Tenho uma certa teoria, junto com alguns amigos meus, que a música de Felipe Cordeiro jamais teria surgido em um lugar frio. É impossível imaginar uma banda norueguesa dedilhando a guitarra e sentindo o ritmo e as batidas rápidas da percussão como se todo o ambiente estivesse rodeado de árvores tropicais, areias, água e pouca roupa. A música de Cordeiro é quente, assim como estava o primeiro dia de seu show na companhia de Pepeu Gomes, outro músico ensolarado. Era provavelmente o primeiro grande show de 2015 desse lugar maravilhoso que é a choperia do Sesc, em São Paulo, por isso lá estavam muitas pessoas diferentes: crianças, senhores, pais e mães, casais loucos para se colarem numa lambada alucinada e começarem o trajeto do suor da pista para a cama (pelo jeito como muitos dançaram durante o show, esse era o único caminho possível de se imaginar; coisa boa). Tinha até um pessoal que não gostava tanto e queria apenas criticar, mas, depois de algumas músicas, entregaram-se ao ritmo e a perdição da “dança proibida” (não é proibida, mas queria usar esse termo de alguma maneira). Como disse, não era aquele ambiente uniformizado, com todas as roupas estampadas de coqueiros, o novo xadrez para shows nacionais, ou padrões geométricos para os internacionais.
Quando Felipe Cordeiro entrou com sua banda maravilhosa, os percussionistas começaram a mostrar suas batidas caribenhas e africanas; o chocalho desenfreado como uma serpente seduzia suas vítimas com seu guizo, o bumbo da bateria parecia querer nos imergir num rito solenemente pagão. O ambiente quente da choperia tornara-se ainda mais quente, mas um tipo diferente de calor, na qual não nos sentíamos incomodados, apenas mais entorpecidos com o suor necessário para fazer parte daquele início de rito. Os corpos involuntariamente já começaram a indicar para onde a dança iria, algumas pessoas pegaram o primeiro parceiro que viram ao lado e começaram a se sentir, até o momento em que o mestre da guitarrada e produtor Manoel Cordeiro, pai de Felipe, conhecido como um dos pioneiros da lambada no Pará, e que já produziu nada mais, nada menos, que Beto Barbosa e Banda Carrapicho, começou a dedilhar os primeiros acordes de “Lambada Alucinada”. Estava instaurado o ritmo da noite, de festa e suor, de muita gente dançando e vibrando sem parar, como se após as festas de fim de ano já deveríamos estar mais preocupados não com os acontecimentos que passaram, mas com os festejos do Carnaval e de todo o ano de 2015.
Após “Lambada Alucinada”, toda a plateia já se sentia pronta para bailar a noite inteira. Mochilas e bolsas que antes estavam penduradas às costas tornaram-se pequenas fogueiras apagadas no chão. O fogo estava em outro lugar. Todo mundo dançava e cantava com Felipe, que puxava o canto da galera em músicas como a excelente “Ela é Tarja Preta” ou a radiante e irônica “Problema Seu”, que possui um dos começos de músicas mais legais que existem, com Manoel Cordeiro dedilhando a guitarra rapidinho de uma maneira tal, que, ao vivo, parece uma grande mentira toda aquela velocidade do som com a calma no olhar e nos movimentos do guitarrista; parece que há algo desconexo, mas aí você entende mesmo como o cara está realmente em um outro nível de músico. Aliás, isso é algo que se deve dizer de toda a banda que acompanhava Cordeiro: do baixo a bateria, passando pelos outros instrumentos percussivos, todo mundo ali parecia virtuosos que se uniram e criaram algo harmônico em que cada um, se você parasse pra ouvir ou apenas ver os movimentos, valeria, pelo menos, um pocket-show solo. Mas as duas grandes estrelas eram Felipe e seu pai.
É realmente muito legal ver toda a união e sincronia que existe entre Felipe e Manoel Cordeiro. De certa forma é algo muito especial ter uma paixão para compartilhar com seu pai ou mãe. Quando olhei os dois ali tocando juntos, felizes em um ponto que dava pra sentir a alegria dos dois emanando, lembrei dos sábados de manhã que jogava futebol com meu pai. Era um horário horrível, sete da manhã e muitas vezes eu chegava da noite e colocava a chuteira pra tomar café da manhã e ir, simplesmente porque estar ali dividindo uma paixão com seu pai é algo que não tem explicação. Fiquei imaginando como deve ser legal viajar o país e ir conhecendo cidades, músicos, fãs etc. A cabeça foi longe em alguns momentos do show ao olhar para os dois ali em família. E mal sabia que a história se repetiria mais tarde.
O clima estava excelente, todo mundo cantava, dançava, tirava inúmeras fotos, mas havia no ar certa expectativa para a entrada do convidado da noite. Todo mundo queria saber mais sobre Pepeu Gomes: cadê Pepeu?, quais músicas Pepeu tocaria?, por quanto tempo Pepeu ficaria em palco? e tal, afinal não teria como não ser um grande momento a junção Pepeu e família Cordeiro. Quando finalmente entrou, parece que o ambiente inteiro mudou. O calor deu uma dissipada, mas não no mal sentido. Era como se uma entidade de outro mundo, um deus, por assim dizer, entrara em palco com sua temperatura própria, deixando todo mundo calado alguns milésimos de segundos, longos o suficiente para entender a presença de alguém, como se pode dizer, fodalhão. O músico baiano empunhava sua bela guitarra e uma camiseta preta da Cavalera, com seus longos cabelos partidos meticulosamente ao meio, quando, após o momento reverencial da plateia, disse com toda a leveza e simpatia características: “vamos dançar, sampa!”.
O público foi abaixo com Pepeu, que começou já arrepiando com “Preta Pretinha”, dos Novos Baianos, e depois partiu para composições de sua carreira solo, como “Sexy Iemanjá” e “Eu Também Quero Beijar”. O encontro de guitarras de Pepeu com Manoel Cordeiro era algo de outro mundo, uma força da natureza, como se víssemos ali o Rio Negro e Solimões se juntando: o suingado da lambada e as dedilhadas do Pará de um com a força do mais genuíno encontro do rock com a MPB do outro. Era tão impressionante assistir os dois, que só poderia ser melhor se houvesse algo que, de fato, unisse toda essa mistura em uma única composição. E ela existiu com “Pepeu Papai, Papai Pepeu” (ou algo parecido que tinha sido composto por todos ali especialmente para o show). Enquanto Felipe Cordeiro gritava “Papai Pepeu”, Manoel e Pepeu duelavam pacificamente como dois gurus indianos em seus instrumentos. Após esse momento, Pepeu resolveu chamar Filipe Pascual, seu filho, ao palco. A emoção de ver pais e filhos foi dobrada. E juntos, os quatro, duas famílias diferentes de músicos, várias gerações ali representadas, cantaram e tocaram. Que grande momento foi vê-los ali.
O fim do show deixou, sem dúvida nenhuma, vários gostinhos de quero mais. A noite foi realmente mágica: pessoas suando e dançando lambada juntas, várias gerações vendo diferentes ídolos, famílias na plateia e no palco, fogueiras de mochila e muito mais. Foi uma noite quente e fantástica, um momento que já começou a mostrar como 2015 pode ser um ano realmente incrível e alegre, mais leve como uma dedilhada ensolarada de Manoel Cordeiro, mais simpático como o sorriso eterno de Pepeu, mais festeiro como a maneira de conduzir a plateia de Felipe Cordeiro, e renovado como Filipe Pascual. Foi uma noite grandiosa, uma noite gigante.