O mundo é uma gigantesca ciranda de circunstâncias que se repetem indefinidamente. Os erros e acertos, fracassos e sucessos não se diferem muito entre si. São pequenos detalhes que mudam de um para outro, como uma pessoa presente, um local novo etc. Talvez não mudem por estarem diretamente ligados ao que você sabe ou não fazer. O problema é que só aprendemos essas lições depois de um fracasso, quando paramos para resgatar nossos ossos no fundo de uma cachoeira gelada. Acredito que Christopher Owens esteja passando pelo primeiro momento de clareza, de enxergar qual foi erro cometido e a tentativa de não repeti-lo, buscando se resguardar no que sabe fazer para ser uma pessoa melhor.
Após a decepção com Lysandre, o novo álbum do cantor, A New Testament, lançado dia 29 agora, é uma busca daquilo que o vocalista e fundador da extinta banda Girls melhor sabe fazer: letras pungentes, fofas mas com certa melancolia, melodia que tem um pouco de tudo, do rock clássico e country principalmente, e certa leveza densa para falar dos próprios fracassos. É de uma franqueza exemplar.
O nome do álbum é sintomático. Um novo testamento só é feito quando o antigo já não serve para mais nada. É um grito para a renovação, mas, ao mesmo tempo, uma renovação que só se alcança olhando para o passado. E qual a melhor história para falar sobre renovações do que um romance? Um romance lindo, intenso, na qual o vocalista encontrou provavelmente o amor da sua vida, mas por ser uma pessoa confusa num momento confuso, na qual traumas de infância, como a perda do irmão mais novo, emergiram de volta, acabou vacilando demais e estragou o amor que a outra pessoa sentia por ele. Essa outra pessoa terminou, começou a superar o relacionamento e ele está ali, aprendendo a ser um novo alguém sem aquele amor todo que ele tanto amava, sem o brilho dos olhos, o movimento em uma dança, a forma como se contorcia e a maneira felina de se acomodar em seu peito, sem a pessoa que tinha a chave de seu coração, aquela que, de tão única, fez ele se abrir tanto que se mostrou franco e fraco até demais, a ponto de provocar o ato cruel de um término: o desencanto. Desta forma, dá para dizer que A New Testament é praticamente um álbum conceito sobre a história inteira de um relacionamento.
A faixa de abertura, “My Troubled Heart”, é um rock clássico, com backing vocals, piano e uma mensagem bem forte para manter firmeza e força, mesmo quando o coração é problemático e a solidão existe, forte demais até, sem ninguém para dar um abraço forte, seja do pai ou de um amor. Coisa linda, já mostrando que o álbum vai ser também a forma terapêutica de reconstrução de seus fragmentos, uma característica que Christopher Owens já mostrara nos álbuns de Girls, mas não conseguira muito bem com seu primeiro álbum solo.
Depois de “My Troubled Heart”, onde se estabelece a solidão, percebe-se o caminho do encantamento por uma pessoa. “Nothing More Than Everything To Me” é sobre a paixão, a deliciosa paixão arrebatadora, aquela que você investe absolutamente toda sua libido, que entende que nada poderá ser melhor e maior que aquilo, com o sexo perfeito, violento e voraz, os corpos que se tocam e o olhar de desejo que atravessa muros; aquele sentimento de uno. Mas alguma coisa não está certa e descobrimos nas próximas duas músicas: “It Comes Back To You”, na qual o vocalista mostra o quanto ele ama a sua parceira, mas que ele ainda precisa passar por alguns problemas, e Stephen, uma faixa sobre a perda do irmão, aparentemente desconectada de todo o resto do álbum, que levanta um trauma da infância de Owens, trauma esse confesso no álbum para a sua amada, mas não de todo bem elaborado pelo cantor. E, pela falta de elaboração, um problema. Um problema com o qual ele não sabe lidar.
Depois de Stephen, do trauma posto, as coisas desandam, não são mais as mesmas. “Oh My Love” é uma música doída. Ela começa falando sobre como seria difícil o relacionamento, como os dois passariam por muitas dificuldades, mas que o amor reinaria. E bastaria, por ser muito grande. Ela disse que era para sempre, mas nunca tomou atitudes para tanto e ele sofria com isso. Havia aquela esperança de que as coisas dariam certo. Esperança canina, cega, do amor. Mas a tristeza de ver o outro triste é excruciante, paralisa. Mesmo que haja momentos de reafirmar o amor, no meio de tudo.
