Ouvi de um amigo que o Beco 203 é um lugar que demanda uma estratégia prévia, na qual escolhas e renúncias são feitas previamente para assegurar a melhor fruição do seu humor para o show. Se você ama a banda e quer curtir cada música, chegue cedo, vá pra frente e aceite que verá o show sem beber nada; de preferência, use o banheiro antes, pois, caso saia do seu lugar, ele nunca mais será seu. Se você está mais ali para ouvir aquele hit gostoso, conversar e flertar, ficar mais de boinhas, vá para o fundo e para os cantos, aceite que terá um milhão de pessoas pedindo passagem o tempo inteiro e, bem, parta pro abraço. Tudo certo. Para o Unknown Mortal Orchestra sou um baita pertencente do primeiro grupo, mas que, pelas conjunturas da vida, também conhecidas como trabalho, acabou sobrando para mim o segundo grupo, ainda por cima na noite mais lotada que o Beco já deve ter registrado em sua história de São Paulo.
Tinha bastante gente, viu? Não era pouca coisa não. Era tanta gente que, chegando um pouco antes das 22h, horário marcado para o início do show, perdi a primeira música praticamente inteira na fila longa e lenta na primeira noite gélida do Baixo Augusta. Ouvi apenas, para ser justo e dizer que não ouvi nada, os quatro últimos acordes e, tal qual uma subcelebridade ouvindo a voz de Pablo em Qual é a Música?, imaginei se tratar de “Like Acid Rain”.
Ainda tentando me embrenhar na selva humana, que pelo menos trazia de volta o calor para meu corpo quase hipotérmico, não conseguia prestar a devida atenção na qualidade da música, principalmente porque o som deixava a desejar um pouco e a voz do carismático Ruban Nielson sumia frente ao instrumental da banda. Notei, pela bateria que chamava para a psicodelia leve, que estava ouvindo “From the Sun”, do excelente álbum II (2013). A lotação do lugar, composta por muitos fãs que cantavam cada letra e acorde do show (atrás de mim tinha um cara que, com muita graça e pouca afinação, fazia as tecladas de Quincy McCrary com a boca de tal maneira que me sentia num beatbox de um criança), assemelhava-se a um estádio de futebol lotado nos anos 70, com a geral pulando apaixonada e cantando em coro para seu time apaixonado. A banda parece ter sentido isso, realizando grandes transições psicodélicas ao final de uma música, conectando pontas de uma maneira alucinógena e lisérgica, com o baterista Riley Geare e Quincy fazendo belos duelos instrumentais.
Com a transição começa “How Can U Luv Me”, música do primeiro álbum, o homônimo de 2011. Com uma música para cada álbum, dava para notar que não seriam deixadas de lado nenhuma das principais canções do grupo, numa atitude sincera e honesta, muito simpática, de uma banda nova que se mostrava ciente de já possuir um pequeno, mas fervoroso, séquito de fãs por aqui. Isso se mostrou inclusive quando, ao acabar a canção, Ruban fez piada sobre nunca ter vindo para o país antes, dizendo também que não tardará para voltar, pois estava gostando muito do show. Ainda para manter o clima do primeiro álbum, ao fim da piada entrou “Thought Ballune”, seguida pela belíssima – e entoada de cabo a rabo pelos fãs – “The World is Crowded”. Na verdade, alguns atrás de mim até cantavam “The Beco is Crowded”, o que não soava como mentira de jeito nenhum, pois, afinal, naquele momento em que estava na frente do meio do palco, querendo entrar na brisa do refrão e do baixo viciante da música, acotovelei algumas pessoas sem intenção alguma, mas pelo simples fato de que, quase como um pássaro numa gaiola, senti minhas asas cortadas para qualquer vôo maior. Uma pena, pois o show poderia, sem dúvida alguma, ter sido realizado em algum lugar maior. A banda e seus fãs mereciam isso. Quando acabou “The World is Crowded”, as luzes ficaram azuis, anunciando, inconscientemente, que poderíamos ter algo vindo do álbum II (sua capa “Deluxe” é de um belo azul opaco). Dito e feito: a maravilhosa balada, pungente canção sobre a dor da perda e o sentimento de estar perdido literalmente em meio a confusões mentais e solidão pura, das melhores músicas de 2013 e, sem exagero, desta década, “So Good at Being in Trouble” começara.
