“O Rec-Beat sempre teve um olhar periférico”, diz Gutie Gutierrez

26/03/2024

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Hannah Carvalho e Luana Tayze/Divulgação

26/03/2024

Com quase 30 anos de história, o Rec-Beat é um patrimônio do Carnaval de Recife. Literalmente: no final de 2023, o festival recebeu o título de Patrimônio Cultural Imaterial da cidade, honraria à altura da trajetória do evento.

Anualmente, o Rec-Beat traz para o Cais da Alfândega, no centro recifense, uma programação gratuita de shows, mesclando nomes de destaque com artistas que estão despontando, seja na cena pernambucana ou em outros estados e até outros países. Só em 2024, foram sete atrações internacionais, vindas da Colômbia, Gana, Bélgica, Alemanha, Costa do Marfim e Espanha, demonstrando um fôlego de agenciamento e curadoria que fazem do evento um exemplo para a cena de festivais.

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O Rec-Beat já se tornou um ponto de referência garantido, tanto para quem está na capital de Pernambuco no Carnaval quanto para meio profissional de música independente brasileiro como um todo. Na conversa a seguir, o idealizador do Rec-Beat Antonio Gutierrez, o Gutie, conta como o festival nasceu e se transformou no que é hoje.

Foto: Hannah Carvalho/Divulgação

Como nasceu o Rec-Beat, há quase 30 anos? 
A gente começou no início dos anos 1990. Eu fiquei muito impactado com a cena dos anos 90, com o Manguebeat… Eu conhecia Chico [Science] e Fred 04 de vista, a gente frequentava os mesmos bares, Fred era jornalista, como eu, a gente sempre se encontrava nas coletivas, e eu fiquei muito impactado com aquela nova cena quando vi um show de Mundo Livre S/A e Loustal e Lamento Negro (embrião de Chico Science & Nação Zumbi), num casarão, em Olinda. Então, comecei a fazer uma festa chamada Rec-Beat no Adilias’s Place, no centro histórico do Recife. Naquele momento, a cena pernambucana era muito forte e dava muita mídia, a gente estava na MTV o tempo todo, nos principais veículos, qualquer coisa feita aqui era notícia nacional. 

As pessoas vinham pra cá achando que essa música estava em todo canto, mas não estava, era algo ainda muito underground. Pra você ter ideia, os eventos públicos demoraram quase 10 anos pra começar a programar nos palcos grandes bandas como Mundo Livre S/A, etc. Porque foi um processo. Como muita gente vinha visitar Recife e Olinda, principalmente no carnaval, achando que ia encontrar aquela música, pensei: “Peraí, eu vou fazer um espaço pra programar essa música que a galera está vindo escutar e todo mundo está comentando”. Mas a primeira edição que eu fiz com cara de festival, que podemos chamar de “edição zero”, foi em São Paulo, em 1994, por incrível que pareça. Foi quando levei 11 bandas pernambucanas para o Aeroanta [antiga casa de shows paulistana].  

Ouça abaixo uma gravação raríssima do show da Banda Eddie no Rec-Beat de 2001, disponibilizada pelo acervo de Renato de Lyra Lemos:

De lá pra cá, como foi a evolução do evento?
Nos anos 1990, não tinha esse Carnaval como tem hoje no Recife. O Carnaval era mais concentrado em Olinda e era muito diurno. Hoje, não mais, mas era assim: dava 18h e já não tinha muita opção. Aí eu comecei a ser uma opção à noite, em um espaço no quintal de um casarão chamado Centro Luiz Freire, em Olinda, que foi onde comecei a programar as bandas locais durante os dias de Carnaval. Aí passaram-se umas três edições, e eu recebi um convite da Secretaria de Cultura do Recife pra trazer o Rec-Beat para o centro da cidade, já gratuito, pra fomentar o carnaval daqui, no sitio histórico do Recife, que não existia.

Então nós viemos para a Rua da Moeda, que não tinha bar, nada, era um deserto. Só tinha um restaurantezinho ali naquela época, nada mais. Mas logo após a primeira edição no Recife, o festival estimulou o surgimento de um pólo de bares alternativos na Rua da Moeda. O Rec-Beat foi crescendo a cada ano e a Rua da Moeda ficou pequena pra gente. Aí passamos a ocupar o Caís da Alfândega, acho que em 1999, e o festival continuou crescendo. O que era, no início um olhar pra cena local, foi expandindo as fronteiras pra cena brasileira. Aí comecei a programar muita coisa do Pará, da Bahia e de outras regiões do país, que na época não recebiam um olhar para o que estava sendo produzido ali.

Olhando em retrospecto, qual é a avaliação que você faz do papel do Rec-Beat para artistas emergentes do país?
A gente tem muito a coisa da aposta. Então é muito comum a gente ter nomes, tipo a Gaby Amarantos, que começaram aqui. Ela já tocava em Belém, mas ela disse que o Rec-Beat foi um divisor de águas na carreira dela. Como o ÀTTOOXXÁ, o BaianaSystem, o Criolo, vários outros também tocaram aqui logo no começo de suas carreiras. O primeiro grande show da Liniker foi aqui… Então, a gente tem essa coisa de antecipar. O que era uma cena local, a gente foi expandindo para o Brasil e também pra fora. O Rec-Beat é pioneiro em programar bandas latino-americanas.  Quando o Bomba Estéreo veio da Colômbia, eles estavam começando, acho que foi a primeira viagem internacional deles, uma coisa assim. A Ana Tijoux, que é uma rapper chilena, atualmente um grande nome no Chile, esteve aqui também faz tempo, no início da carreira dela.

