Fotos: Ariel Fagundes
Você abriu este link, chegou até aqui e vai começar a ler este texto. Já começou, aliás, desculpe. Não feche a aba e perdoe se a ideia já está parecendo perda de tempo. Você fez isso porque quer saber se o show de ontem foi bom, certo? Você foi no show, provavelmente, e quer descobrir se as minhas impressões, aqui tidas como as impressões da NOIZE, são semelhantes às suas. Se você não esteve presente, quer saber simplesmente se o show foi bom ou ruim. Se acertei na previsão, peço desculpas novamente, raro leitor, pois não tenho como lhe dizer se o show foi bom ou ruim. Ter a responsabilidade de carregar esta mensagem não faz com que a minha experiência seja mais legítima que a sua, ou as 3 mil experiências das 3 mil pessoas que dançavam, cantavam e se acotovelavam ao meu lado na plateia. Um show é o espaço onde, por excelência, a intenção do artista comunga com a expectativa do ouvinte, gerando algo tão novo quanto único. O jornalista, ainda que tenha sua considerável bagagem de referências quando é veterano, também bate o pezinho, vibra, reclama, pede uma cerveja, chega lá de taxi ou ônibus, acompanhado ou sozinho, tem toda uma vida que influencia sua opinião. E se não existe receita que o faça ser totalmente imparcial, posto que só é capaz de saber e sentir sob seu ponto de vista, alguns sabem que um bom caminho para alcançar um veredicto satisfatório é curtir como espectador, parte inexorável do público. Ontem, como sempre faço nos shows do Criolo, me entreguei a ele, com seu ar de messias, deixando que cantor e banda me conduzissem como conduzem sua performance. Vamos ver se você sentiu o mesmo que eu senti na noite de ontem. Se os bons shows são aqueles em que artista e plateia realmente se conectam, as boas resenhas de shows, acredito, são aquelas em que as impressões do jornalista estão em sintonia com as impressões dos outros presentes.
Eu nunca tinha visto um show do Criolo fora do bar Opinião, casa do cara em Porto Alegre. Foi o palco em que o conheci em carne, osso e espírito santo – imateriais poderes e potência que adquire quando se apresenta ao vivo. Foi por lá que vi seus shows crescerem a ponto de se transformarem em cultos evangélicos (como contei aqui), em um tipo de experiência que transcende a música e vira catarse, nos fazendo sair de alma lavada e pensando na vida. Pois, o Opinião foi fechado na semana passada pela Prefeitura – que ultimamente está engajada em uma cruzada para acabar com a música e a dança (em especial as que acontecem em lugares acessíveis) da cidade – e só voltou a ter as portas abertas hoje. Os dois shows planejados para Criolo viraram um só e mudaram de endereço: foram para o Pepsi on Stage, na saída da cidade. Espaço mais amplo, normalmente destinado a shows com grande apelo popular, e que tem sua acústica constantemente questionada, ainda mais quando o número de presentes fica bem aquém da capacidade do local. Enquanto muitos amarraram a cara com a decisão, procurei ser positiva: o preço congelara no segundo lote, o lugar não estaria tão lotado (e seria mais fácil, ainda que mais caro, comprar cerveja) e, em um espaço mais amplo e de boa, os frequentadores canabistas estariam imunes à truculência dos seguranças ao tentarem fazer a cabeça – o que, num show do Criolo, ajuda muito a entrar na vibe, reza a lenda.
Mas e o Criolo, que realmente parecia se sentir muito em casa no palco do Opinião, teve que apresentar seu aguardado disco, Convoque Seu Buda, e fazer um dos primeiros shows da nova turnê, em um palco desconhecido e bem menos, er, aconchegante. Isso comprometeu a apresentação? Pra mim, sim. Primeiro: porque se eu não escuto o que o Criolo fala e canta, eu tenho dificuldade em captar sua mensagem. Pra um artista messiânico como ele, que na apresentação passada na cidade me fez abraçar desconhecidos na plateia, isso importa – e muito. Segundo: porque o próprio Criolo pareceu sentir essa distância e em alguns momentos cantou mais pra ele e pra banda do que pra gente. Minha experiência anterior me dizia que estaria envolvida da primeira nota ao último acorde, mas senti que, às vezes, ele nos tinha na palma da mão para logo depois nos deixar escapar.
