Uma noite em claro com a Cachorro Grande

30/09/2014

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Revista NOIZE

Por: Revista NOIZE

Fotos:

30/09/2014

Fotos: Ariel Fagundes

– Puta que pariu! Olha aquela luaaa!!!

*

A van já cortava o asfalto há meia hora quando esse grito explodiu na minha orelha – olhei para direita e vi o astro cor de sangue que tanto impressionou a Cachorro Grande. Acendi meu cigarro pensando que aquela tigela vermelha no céu deveria ser o anúncio das fortes emoções que marcariam a noite. Sentado atrás do motorista da van e ao lado de um isopor recheado de cerveja, fui acompanhar a banda em um dos últimos shows que fez antes do lançamento oficial do novo disco, Costa do Marfim (2014). Atrás de mim, vinham o tecladista Pedro Pelotas e o baixista Rodolfo Kriger; nas costas deles, o baterista Gabriel Boizinho, o vocalista Beto Bruno e sua filha de 23 anos; e, bem ao fundo, o guitarrista Marcelo Gross, chamado carinhosamente pelos colegas de Fedor.

Nosso destino era a pequena cidade de Feliz, no interior do Rio Grande do Sul. Lá, a banda se apresentaria em um evento chamado Universo Bud, que, além do palco principal, contava com ambientes para tocar pagode, sertanejo e “E-Music” (o que quer isso seja). Mas a identificação de uma cebola na salada de frutas era o menor dos desafios da banda naquela noite. Poucos dias antes do show, o pai de Beto Bruno faleceu com apenas 64 anos e havia um clima de luto respeitoso circundando todos nós. Ainda mais porque, após rodarmos alguns minutos em silêncio, o cantor desabafou:

– Gurizada, me ajudem a puxar esse show aí…. Meu pai ia fazer 65 anos hoje.

Engoli em seco e contive a emoção enquanto todos colegas se prontificavam a apoiar o vocal. Beto me disse o quanto seu pai sempre foi uma inspiração para a banda e houve um segundo em que não foi fácil respirar o ar que preencheu o carro. A atmosfera foi perdendo densidade conforme o veículo se enchia de fumaça e eu fui alcançando sucessivas latas de cerveja aos músicos – exceto a Beto, que bebeu apenas vinho. A van comia os quilômetros da estrada rápida como um cão faminto e os alto-falantes tocavam o primeiro disco da banda argentina Pescado Rabioso, Desatormentándonos (1972).

– Mutantes, O Terço, A Bolha… Essa banda aí tem um pouco de tudo isso! – gritou Beto.
– É, mas na Argentina não tem nenhuma banda que chegue perto dos Mutantes. Alguém tem que dizer isso pros roqueiros argentinos! – respondeu Gross.

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– Qual é o nome da cidade mesmo? – pergunta Beto.
– Feliz! – responde a banda toda em uníssono.

Pouco após a pergunta do vocalista, e depois do disco argentino tocar umas quatro vezes, chegamos à Sociedade Esportiva de Feliz, onde o tal Universo Bud acontecia. Por todos os lados, passavam meninas com o rosto pesado de maquiagem e os glúteos contraídos por saltos altos compridos e vestidos justos. Rapazes com gel nos cabelos e camisas xadrez circulavam pelo evento como se buscassem a melhor vaca leiteira da Expointer. A parcela do público que aparentava ter algum envolvimento com o som da Cachorro Grande (e até mesmo com o rock em geral) era pequena – pelo menos foi o que pensei até entrar na área restrita à banda.

A fina porta que separava o camarim do resto da festa era um portal entre dois mundos. Enquanto lá fora tocava alto os covers de Metallica, Guns N’ Roses e Nirvana da banda de abertura chamada Black Blood, cujo membro mais velho tinha 14 anos, dentro do camarim a Cachorro Grande conversava tranquilamente com sua equipe de produção. Pizzas, salgadinhos, uísque, vinho, água, refrigerante, energético e uma geladeira inteira de cerveja garantiram que ninguém ali pudesse reclamar de fome ou de sede.

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Já eram quase 2h da manhã e faltava cerca de meia hora para a Cachorro tocar quando aproveitei uma pausa e me meti na conversa que rolava entre Beto e Gross sobre o som de Costa do Marfim:

– Tu viu como mudou o som no disco? – perguntou o guitarrista se referindo à diferença entre o arquivo sonoro que tinha ouvido antes e o áudio que se ouve no CD pronto.
– Sim, mudou pra melhor!
– É, ficou mais grave… Dá pra ouvir várias texturas da voz, todas as variações do delay… E a gordura, né? Ficou gordo o som!

Na brecha da conversa, lancei:

– Pô, eu tava ouvindo o disco e me chamou atenção como ele soa bem diferente dos anteriores. Na real, parecia que essa mudança já tava traçada nos últimos discos…
– Mas que a gente não conseguia fazer, né? – me interrompe Beto.
– É, tipo isso…
– Com o Edu a gente conseguiu.

Ele contou que a produção de Edu K foi determinante para que o disco novo soasse como soa: cheio de camadas eletroacústicas, com uma profundidade sintética que vai da voz à bateria unindo uma salada de referências. Dar play em Costa do Marfim é ouvir percussões tribais junto à alucinação lisérgica dos Beatles na Índia; estão lá os riffs enérgicos do The Who, mas se destaca um frenesi estriquinado e dançante próprio da cena Madchester da virada dos anos 80 pros 90. Minhas suspeitas se confirmaram quando perguntei a Beto o que eles mais escutaram compondo o disco:

– Ah, ouvimos muito Chemical Brothers, todos os discos do Ian Brown [vocalista do Stone Roses], que são muito bons! E muito Primal Scream também… Aliás, tu viu que o cara morreu agora?

