Fotos: Ariel Fagundes
Domingo, 16h25, Anfiteatro Pôr Do Sol
A tarde caía em Porto Alegre trazendo grandes nuvens cinzas, indecisas se choveriam ou não. Mas considerando a grandeza de Tim Maia, a chance de chuva era a menor das dúvidas que espreitava a estreia da turnê Nivea Viva Tim Maia, em Porto Alegre. Lado a lado, Ivete Sangalo e Criolo logo dividiriam a honra e a responsabilidade de dar vida a dezenas de canções que são pilares da música brasileira. Esse era o primeiro dos sete shows da tour que iria ainda para Recife, Salvador, Fortaleza, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo (veja a programação completa aqui).
Cerca de 100 mil pessoas estavam lá só para ver isso. Boa parte delas era de fãs da Ivete que provavelmente não estariam se o show não fosse gratuito, mas também havia na plateia muitos manos do rap que foram ver, principalmente, o Criolo, além de uma gama imensa de devotos do Tim Maia de muitas idades e classes sociais.
Sexta-feira, 10h30, Hotel Sheraton
O auditório ficou pequeno para tantos repórteres, fotógrafos e cinegrafistas que foram à coletiva de imprensa do show Nivea Viva Tim Maia. Após a diretora de marketing da Nivea Brasil, Tatiana Ponce, apresentar o projeto, Ivete Sangalo adentrou a sala iluminando-a como uma rainha. Desde o início, sua presença ofuscou a de Daniel Ganjaman, diretor musical do show que estava na coletiva substituindo Criolo. Segundo Tatiana Ponce, o rapper não pôde comparecer pois estava se recuperando de uma cirurgia para retirada de pedras nos rins.
A proposta daquele encontro seria entrevistar os artistas esclarecendo dúvidas sobre esse evento histórico. Pois, como costuma acontecer em projetos tão grandes, esse show foi tão elogiado quanto criticado. Por um lado, promover o encontro de músicos tão diferentes e importantes (em seus contextos) quanto a Ivete e o Criolo é interessante. Por outro, aproveitar o momento de maior evidência da obra do Tim Maia para promover um projeto que foi criticado por Ed Motta e Leo Maia (sobrinho e filho do homenageado) é algo que merece uma reflexão.
Em entrevista à Rolling Stone Brasil, Leo Maia disse que a empresa organizadora do evento “vacilou em não ter convidado nem a mim e nem ao Ed Motta”. Já Ed Motta publicou em seu Facebook no dia 4 de fevereiro críticas duras a esse tipo de projeto: “Uma empresa de creme, me procurou para fazer o ‘projeto’ Tim Maia, a grana não era compatível com meu desprazer em fazer isso… Para mim a música do Tim Maia é intocável, fica bom mesmo é com ele, é preciso honestidade e vergonha na cara para admitir isso. (…) Vontade de vomitar, que coisa PODRE”, escreveu. No dia 9 de fevereiro, ele explicou: “A empresa de creme me procurou não para esse evento recente do Tim Maia, e sim para gravar um cd de músicas dele, e conjuntamente uma tour pelo país”.
Domingo, 16h55, Anfiteatro Pôr Do Sol
“Tim Maia hoje está mais feliz!”, gritou Ivete encarando a multidão após cantar “Não quero dinheiro (Só quero amar)”, “Gostava tanto de você” e “Você”.
A essa altura, a plateia já estava entregue… E como seria diferente? Frente a um palco monumental onde uma banda completa executava músicas incríveis, que todo mundo sabe de cor, como não se divertir? O clima de baile lembrava muito mais apresentações finais do Tim do que o início de sua carreira, mas tudo bem, até porque o som da banda era impecável. Como todo cover que se preze, havia até um sósia do Tim no palco, o guitarrista do grupo. É fato que Ivete Sangalo está longe de agradar a todos os fãs do Tim Maia, mas é preciso notar que quem estava ali não tanto a Rainha do Axé, e sim uma versão brasileira da Tina Tuner, um trovão de coxas e voz imponentes que exalava sexo e soul em suas roupas chiquérrimas.