“Nobody’s Business” mostra a certeza do vocalista pelo amor mútuo, de que tudo dará certo. É como aqueles pequenos momentos de calmaria e amor de um casal que está numa fase difícil. O próprio tempo da música explicita perfeitamente como o momento de alegria plena está sendo curto: a faixa não chega a dois minutos.
“A Heart Akin The Wind” é uma música que mostra um pouco do sentimento volúvel de Christopher Owens, viajante que, sem saber e muito menos querer, trata sua amada como um vento, desmerece-a e não vê como o fim se aproxima com isso. Mas o amor existe, é inegável. Sempre existiu e existirá, por mais que ele saia da linha, é capaz de ouvir mensagens dela a quilômetros de distância.
Assim como “Nobody’s Business”, “Key To My Heart” é curta e não chega aos dois minutos. É a certeza do amor tão sincero que não dá para ficar falando muito. “So much of love I might just overflow”, “You give me something no one gives to me” e outras frases simples e verdadeiras. Apesar de todas as cagadas, Christopher Owens sabe que sua amada guarda as chaves de seu coração e pede para ela prometer que nunca vá embora.
“Over And Above Myself” não fala apenas sobre o amor transbordante da música anterior, mas do amor que pode se esgotar de tão forte. Mas a música tem um pedido: vamos superar o que todos estão falando, o que está sendo passado. Ela dialoga tristemente com “Oh My Love”. Vamos passar por cima de tudo e todos, só nós dois, criar algo permanente e verdadeiro. Construir o amor que acompanha, que se decepciona e aceita as diferenças e, com isso, é único entre os dois, mas forte e verdadeiro, talvez por conta do carinho já criado entre os dois, pelo sexo maravilhoso, por tudo. Mas talvez seja tarde demais para esse pedido.
“Never Wanna See That Look Again” trata dos erros de Christopher Owens. Não foram poucos. Foram inúmeras vezes que ele errou e machucou sua amada, que agora, cansada, não quer mais saber dele. É hora do fim, não aceito pelo cantor. O amor é gigante, é pleno, trata-se de uma pessoa que ele investiu muito emocionalmente. Como ele poderia ter errado justamente com a pessoa com a qual ele jamais quis errar? O sentimento de culpa se torna insuportável. Foi ele, através de todos os seus erros e sua insistência em não mudar, que fez o amor se esgotar do outro lado. E agora ele entende, pois perdeu o sentido de tudo. Só resta a admiração e o amor distante pela pessoa que ele tanto quer ver bem e feliz.
“Overcoming Me” mostra como Owens foi ingênuo, achou que seria para sempre. Era para ser junto, tinha tudo para ser junto, mas, por ora?, não será. Acha até bonito a maneira como ela está superando as dores causadas por ele, por mais que doa e ele não consiga se cansar dela. É uma das únicas músicas que passam de quatro minutos, mostrando como a dor é longa, profunda. E fecha com um triste “And I gave you all my love”. Agora ele está seco.
“I Just Can’t Live Without You (But I’m Still Alive)” fecha o ciclo do álbum. Mostra a repetição. É a música análoga a “My Troubled Heart”. A solidão voltou, a tristeza chegou para ficar, há uma única certeza: não dá para viver sem sua amada. Ele ainda está vivo; quebrado mas vivo. E assim como na primeira música do álbum, voltam as referências familiares: ele quer mostrar para sua mãe que não é um desistente, orgulhar o pai, mas não anda fácil, pois nem sabe direito ainda por onde começar a fazer isso. É o momento de se encontrar de novo. De resgatar os cacos do vaso que tinha sido colado tão forte por sua amada. E tentar agora colar sozinho, sem nenhuma habilidade para montar quebra-cabeças tão complexos assim. Mas, por ainda estar vivo, a mensagem é de esperança: o vaso será colado, mesmo que ele se torne um tapete de cerâmica.
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Resumindo, a mensagem final de A New Testament é a de manter a esperança. É preciso acreditar que será possível, mesmo sabendo das dificuldades de superar. Só assim poderemos, quem sabe um dia, voltar para My Troubled Heart e reviver o nosso próprio novo testamento. Mas, dessa vez, parando em “Nothing More Than Everything To Me”.