A gente identifica as potencialidades e traz, fazemos isso com as cenas brasileiras e internacionais, mas também com a de Pernambuco. O brega funk, por exemplo, não tinha palco aqui. A gente foi pioneiro ao botar o brega funk pernambucano no palco, foi uns seis anos atrás. Tanto é que, quando eu anunciei, falaram: “Pô, o Rec-Beat vai trazer brega funk, vai ter violência”. Sabe aquele preconceito? E, no entanto, foi um dos shows mais lindos. Nosso primeiro show de brega funk foi com o Mc Tocha, e foi lindo, depois eu trouxe outras atrações.

O evento parece ter um olhar atento às culturas periféricas locais, como você enxerga essa questão?
Recentemente fazendo uma avaliação, descobri uma coisa óbvia, que o Rec-Beat sempre teve um olhar periférico. Quando a gente começou, era o Manguebeat e tal — periférico. Aí a gente começou a trazer a cena do Pará, da Bahia, de Minas — periférico. Aí começou a olhar pra Colômbia, pro Chile, até mesmo pra Portugal e pra Espanha, países com vínculos históricos com o Brasil, e colocou o brega funk no palco — periférico. Então, acho que a gente tem essa coisa de entender que o centro nada mais é do que o avanço da periferia. Pega o samba, o jazz, o rap, por exemplo, era tudo periférico, aí vai avançando e ocupa o centro. Mas é um processo espontâneo, que envolve também senso de sobrevivência e sempre muito inventivo, né.

Queria ouvir você sobre a direção da curadoria, porque vocês trazem artistas de vários estilos, como o rock, o rap, o eletrônico, o brega funk, mas tem uma coesão.
A gente tem essa capacidade de perceber o que pode estar no nosso palco. Nos últimos 15 anos ou mais, comecei a olhar também para a América Latina e para a África. Tanto é que neste ano a gente está com sete atrações internacionais. Não tem festival independente como o Rec-Beat que tenha isso. Você tem isso em festivais mega, mas que não tem essa ideia de aposta.

O que me permite trazer bandas desconhecidas? É a gratuidade. Se eu tivesse um festival com bilheteria, eu não poderia me dar o luxo de trazer atrações que ninguém conhece, que ninguém vai sair de casa pra comprar ingresso. A gratuidade me dá uma liberdade curatorial.  É mais difícil, porque eu tenho que me desdobrar pra levantar recursos, patrocínios, mas por outro lado, eu ofereço ao público do Rec-Beat coisas que eles não imaginam, não esperam. A parte mais saborosa, pra mim, é o que vai surpreender a galera.

Foto: Luana Tayze/Divulgação

Qual é o maior desafio de hoje depois desse tempo?
Muitos, manter a gratuidade é um deles. Pelo fato de a gente estar fora do Eixo Rio-São Paulo, a gente está invisível para o marketing das empresas, é impressionante. A gente ainda não rompeu essa bolha do convencimento de que um festival como o Rec-Beat é uma coisa super original.

E a que você atribui a longevidade do evento?
Temos uma equipe muito engajada, sempre muito enxuta, mas muito competente. Isso dá uma um resultado que às vezes nem eu acredito. A gente fez milagres, porque realmente a nossa equipe é muito foda. E a gente tem vários cuidados. O cuidado com a curadoria é óbvio, mas tem o cuidado técnico com a pontualidade, com a entrega que você leva para o público. A gente tenta entregar um espetáculo, uma experiência multisensorial..

Tem outra coisa, a gente faz o Rec-Beat num ambiente libertário, onde as pessoas estão mais abertas a novas experiências. Ninguém sai de casa no Carnaval, com uma fantasia, pra não viver uma experiência. O Rec-Beat entrega isso. Eu levo em conta o estado de espírito das pessoas que vão estar no meu palco. O fato de acontecer nesse ambiente me dá uma certa inspiração pra fazer o que eu faço, curatorialmente falando. Em nossa curadoria predomina muitas novidades e tendências, o que estimula a renovação do público. Mesmo com quase 30 anos de existência, o público do Rec-Beat é praticamente de jovens e isso é outro fator que explica a longevidade do festival. 

Como você visualiza o Rec-Beat daqui pra frente?
Ah, eu queria poder conseguir organizar tudo com muitos meses de antecedência – o que é bem difícil quando se depende de patrocínios que são definidos sempre próximo às datas do festival pela própria cultura das empresas -, mas manter o festival no Carnaval e gratuito, porque isso, a gratuidade, tem uma função social. O Rec-Beat é um evento inclusivo. Acho que a maioria do público não teria a oportunidade de ter essa experiência se não fosse aqui. Muita gente não teria dinheiro pra ir ver os nomes que a gente coloca, por isso a gratuidade é muito importante, para essa inclusão. E a gente recebeu agora, com 28 anos de festival, o título de Patrimônio Cultural Imaterial do Recife. Hoje, inclusive, eu recebi a placa. É um reconhecimento da importância do festival, mostra o que a gente construiu nesses 30 anos. E eu queria poder manter esse conceito, só com mais tranquilidade.

Gutie e a vereadora Cida Pedrosa na entrega do título de Patrimônio Cultural Imaterial de Recife para o Rec-Beat (Foto: Hannah Carvalho/Divulgação)

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26/03/2024

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

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