vejo dor de gente adulta
no invisível que se avulta
e na vulva das quimeras
vejo oitocentas megeras
disputando um consolo
catapio e fura-bolo
velam o cadáver do cão
alaúde e violão
cadenciando o embalo
enxergo tudo e me calo
não vejo minha paixão
Poema 61, de Cantáteis (1995)
Dispensarei apresentar a carreira musical de Chico César. Vamos direto ao ponto: A beleza de suas composições e de sua voz bebem (e sempre beberam) poesia. A arte poética se faz presente em toda boa música, mas Chico César não se contentou apenas em cantá-la loansonlineusa.net. Foi além e publicou-a em livro.
E tudo isso começa, justamente, pelo começo, quando Chico recém estava lançando o primeiro disco. Jornalista de formação, já tinha a escrita enraizada em si. E, em 1995, lança concomitantemente o disco Aos vivos e o livro Cantáteis: Cantos Elegíacos de Amozade.
“Beradêro”, Chico César. Versão de 2011, originalmente lançada em 1995.
“Beradêro” abre o primeiro disco de Chico César como quem diz: ”sou poeta”. Poema cantado à capela, “Beradêro” coloca o cordel nordestino na ponta de sua língua, sem deixar de homenagear sua cidade Natal, Catolé do Rocha-PB, e incluir belíssimas percussões vocálicas. Aliás, a literatura de cordel é o que alicerça seu primeiro livro de poemas, escrito em 1993, mas publicado também em 1995. Cantáteis bebe na tradição nordestina e na poesia concreta, é caseiro e cosmopolita, transitando na aridez e na tecnologia. Numa vertigem de imagens, o livro consolida-se em 141 poemas e uma belíssima edição ilustrada.
eu pra cantar não vacilo
digo isso digo aquilo
digo tudo que se disse
digo veneza recife
fortaleza que se abre
quero que o mundo se acabe
se não disser o que sinto
digo a verdade, minto
vertente me arrebata
minha voz é serenata
labareda e labirinto
Poema 2, de Cantáteis (1995)
Curiosamente, a dobradinha de lançamentos disco-livro se repete 20 anos depois. Em 2015 saíram o disco Estado de Poesia e o livro Versos Pornográficos. Quanto ao disco, o título já indica a preocupação poética de Chico, que inunda-o de belas canções, aliadas a um refinado trato da palavra.
“Caracajus”, Chico César (2015)
Versos Pornográficos traz uma poesia adornada feito musa mulher mas, essencialmente, crua como a pele. Neste livro, o ato sexual se coloca em primeiro plano e apenas alguns poucos poemas desviam dessa diretriz. Deixarei para que procurem por conta os poemas mais explícitos, e abaixo vai um poema mais voador:
margarideise
onde flores butterflies
bater asas meu coração
vai
Poema ”o voo”, de Versos Pornográficos (2015)
Chico César, um poeta na música, um artista da palavra. Resta-nos esperar para ver em que formato se manifestará a sua poesia no futuro.
Lucas Krüger é psicólogo, psicanalista e poeta, autor do livro O sonho da vírgula (2015): www.lucaskruger.com | arteseecos@lucaskruger.com