: ‘Que foi, Fred?!’. Ele ficou olhando pra gente sem acreditar. ‘Chico, cara… Chico morreu’. Aí, falaram: ‘Chico César?!’. E eu nem sabia quem era o Chico César, porque ele tinha sido lançado há pouco tempo. E ele disse: ‘Não, cara! Chico Science!’. Ficou todo mundo parado, sem acreditar. ‘Teve um acidente com ele, morreu na hora’. Aí, ficou todo mundo desesperado… Foram fazer a mala correndo, como se isso fosse adiantar o tempo que eles teriam pra voltar. Ninguém acreditava, todo mundo atordoado. Não tinha celular, a gente ficou louco atrás de um computador pra ver se tinha notícia. Foi bem complicado. Foi inesquecível, um momento histórico, e deu uma mexida muito grande com as bases daquela música. Ficou todo mundo: ‘E agora, o que a gente vai fazer? Pra onde a gente vai?’”. 

“Eu soube da morte de Chico lá em Guadalajara”, lembra Fred: “E, quando Chico morreu, assim que cheguei aqui [em Recife], vi a pressão para rolar um segundo manifesto”. Com o título de “Quanto Vale Uma Vida”, o segundo e último Manifesto Manguebeat foi escrito pelo vocalista do Mundo Livre com colaboração do jornalista e pesquisador musical Renato Lins. Além da homenagem ao amigo que partiu, esse manifesto trazia forte influência da vivência recente no México e inspiração nos escritos do Subcomandante Marcos. 

“‘Quanto vale uma vida’ era de um texto que o Subcomandante tinha acabado de lançar. E é incrível, eu choro, tô aqui emocionado só de me lembrar da hora em que eu li esse texto do Subcomandante. O bonito dele era esta visão, como está naquele segundo manifesto sobre a morte de Chico. A vida vale um mundo melhor. Se a gente tiver a certeza de que passou pela Terra e contribuiu para valorizar a vida humana, é o que há de mais bonito”, diz Fred Zero Quatro. 

“Quanto vale a vida de um homem, em quanto cada um avalia a sua própria vida, a troco de quê está disposto a mudá-la? Nós avaliamos muito alto o preço de nossas vidas. Valem um mundo melhor, nada menos. Homens e mulheres, dispostos a dar suas vidas, têm direito a pedir tanto quanto valem. Há os que avaliam suas vidas por uma quantidade de dinheiro, mas nós a avaliamos pelo mundo, esse é o custo do nosso sangue…”, estas são as palavras do Subcomandante Marcos citadas no segundo manifesto manguebeat. 

Ao finalizar esse texto lançado por Fred e Renato em 1997, a filosofia insurgente do discurso zapatista é emprestada à realidade pernambucana, que possui semelhanças à do México, assim como à de todos os países do chamado Terceiro Mundo. Homenageando a partida súbita de Chico Science, as palavras de Marcos tornaram-se o fechamento oficial de um dos capítulos mais importantes da música popular brasileira. 

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 121 da revista NOIZE, lançada com o vinil de Roteiro Pra Aïnouz, Vol.2, do Don L, em 2022.

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Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

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