A pergunta de Beto não foi pra mim, e sim pro Pelotas, que já sabia da morte do guitarrista Robert Young, um dos criadores do Primal Scream. Disparo outra questão, agora pro tecladista:

– E esse lance africano, percussão, Costa do Marfim, de onde veio tudo isso?
– Isso surgiu de uma piada interna entre nós. O Edu falou que aquele calor todo que a gente tava sentindo era da Costa do Marfim, uma coisa assim. E a gente viajou nisso e se transformou em algo maior. No final, esse disco acabou ficando como a gente queria que tivessem ficado os últimos – explicou Pelotas reforçando o que Beto disse.
– Mas a ideia era que cada um dissesse uma resposta sobre isso nas entrevistas! – acrescenta Gross emendando uma gargalhada.
– É! Nas entrevistas por email é bem mais fácil de dizer qualquer coisa! – diz Pelotas mal levando a sério suas próprias palavras.

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A roda se dispersou em risos e Rodolfo me pediu para alcançar a ele outra cerveja. O camarim não era grande, havia apenas dois sofás, a geladeira, uma bancada e um banheiro, e as pessoas revezavam suas posições no espaço como se fosse um time de vôlei – mas ao invés de rede, uma cortina de fumaça dividia a sala e, no lugar da bola, passavam de um lado ao outro garrafas e isqueiros.

Não vi a banda falar sobre o show que estavam prestes a fazer e mal acreditei quando o produtor abriu a porta avisando que eles deviam subir ao palco. Quando eu vi, todos já tinham saído do camarim. Pisquei os olhos e um grito distorcido vibrou do amplificador de Gross. Preparei a câmera fotográfica e o show começou provocando uma histeria que eu sinceramente não esperava daquela plateia.

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Metralhei cliques sem parar pelos 90 minutos seguintes e, a essa altura da noite, a Cachorro Grande havia se transformado, para mim, em uma longa sequência de flashes coloridos. Só sei que o setlist foi uma coletânea de sucessos (“Sexperienced”, “Você não sabe o que perdeu”, “Bom Brasileiro”, “Sinceramente”, “Dia Perfeito”, “Conflitos Existenciais”, etc…) e as músicas novas não apareceram. Lembro pouco, mas lembro bem de estar pingando suor quando eles tocaram “Helter Skelter” e de sentir um aperto no peito quando Beto Bruno disse, depois de cantar “Hey Amigo”, que estava dedicando aquela música a um amigo muito querido da banda que havia falecido naquela semana.

Em cima do palco, a Cachorro Grande provou que o sentido da vida é a diversão. Seu show teve espaço para jams improvisadas impagáveis, como quando Boizinho largou as baquetas e trocou de lugar com Gross, que assumiu a bateria. Até a gurizada da banda de abertura voltou e fez um som com a Cachorro no fim do show.

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Depois que a apresentação acabou e voltamos pro camarim, o relógio marcava algo em torno das 4 da manhã. Vários fãs entraram para tirar fotos com a banda e também muita gente que nem fã era, mas queria registrar aquele instante com alguém famoso. Um tilintar contínuo ao redor da sala denunciava que muitas garrafas estavam sendo abertas por todos os cantos. Nesse ponto, eu já havia trocando tanta conversa fiada que guardei na memória apenas frases soltas de muitos assuntos sem começo nem fim:

– Tu sempre acompanha a banda?
– Não, foi só dessa vez…
– Tem muita gente que depende de nós, famílias inteiras, tem gente que trabalha com a Cachorro Grande há dez anos…
– Quando a música entra no tempo certo, dá tudo direitinho…
– Playback é do caralho! Na inauguração do Beira-Rio fiquei muito louco e não errei uma nota!
– Será que tem como tocar aquela música ao vivo?
– Claro que tem!

As gargalhadas adornavam o ambiente e as conversas se misturavam como a fumaça dos nossos cigarros. Mais de uma hora se passou assim, mas de súbito, o clima mudou e o produtor avisou que já estava tudo pronto e que deveríamos partir. A festa ainda não tinha acabado, mas já havia bem menos gente no clube. Chegamos à van no escuro e sentamos exaustos esperando que aquelas quatros rodas nos levassem o mais rápido possível para a cama. O veículo estava mais empoeirado e o céu lentamente foi perdendo o negror e adquirindo as feições de um imenso algodão doce que ia do rosa ao laranja caramelo. Conforme andávamos, a conversa foi rareando até o ponto em que as pessoas quase não falavam nada. Os quilômetros passavam, a cerveja seguia entrando e chegou um momento em que eu só conseguia pensar: “Porra, em que cidade eu tô?”. Deixamos Gross em Canoas e, quando vi que estávamos de volta a Porto Alegre deixando os outros músicos em suas casas, a pergunta na minha cabeça mudou para: “Porra, em que rua eu tô?!”.

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Um a um, Beto e sua filha, Boizinho e Pelotas foram sendo deixados em partes diversas da cidade. Quando desci, apenas Rodolfo estava na van, sentado com uma cara de quem havia levado uma surra e precisava dormir em paz. Ou talvez eu tenha visto a minha própria face refletida no olhar cansado dele. Sei lá, o que sei é que foi difícil chegar em casa com o sol forte ofuscando a vista, ouvindo alto o canto dos passarinhos e esbarrando em vários transeuntes que estavam começando o seu sábado com a disposição irritante de quem dormiu muito bem.

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30/09/2014

Revista NOIZE

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