Mas se para mim a acústica do Pepsi On Stage estava longe do ideal, para muitos não foi a mesma coisa. Quando me locomovi, posicionando-me mais a frente do palco, o volume de cada instrumento estava bem mais equilibrado. Se isso já comprometeria as experiências individuais, posso dizer que, observando coletivamente, mesmo o som bom para boa parte do público não ajudou a fazer com que as elogiadas músicas do disco mais recente fossem tão bem recebidas quanto as já conhecidas. Para quem viu a maravilha que foi “Convoque seu Buda”, a primeira do show, foi frustrante ver as demais canções não empolgando tanto. O show seguiu com a segunda canção do disco, “Esquiva de Esgrima”, e a maioria dos fãs mostrava as letras na ponta da língua, para minha surpresa. Mas o primeiro single, “Cartão de Visita”, última antes do bis, foi uma das que deixou a desejar. Sentia boa parte da plateia inebriada de expectativa, mas se sentindo distante do palco. Faz sentido? Tive meus bons momentos – “Demoro”, “Vasilhame” e “Bogotá”, principalmente – mas quando show acabou, me senti triste porque ainda estava esperando ele começar. Culpa só da acústica e do tamanho do espaço, mesmo?
Seria injusto, ao me propor a escrever de um jeito tão egocentricamente pessoal, não falar do resto da plateia, onde se encontra uma possível resposta. O público do Criolo cresceu. No primeiro show que vi, em 2011, o ingresso foi relativamente barato e o público era composto por gente com muito ou pouco poder aquisitivo, muitos ligados ao rap e alguns já atraídos pela famigerada mistura de rap com MPB que hypou o MC. O segundo show foi via Traga Seu Show, plataforma de financiamento coletivo. Na apresentação, Criolo reclamara do preço do ingresso que, segundo ele, fez com que uma parcela importante de seu público estivesse ausente. Ontem o espaço estava reduzido, com uma cortina preta dividindo o auditório ao meio, e os locais que o público tinha acesso estavam completamente lotados. Nas “bordas”, pouca gente assistia, mas conversava, bebia cerveja, fazia social. O público, a banda, a equipe, o orçamento e o preço do ingresso do Criolo cresceram, constata qualquer um. Está na moda gostar dele e muitas das novas canções poderiam muito bem ser trilha da próxima novela das oito. Mas é por acaso que as que mais empolgaram foram do disco Ainda Há Tempo (2006), anterior ao hype e ao Nó Na Orelha (2011)?
Existe algo a ser observado no comportamento dos antigos e dos novos fãs de Criolo. Os que estão lotando seus shows são os jovens que ele alfineta em suas letras – “mudar o mundo do sofá da sala posta no insta e se a maconha for da boa que se foda a ideologia” (em “Convoque seu Buda”), “salto alto, MD, Absolut, suco de fruta mas nem todo mundo é feliz nessa fé absoluta” (em “Duas de Cinco”), “é feio colar no palco e não respeitar a vivência pra quem curte o preconceito e só vive de aparência” (em “Cóccix-ência”). E, arrisco dizer, são os mesmos que estão deixando o clima na plateia mais frio. Opinião da jornalista ou, ironia, da fã classe-média?
Na lojinha da saída, o já incansavelmente ouvido disco de vinil Nó Na Orelha foi bem mais vendido do que o novo. Nem boa nem ruim, a informação me fez lembrar que, com 700 mil visualizações no YouTube em um mês, o lançamento de Convoque Seu Buda ainda está só no começo. Ainda há tempo.