Não ter Elvis Presley na trilha sonora de “Priscilla”, filme sobre Priscilla Presley, foi uma outra forma de dizer que a protagonista dessa história é a ex-esposa do ídolo. No oitavo longa de Sofia Coppola, nos cinemas desde 4/1, a supervisão musical é assinada por Thomas Mars, do Phoenix, ao lado de Randall Poster, ambos colaboradores frequentes da diretora. Segundo Coppola explicou ao site Hollywood Reporter, a empresa detentora dos direitos autorais das músicas de Elvis não liberou as canções para o longa.
Ao todo, a equipe selecionou 51 faixas para o filme, que apresenta desde eletrônicos contemporâneos, como Porches e Dan Deacon, às baladas sessentistas na voz de Brenda Lee e The Little Dippers. Ainda que a história atravesse o final da década de 1950 até os anos 1970, a trilha flutua pelas diferentes eras da música americana. Logo no início do filme, escuta-se “Baby, I Love You”, versão dos Ramones para a música do grupo The Ronettes, gravada muito tempo depois da época em que a protagonista viveu em Graceland, mansão de Elvis em Memphis, no Tennessee.
“Conversamos sobre incorporar a essência do som de Phil Spector no filme. Ele produziu a música dos Ramones, que abre o filme, que parece ser daquela época, mas foi lançada em 1980”, explica Sofia Coppola em nota à imprensa. “Foi divertido brincar com a ideia de ter uma ponte entre diferentes épocas. Ao longo do filme, há músicas da época e outras mais recentes, mas todas elas amalgam o filme e lhe dão uma energia que, para mim, parece a infância feminina.”
Na filmografia da diretora, assim como o apreço visual, a trilha sonora é um caso à parte. Em “Maria Antonieta” (2006), longa ambientado no século XVIII, não faltam bandas oitentistas, caso de New Order, The Cure e Siouxsie and The Banshees. A fórmula se repete em “Priscilla”, pois o som acompanha as sensações da tela. Em entrevista ao site Indie Wire, Mars fala que o processo de seleção precisa combinar com o tema explorado: “o que há de mais vital na sensibilidade (da diretora) é combinar música e emoção, independente da época em que ela foi feita.”
A música tema de Priscilla, “Venus”, de Frankie Avalon, aparece no livro que inspirou o roteiro, “Elvis and Me: The True Story of the Love Between Priscilla Presley and the King of Rock N’ Roll” (1986). A balada tocava ao fundo no momento em que Priscilla conhece Elvis na Alemanha. O músico do Phoenix recriou diferentes versões da canção, que aparecem em momentos chave da trama. Por exemplo, uma versão ao piano embala o nascimento da filha Lisa Marie Presley.
Para fechar o filme, “I Will Always Love You”, gravação de Dolly Parton de 1973, carrega um grande simbolismo. “Era importante ter uma voz feminina no final do filme”, explica Coppola. “Além de que o sentimento da canção capta o momento em que Priscilla vivia, pois estava decidida a se separar de Elvis, ainda que o amasse. Era hora dela deixar Graceland e se colocar na frente da sua própria vida.”
A solidão feminina na obra de Sofia Coppola
A diretora manifesta um apreço por narrativas que retratam a sensação de isolamento de suas personagens. Em “As Virgens Suicidas” (1999), a cineasta, então estreante, aprofunda-se na rigorosa supervisão paterna, que aprisiona as irmãs Lisbon em uma solidão compartilhada. Já em “Encontros e Desencontros” (2003), a exploração da solitude é o ponto central do encontro entre dois estranhos. A figura da protagonista de “Maria Antonieta” (2006) é mostrada como isolada em meio à opulência.
O tema também se revela em “Um Lugar Qualquer” (2010), que examina a vida de um ator de Hollywood solitário em um hotel sofisticado. Finalmente, em seu filme mais recente, “Priscila” (2023), a trama se inicia com uma menina prometida a um sonho: estar com seu ídolo, mas logo percebe-se sozinha em posse de tudo e nada ao mesmo tempo.
Em nota à imprensa, a diretora explica o que a atraiu para o projeto: “Tradicionalmente, Priscilla tem sido uma personagem secundária na história de Elvis, mas ela viu toda a história através de lentes completamente diferentes. O que eu estava interessada em explorar como era ser adolescente em Graceland, crescer naquela atmosfera – amplificado ao extremo –, num casamento complicado, e como foi extraordinário que ela deixou aquele mundo para viver a sua própria vida.”
Um dos maiores êxitos de Coppola reside na habilidade de construir personagens de forma cuidadosa, que não deixa espaço para interferências impositivas. Um exemplo disso é no primeiro encontro, onde se torna evidente que se trata de um caso de grooming. A Priscila, interpretada por Cailee Spaeney, tem apenas 14 anos quando conhece o ídolo, Elvis, vivido por Jacob Elordi, que aos 24 anos, vivia no acampamento do exército americano na Alemanha. Sob a pretensão de que se interessa por Priscilla por serem conterrâneos, Elvis enlaça a jovem de maneira aparentemente respeitável, mas intrinsecamente desconfortável.
O desejo de Priscilla de se envolver com o seu maior rockstar é um anseio compartilhado entre gerações, ganhando intensidade na narrativa desta jovem que se encontra em uma espécie de gaiola, entediada pela rotina limitada de um acampamento militar em um país estrangeiro. Ao se reconhecer neste papel, ela demonstra prontidão para oferecer conforto ao seu amado que perdeu a mãe recentemente e a dor da saudade de casa.
As frustrações se acumulam por meio da representação desse Elvis de Sofia Coppola, que não demonstra interesse em contribuir para a manutenção dessa lenda, contrastando com a abordagem do filme que leva o nome do músico dirigido por Baz Luhrmann, de 2022.. Esses dois retratos do astro do rock não poderiam ser mais antagônicos. O Elvis de Austin Butler é solar, grandioso, excêntrico, como pede a cartilha de ídolos do gênero. Em contrapartida, o de Sofia é enevoado, e desprovido de individualidade, perpetuamente acompanhado por uma entourage de homens, submetendo-se às ordens diretas do empresário e do pai.
O seu único poder se manifesta sobre Priscilla, e ele faz questão de exercê-lo, controlando seus desejos e sua imagem, ao exigir que ela pinte o cabelo de preto ou escolha o que vestir. Priscilla anseia por momentos de intimidade, mas é Elvis quem decide quando eles ocorrem. Ela deseja trabalhar em uma loja próxima, mas ele exige que ela esteja sempre disponível para atender suas ligações. Ela desfruta de benefícios breves, especialmente quando está na escola, onde é o centro das atenções e utiliza sua fama local para trapacear em uma prova para a qual não estudou.
No entanto, aos poucos, a jovem percebe que esses raros momentos não são suficientes, e sua emancipação se manifesta mais uma vez por meio das vestimentas. Ao optar por estampas, contrariando as preferências de Elvis, ela finalmente cruza os portões de Graceland pela última vez. O triunfo de Sofia Coppola está na habilidade de relegar o rei do rock a um papel secundário. Priscilla é uma garota solitária de Sofia, que troca uma gaiola por outra, porém com a maturidade, decide buscar o seu próprio caminho.
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