A cantora deixou o palco depois de “Azul da Cor do Mar” e então veio Criolo, vestido em um terno impensável para quem o conhece de outros rolês. Muitos no público se perguntavam se o rapper seria capaz de interpretar as músicas de um cantor do porte de Tim Maia. E, para felicidade geral, ele realmente conseguiu: o timbre da sua voz surpreendeu já na primeira música que cantou, “Primavera”. Em seguida, ele fez uma versão libidinosa de “Chocolate” onde parecia que Criolo estava falando de qualquer outra coisa, menos de chocolate.
Sexta-feira, 10h45, Hotel Sheraton
A coletiva começou com Ivete dizendo que esse show era um presente e elogiando muito o Criolo e Daniel Ganjaman, quem, segundo ela, cuidou de tudo: “O que me deixa num colchão. Não me preocupo com nada, fico só recebendo minhas cestas de cremes”, disse arrancando gargalhadas dos repórteres. Ganjaman iniciou falando sobre a importância do Tim para a cultura do hip hop e comentou sobre como é delicado fazer uma releitura de sua obra, uma vez que os fãs se sentem parte dela.
Depois dessa fala inicial, o diretor musical do show não abriria a boca pelos próximos 40 minutos. Todas as perguntas da coletiva foram feitas apenas à Ivete e, inclusive, algumas delas fugiram completamente do tema do evento. Teve jornalista que pediu dicas de beleza pra ela, outro a galanteou contando da vez em que ele entrevistou o Tim Maia, um terceiro perguntou o que ela gosta de comer em Porto Alegre (“costela de ripa”, caso você tenha ficado curioso).
Não importava a pergunta, ela sempre dava um jeito de responder com educação e simpatia. Ganjaman seguiu mudo enquanto Ivete despejava respostas e zoeiras aos repórteres. O tempo passou até que ouviu-se o anúncio:
– Última pergunta – disse o organizador da coletiva.
– Só se for pra você, meu bem! – retrucou Ivete.
Claro que era só mais uma brincadeira dela, a próxima seria a última mesmo. E seria a pergunta que eu queria fazer desde o início.
Domingo, 17h30, Anfiteatro Pôr Do Sol
Depois do primeiro set de Criolo, Ivete assumiu o palco por um longo tempo. “Imunização Racional (Que Beleza)”, “Bom Senso”, “Réu Confesso”, “Telefone”, “Não vou ficar” e “O que me importa” foram cantadas só por ela. Em “Não Vou Ficar” ela disse à plateia que o Roberto Carlos lhe ligou e disse: “Ivete, dá um beijo em Porto Alegre e arrebenta com o Criolo porque o Tim Maia é o cara”. Se isso aconteceu de verdade ou não, só o Rei pode dizer.
O rapper voltou ao palco para cantar a primeira música em dueto com Ivete, “Lamento”, certamente a mais lado B do show todo. A dupla emendou em seguida “Sossego” e “Você e Eu, Eu e Você (Juntinhos)”, música que acabou parecendo ter sido feita para aquele encontro.
Criolo seguiu sozinho com “Ela Partiu” (que teve seu refrão cantado por Ganjaman), “Eu amo você” e “Coroné Antonio Bento”. Entre uma música e outra, o rapper aproveitou para dar seu habitual discurso que mistura a linguagem dos pastores evangélicos com uma filosofia meio hippie Nova Era. O resultado foi bonito: “Tim Maia, um sonho, um sentimento. Um homem que pregava o amor. Vamos cantar ao amor na tarde de hoje. Tim Maia era isto: Amor Cósmico Universal”, pregou.
