De acordo com o dramaturgo alemão Bertolt Brecht, o analfabeto político é o pior tipo de iletrado, uma vez que ele não participa dos movimentos políticos e não sabe, por exemplo, que o custo de vida e o preço do feijão dependem de decisões políticas. Pior, ele se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. E a partir dessa ignorância, diz Brecht, nasce o pior tipo de bandido: o político vigarista e explorador do povo.
Rodrigo Lima, vocalista e letrista da banda de hardcore melódico Dead Fish, parece ser o total oposto do estereótipo de analfabeto político. Para ele, desde pequeno, política sempre foi um assunto para ser debatido na mesa do café da manhã. Filho de bancário e de artista plástica, ele cresceu ouvindo histórias sobre o avô, que lutou na Segunda Guerra Mundial, e do pai, que falava como viveu a Ditadura Militar e se decepcionou com o movimento das Diretas Já. Hoje, ele conta que produz arte para escancarar contradições e preservar convicções.
“Eu nunca vou conseguir fazer algo que não seja político. Porque, pra mim, tudo é muito político. Isso nós jamais podemos nos esquecer, em todos os vieses de arte. Se você faz funk ostentação, se você faz sertanejo universitário, mas tem consciência de tudo que nós vivemos nesses últimos anos, não se esqueça. Caso contrário, esses cretinos voltam. O palhaço saiu fora, mas o circo continua armado. Eu estou com o maior gás para fazer com que essa gente suma. Mas que nenhum viés artístico se esqueça: não se pode parar de falar de política nunca mais. Mesmo falando de amor”, diz Rodrigo Lima, em entrevista à NOIZE.
A afinidade com esses temas começou cedo na vida de Rodrigo, assim como o contato com o universo musical e a vontade de escrever letras. Nascido em Vitória (ES), começou a criar uma relação direta com a escrita ainda na escola e, posteriormente, o talento com a caneta no papel lhe serviu de trunfo para ingressar na faculdade de Direito. “Acho que comecei a escrever letras nas redações do meu colégio, bem molequinho. Eu sempre fui muito bem. Lembro que, na minha redação de vestibular na [universidade] federal do Espírito Santo, em 1994, eu tirei 9,9, falando sobre o fascismo no Sul”.
O tema escolhido para a redação do vestibular não foi mero acaso, assim como não são coincidências as letras contestadoras do Dead Fish. Para além da educação política dentro de casa, Rodrigo teve muitas canções de protesto como trilha sonora de sua infância e adolescência. Antes mesmo do contato com punk rock ou com hardcore, era o hip-hop norte-americano que fazia a cabeça do garoto que celebrava quando algum familiar viajava para os Estados Unidos e lhe trazia de presente um LP do Mc Shan, por exemplo. Desses discos, um dos que mais marcou sua formação musical foi It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back (1988), do Public Enemy.
“Essa é uma conexão minha com o BNegão, porque ele já me falou que curtia esse álbum quando era moleque. Nessa época, o Chuck D já era o meu mestre das letras. Eu comecei a aprender inglês muito cedo, então eu pegava o encarte, já lia e falava: ‘caralho, tem alguma coisa aqui!’”.
Pouco tempo depois, o contato com o skate fez com que Rodrigo se abrisse para outras referências. Isso porque a cena deste esporte tem, historicamente, uma relação com vertentes do rock ‘n’ roll ligadas ao hardcore o punk. Por praticarem um esporte marginalizado pela sociedade, muitos skatistas se identificam com canções combativas e que trazem certa agressividade, tanto na letra quanto no som. Aos 13 anos, Rodrigo começou a andar de skate e, por consequência, adotou o estilo e o gosto musical dos skatistas. De quebra, passou a acompanhar algumas bandas que tocavam em campeonatos da modalidade.
“Com 13 anos, eu fui com tudo pro skate punk. Dali, fui pra Dead Kennedys, Circle Jerks, Misfits, The Clash, Cólera, Ratos de Porão, Replicantes… Então, quando eu fui montar minha banda, eu já tinha passado por todo esse espectro. Mas nunca parei de ouvir rap! Depois do Public Enemy, veio Ndee Naldinho, Thaíde & DJ Hum e Racionais”.
A Stage Dive, banda que mais tarde foi rebatizada como Dead Fish, surgiu no início dos anos 1990. A essa altura, Rodrigo escrevia em inglês a maioria das canções. No entanto, ele sentia que não estava se fazendo entender, ou seja, o protesto não estava sendo efetivo na língua inglesa. Pouco a pouco, então, o português passou a predominar, e foi a partir daí que a banda entendeu que estava fazendo um punk rock genuinamente sul-americano.
A virada de chave, ele relata, aconteceu quando as pessoas começaram a debater, criticar e criar um ambiente em cima dessas letras. O seu método de composição, no entanto, não agradava tanto os demais integrantes da banda, que tinham de se adaptar aos enormes fluxos de consciência que Rodrigo transformava em letra.
