Nas primeiras páginas do livro Girl in a band – A memoir, recém-lançado, Kim Gordon descreve Thurston Moore como alguém que tem os lábios de Mick Jaegger, tem os braços esguios e não sabe exatamente o que fazer com as pernas. Segundo ela, além de esconder o rosto atrás da cabeleira loira, como faz usualmente, Moore tem a cautela necessária aos homens altos que não querem se impôr nem querem intimidar os outros.
Kim Gordon e Thurston Moore foram casados por vinte e sete anos. Juntos, fundaram o grupo Sonic Youth, um patrimônio cultural inquestionável da música pop independente produzida a partir da década de 1980. Conheceram-se num club, em downtown New York, em 1981. Ele, vinte e dois anos. Ela, vinte e sete. Moore ficara fascinado com os óculos escuros que Kim usava naquela ocasião. Casaram-se três anos depois. Fizeram uma família, fizeram uma filha e uma das reputações mais sólidas no meio artístico norte-americano (e, por extensão, mundial). Transitavam entre o pop mainstream e a música experimental, as microfonias de guitarra, as artes plásticas e a moda. Tornaram-se o “casal dourado”. Pareciam mostrar a todos que era possível, sim, viver como num conto de fadas, amparados por relativo sucesso mercadológico, consistência e coerência artísticas, uma família e um amor sólidos.
Girl in a band centra-se no fim do relacionamento – quase uma vida inteira – com Thurston Moore. É um livro contundentemente franco. É de um realismo e de uma verdade chocantes. Kim Gordon conta histórias muito pessoais, mencionando, com coragem, os nomes de todos os envolvidos. Fala sobre Beck, Courtney Love e os rapazes da banda. Fala ainda sobre a “outra” (às vezes, chamada de “aquela mulher”, às vezes, “a mulher em questão”), pivô de sua crise matrimonial. Dá detalhes sobre o episódio, a “descoberta desconcertante da traição”, e descreve o inferno psicológico que se tornou o show no festival SWU, no interior de São Paulo, em 2011, quando ocorreu a derradeira apresentação pública ao lado daquele que acabara de se tornar seu ex-marido.
Após aquela noite, o Sonic Youth terminaria. Encerrariam atividades, para sempre. E aquela performance, à frente de milhares de brasileiros animadíssimos, expostos ao barro e à chuva, seria como um desabamento, a consumação de uma violenta ruptura afetiva. O término da banda, sacramentando-se ali mesmo, seria uma mera decorrência. Seria, porém, um efeito colateral igualmente dolorido.
No anoitecer paulistano, o show não foi ruim. Na verdade, foi uma típica apresentação do Sonic Youth, às quais nos acostumamos ao longo dos anos: rocks encorpados e desconstruídos, com refrões e acentos pop, dissonâncias e ruídos propositais. Entretanto, havia no ar uma tensão, uma dramaticidade especial. Kim Gordon surgiu num bonito vestido vermelho. Quando começou a cantar, em “Brave Men Run”, a música de abertura, sua voz soou embargada, parecia pastosa. No centro do palco, tinha a fisionomia pesada. Quase não trocava olhares com Thurston Moore. Parecia haver um muro entre eles. Aos outros músicos só lhes restava fingir que tudo ia bem.
O primeiro capítulo de Girl in a band, intitulado “The end” – é preciso dizer mais!? –, descreve com cuidado estes momentos de suspense e nostalgia antecipada. Vive-se ali uma mistura confusa de sentimentos negativos, tais como abandono e tristeza, decepção e desesperança. Subitamente, Kim Gordon viu-se sozinha.
É muito curioso, agora, tendo-se o livro em mãos, tendo-se então acesso confiável aos bastidores do espetáculo, à delicada economia sentimental da banda, rever o último concerto na íntegra. Produz-se, em torno dele, uma nova chave interpretativa. O evento parece ocorrer sob uma outra luz.
As memórias de Kim Gordon nos auxiliam, deste modo, a compreender melhor não só o fim, mas a trajetória toda daqueles que constituíram um dos pilares do indie rock, de uma música pop oblíqua, transversal à grande indústria fonográfica.
É irônico também – não se pode mesmo deixar de notar – que o par perfeito, o relacionamento que parecia ideal, o casal que era, ao mesmo tempo, cool e hardcore, tenha sucumbido diante de um antigo e desgastado clichê: um homem na crise da meia-idade, uma mulher mais jovem, sedutora, uma traição conjugal, uma vida dupla.
O triste fim da juventude sônica.