Sexta-feira, 11h, Hotel Sheraton
– Bom dia, meu nome é Ariel, sou da revista NOIZE. Em primeiro lugar, quero parabenizar a todos pela ousadia desse projeto porque, como você falou [olhando pro Ganjaman], todo povo brasileiro se sente um pouco dono da obra do Tim Maia. Certamente, vocês viram as críticas que o Ed Motta e o Leo Maia fizeram. Como vocês se sentiram em relação a isso?
Não sei bem por quê, mas muitos jornalistas riram quando fiz essa pergunta. Estariam rindo de mim ou do Ed Motta? De qualquer forma, era evidente que os artistas estavam muito preparados pra responder minha questão. Quando Ivete ia falar, Tatiana Ponce se adiantou:
– Eu queria responder dizendo que é bem importante deixar claro que esse é um projeto concebido pela Nivea. Vários nomes vieram à nossa cabeça, houve vários exercícios, várias pesquisas, mas os nomes que sempre estiveram são os que estão aqui hoje. A gente segue muito consciente de que a escolha foi a melhor possível e não temos nada a comentar a respeito.
Então, encarei Ivete e Ganjaman e lhes perguntei: “Vocês também não têm?”.
Aí Ivete respondeu:
– É difícil falar de Ed Motta porque sou fã dele. É um músico excepcional, já gravamos juntos, eu o respeito. Como tenho muita convicção de que estou fazendo algo que eu gosto, que estou no lugar certo e que Criolo foi uma escolha incrível, eu me sinto muito tranquila diante de qualquer crítica, seja ela mais ou menos ácida. As opiniões vêm e é preciso respeitar as opiniões de todas pessoas, em especial de um cara que a gente é fã. Eu compreendo toda essa movimentação. Eu só observo…
Ganjaman quebrou seu silêncio:
– Qualquer projeto dessa magnitude será alvo de crítica, de uma forma ou de outra. A gente tem que respeitar a opinião de cada um e a forma como as pessoas se expressam. Acho que elas também arcam com o que dizem e isso acaba sendo, na verdade, um espelho de estarmos fazendo um projeto dessa magnitude. A gente tá muito feliz de estar tocando junto e seguros de estar num projeto bacana.
Ao que Ivete completou:
– Tamo arrasando, bicho!
Domingo, 18h30, Anfiteatro Pôr Do Sol
O show foi bem longo, passou das duas horas. “Canário do Reino” e “Leva” foram cantadas pela Ivete, “Me dê motivo” pelo Criolo, “Um dia de domingo” pelos dois, “Lábios de Mel” e “Descobridor dos Sete Mares” pela Ivete, “Acenda o farol” e “Não quero dinheiro (Só quero amar)” foi cantada pela dupla. Aqui, o show acabou, mas só para provocar o clássico pedido de bis:
“IVETCHÊ! IVETCHÊ!”, gritavam muitos gaúchos enlouquecidos.
E a dupla voltou após uns minutos. Pra fechar o espetáculo, tocaram “Vale Tudo” e o medley “Sossego / Do Leme Ao Pontal”. Confesso que cheguei ao show preparado para o pior, mas não posso dizer que tenha visto uma ofensa à obra de Tim Maia. Criolo cantou muito mais do que eu sabia ser possível, a banda toda estava tinindo, orquestrada com maestria por Daniel Ganjaman, e até a Ivete Sangalo fez sentido naquele espaço.
Na verdade, a Ivete foi a Ivete: aquela que levanta uma multidão como se fosse uma pluma na palma da sua mão. Antes de julgar, vale lembrar que o Tim Maia era um artista complexo e, por mais que os fãs em geral se identifiquem mais com uma determinada fase de sua obra, é preciso reconhecer que ela teve momentos que lembram mais a carreira solo da Ivete do que as raízes do funk. “Leva”, “Pudera” e “Onde está você”, pra ficar em só três exemplos, são faixas exatamente assim.
No final das contas, foi divertido. Não foi o melhor show que já vi do Criolo, mas saí de lá com a impressão de que foi o melhor show da Ivete que eu poderia ter visto em toda minha vida.