“Nas primeiras demos do Dead Fish, eu não dividia a letra, fazia um textão corrido. Como eu não era – e não sou – guitarrista, eu não dava pausa. Eu ia metendo letra! O pessoal da banda falava: ‘Po, você pode dar um tempo pra gente poder separar a estrutura?’. A música ‘Você’, por exemplo, era um texto enorme que eu fui adaptando. Eu nunca fui muito poético, não. Eu acho muito legal fazer uma construção verbal, com a coisa vindo com a música. Mas, não. Algumas vezes, também, pessoas que passaram pela banda pediam para eu fazer mais coisas de amor, coisas que permitissem jogar mais com as estruturas musicais. Mas eu dizia que não estava interessado”.
Entretanto, o vocalista absorveu algumas sugestões dadas pelos parceiros de grupo. Nessa trajetória evolutiva, ele destaca o guitarrista Philippe Fargnoli, que fez parte da banda entre 2003 e 2013 e lhe ajudou a fazer uma divisão melódica mais adequada nas letras. Na opinião de Rodrigo, o disco Contra Todos (2009) marca uma evolução nesse sentido. Esse senso de coletividade e cooperação na banda, aliás, permanece. Por isso, apesar de ser o responsável por escrever praticamente todas as letras, o vocalista evita assiná-las, pois acha necessário dividir o crédito com todos. Há nove discos é assim, e apesar de reconhecer sua evolução como letrista ao longo do tempo, o frontman do Dead Fish mantém uma forte autocrítica.
“Eu tenho um problema grave com a minha autocrítica e minha autoestima. Eu nunca estou satisfeito com o que escrevo. Mas depois de compor o Zero e Um (2004), eu enxerguei que tenho um espaço nesse nicho. Não que eu me acomode nisso, sempre estou me coçando para escrever. Mas não me levo a sério como grande escritor”.
Planet Hemp
Durante pelo menos os últimos quatro anos, o Dead Fish manteve sua postura de firme oposição e crítica à direita bolsonarista, que perdeu a cadeira da presidência nas eleições de 2022. Agora, com a mudança do governo, Rodrigo garante que a ideia não é baixar a guarda, mas sim “fazer álbuns contestadores talvez da cabeça para dentro, e não mais da cabeça para fora”. É em uma lógica parecida que ele trabalhou com o Planet Hemp. Talvez por conta dessa convergência de semelhantes atitudes, questionamentos e posicionamentos, o caminho de Rodrigo voltou a se cruzar com o dos maconheiros mais famosos do Brasil.
“Conheço o pessoal do Planet Hemp há muitos e muitos anos, desde a época em que eles iam presos. Eu tinha muita conexão com o Gustavo Black Alien também. Na verdade, não ouvi o primeiro álbum deles, porque na época eu achava que maconha era coisa de otário. Muito por conta do meu pai, que foi alcoólatra e incutiu em mim uma visão conservadora acerca das drogas. Mas depois que a galera foi num show do Planet Hemp e apanhou da polícia, eu entendi que a pauta era de fato urgentíssima e comecei a acompanhar de perto”.
No Brasil de 2022, o Planet Hemp segue debatendo a legalização da maconha e outras pautas urgentes no álbum Jardineiros, a fim de conscientizar outros ouvintes, assim como fez há 25 anos com Rodrigo. Desta vez, o nome dele está na ficha técnica do disco, creditado como letrista da faixa “Fim do Fim”. Quando o álbum estava próximo de ser entregue, a banda ainda tinha algumas bases de melodia sobrando e não queria desperdiçá-las. A solução encontrada por Marcelo D2 foi pedir ajuda para o amigo capixaba.
#NRC apresenta: Jardineiros: A Colheita, do Planet Hemp
“O D2 me ligou e falou que eu tinha uma semana pra escrever a letra. Tentei fazer diferente, pensando nele e Bernardo e acho que quase cheguei lá. Quando mandei pros caras, algumas coisas mudaram. Isso foi muito legal. Eles leram sob a perspectiva deles. Por exemplo, tem um verso na segunda estrofe que originalmente era: ‘Expectativas confesso que criei’. Aí o Bernardo mudou para: ‘Expectativas, nunca criei’”.
O título da canção é sugestivo quando pensamos no borbulhar social e político no país. Mas, para além disso, algumas leituras também foram fundamentais para que Rodrigo chegasse ao fim do fim.
“Eu tinha acabado de ler Realismo Capitalista (2009), do Mark Fischer, estava relendo algumas coisas sobre o fim da história. Até nisso o neoliberalismo se meteu, né? Em falar que a história teria um fim. Daí eu pensei em falar sobre o fim do fim da história. E, na verdade esse fim não existe, a gente está continuando a escrever essa história!”.
Esta matéria foi publicada originalmente na edição 131 da revista NOIZE, lançada com o vinil de Jardineiros, do Planet Hemp, em 2022
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