Aí não consegui me conter e, dançando no ritmo de uma rotação lenta, naquele marasmo interessante que uma pancada lisérgica por vezes nos arremata e joga para um vórtice roxo de paz nirvânica e completude dos chacras, entreguei-me por completo ao show. A partir daquele momento, qualquer som baixo, qualquer empurrão de pessoas querendo passar, até uma quase briga de um estricnadão ao meu lado, que ficou ameaçando e empurrando um cara que estava sossegado, não fazia efeito: estava com a sensação completa de que entrara no meu fluxo, principalmente com o final apoteótico, com a banda toda experimentando ao máximo seus virtuosismos contidos. No estado de uma respiração profunda e consciente como uma aula de yoga, senti começar “Swim and Sleep (Like a Shark)” e, passando por mim como linhas de uma fibra ótica imaginária, as linhas de guitarra e a voz em coro de Ruban e do baixista Jake Portrait me ascendiam.
Ao final, Ruban resolve pular do palco e, no meio da plateia, começa a cantar “Stage or Screen”. É um grande momento. O vocalista moveu a plateia e, andando ao outro extremo do Beco, subiu na mesa e cantou ali do alto, arrancando milhares de fotos, como essa abaixo, com seu boné de paetê negro e casaco Adidas preto. O cantor é realmente muito simpático, tenta conversar o tempo inteiro com a plateia com um inglês levemente ininteligível, daqueles que o fazem questionar se é o momento mesmo de voltar para as aulas ou apenas limpar melhor os ouvidos. Ao final da música, um piano à bossa nova se estende e se agrava até um grande trovão a-day-in-the-lifeano caótico, relâmpago de confusão que canta a chegada “Ffuny Ffriends”, uma das favoritas do público, que cantam cada riff da guitarra, cada batida do piano e linha do baixo. O pianista ri e conduz a plateia como um Stevie Wonder, balançando a cabeça em puro êxtase musical.
Para não perder o ritmo, a banda já toca, num respiro só, “Multi-Love”, single do último álbum, ótima música sobre a fluidez e decepções que muitas vezes acometem até os mais belos relacionamentos. Estamos sujeitos ao fracasso, é fato. Muito mais do que imaginamos e queríamos. O Unknown Mortal Orchestra sabe disso, suas canções retratam sempre muito bem essa constante desilusão que pode ser doce. Como diz um outro amigo querido meu: “O que é ruim de passar é bom de contar”. Todos dançam e pulam com a canção, que conta com uma reverberação gerando eco na voz do vocalista. Fazia uma hora de show e a banda agradeceu a todos e saiu. Era basicamente impossível o fim de fato, por isso, sem grande alarde de um bis que todos sabiam que aconteceria, a banda voltou. Primeiro com “Necessary Evil”, depois com a obsessiva e linda “Can’t Keep Checking My Phone”, com uma luz estroboscópica que causaria ataques epiléticos tal qual aquele infame episódio de Pokémon. Entre uma música e outra, Ruban pediu para festejarmos depois ao fim do show, num ritual poliamoroso tão conhecido pelo próprio cantor (essa parte eu inventei, mas, né? Não custa nada).
O saldo da noite foi muito positivo. Ver pela primeira vez uma das melhores bandas que temos por aí, com canções fortes para minha história pessoal que construo irremediavelmente em cada resenha que escrevo e cada experiência vivida, numa analogia torta e rascunhenta, sem êxito artístico e com fértil terreno para elucubrações e expectativas imaginárias das próprias experiências, o UMO escreve tão bem e passa para seus fãs, como eu, certa metonímia musical do processo de entender música, as relações e si mesmo. É pra isso que serve a psicodelia. É pra esse autoconhecimento que bandas primordiais desse movimento voltado para a experimentação, como Grateful Dead, surgiram. Foi importante tê-los visto. Foi bom demais.