Não, nós acreditávamos, e eu ainda acredito, que a
ditadura militar tinha sido um gesto saído de regiões
profundas do ser do Brasil, alguma coisa que dizia muito
sobre o nosso ser íntimo de brasileiros – vocês podem
imaginar como a minha dor era multiplicada por essa
certeza. No entanto, uma vez no exílio, chegavam até nós,
saídas de regiões não menos profundas do ser do Brasil,
vozes que nos diziam (nos tentavam dizer) que isso não
era tudo.
Caetano Veloso, em Circuladô vivo
No dia 13 de agosto, no festival Doce Maravilha, Caetano Veloso tocará o álbum Transa na íntegra. É a comemoração do cinquentenário do trabalho gravado em Londres 1971 e lançado no Brasil 1972, classificado por muitos como o melhor da extensa obra do compositor, cultuado pelas novas gerações, compreendido como aquele obriga definitivamente os estrangeiros a provarem do biscoito fino fabricado pelo santamarense, eleito pela revista Rolling Stone como o décimo melhor disco brasileiro de todos os tempos, e muito mais.
Tudo isso é inconteste e logicamente merece todos os festejos, mas a curiosidade fomentada por um certo desarranjo cronológico permite perguntar: por que celebrar justamente neste momento as cinco décadas de um disco que, objetivamente, ora completa 51 anos de lançamento e 52 de gravação? Se apenas quando dos quarenta anos sublinhou-se a efeméride com o lançamento de uma remasterização no estúdio Abbey Road, e sem rito oficial de nenhum dos decênios anteriores, por que ritualizar agora? Em função da curadoria do festival ser de Nelson Motta? Por uma estranha vontade extemporânea? Em função de em 2021 e 2022 estarmos ainda sob os efeitos pandêmicos? Pelo fato de que quando o disco completou meio século Caetano estava envolvido com a produção, o lançamento e os shows de seu último disco e só agora houve oportunidade para celebrar?
Porque no Meu Coco ao vivo, tocando canções de diversos álbuns em ordem cronológica e homenageando os diversos parceiros que o acompanharam, quase passa a limpo a carreira ou porque no show de repertório baianíssimo realizado no dia em que completou 80 anos, acompanhado dos filhos e da irmã, Caetano indicou o desejo, reiterado em entrevistas posteriores, de retornar à Bahia e fazer shows semanais por lá, e passar a limpo a carreira e voltar para a Bahia é motivo para reapresentar o mais reverenciado de seus trabalhos? Entendê-lo como um clássico é também apostar que ele ainda não terminou de dizer o que veio dizer: ou seja, que há um caráter contemporâneo no disco. Acessar a continuidade da onda sonora que dura mais de cinquenta anos e seu eco forte no presente talvez permita que, afinal, possamos responder à questão: por que e para que transar o Transa justamente agora?
Transa é um disco que mereceu muitas explicações sobre sua conjuntura, mas poucas passagens acerca de seu processo criativo. Sabe-se que foi um disco de grupo, idealizado e composto por Caetano, dirigido por Jards Macalé e produzido por Ralph Mace, com uma banda formada por Caetano, Jards, Tutty Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo de Sousa, gravado em pouquíssimas sessões, quase ao vivo, com participações de Gal Costa e Ângela Ro Ro, que o técnico de som ficou surpreso com a robustez do som e com instrumentos como o berimbau e agogô, que faltou o nome dos músicos na ficha técnica do discobjeto concretista que se dobrava feito um abajur e que isso gerou incômodos, mas acerca de dúvidas, escolhas, intenções e acertos do processo, pouco se sabe.
Em Verdade tropical, por exemplo, merece menos linhas do que Araçá azul, do que músicas populares como Alegria, alegria ou Tropicália, e até mesmo do que canções nunca gravadas como Clever boy. Entendê-lo como um clássico é também apostar que ele ainda não terminou de dizer o que veio dizer. Além de desfrutá-lo, resta aos admiradores do trabalho extrair sentidos do disco – dos três sentidos de sentido na língua portuguesa: o que o álbum expressa, o que significa e para onde leva. Para isso, compreender sua posição na trajetória de Caetano, seu arco narrativo próprio e as veredas que abriu até os dias de hoje talvez sejam tarefas importantes para que se possa perceber a contemporaneidade do disco, e, finalmente, os motivos para que seja tocado novamente agora.
Caetano já disse que o tropicalismo foi, para seus protagonistas, uma descida ao inferno. Da apresentação de Alegria, alegria em 1967, passando pelo álbum-manifesto, por É proibido proibir, pela temporada na boate Sucata, pela prisão e pelo exílio, se trata mesmo disso – e cumpre notar, com espanto e obviedade, que, em um dos momentos mais luminosos da vida artística do país, a oficialidade tenha feito isso de suas referências.
No movimento organizado, dentre outros, por Caetano, a canção popular participa, esteticamente, de uma espécie polimorfa de explicação da cultura nacional. Com isso, de um modo estranho, dissonante, singular e heterodoxo, finda por, simultânea e arriscadamente, criar e explicar o Brasil. Para fazer essa operatória crítica, de um pessimismo hiperativo paradoxalmente anexado a um otimismo incontornável, fez uso de alguns procedimentos característicos: subversão de hierarquias formais, uso amplo de fragmentos e colagens, prosseguimento do phyllum antropofágico, proximidade com a fina lâmina da contemporaneidade internacional em tensão amorosa com a tradição brasileira, superação da oposição entre o centro e a periferia. Nesse sentido, e por mais que se costume circundar o movimento entre 1967 e 1968, de Alegria, Alegria e Domingo no parque até a prisão, e que seus próprios proponentes já houvessem encenado o enterro e declarado sua morte na televisão, Transa talvez tenha sido, metodologicamente, o ápice – o ponto a partir do qual o movimento pode iniciar a dissipação infinita, seja na carreira de seus criadores, seja em filiações e alianças tão díspares e inusitadas quanto o mangue beat, o rap, a axé music, o funk ou o tecnobrega.
Um dos princípios mais presentes no tropicalismo foi o desejo de lateralização fragmentária entre elementos diferentes e, a princípio, incomponíveis. Realizar venturosas sínteses, diria o filósofo senegalês Felwine Sarr. A cena mais didática disso é a exibição de Domingo no parque, de Gilberto Gil, em 1967, com o berimbau, o violão e a guitarra elétrica alocados lado a lado no front do palco. Não à toa, o movimento extrai seu nome de uma zona demarcada por paralelos e define, à moda do perspectivismo ameríndio, que, a despeito da centralidade europeia e estadunidense em tudo que diga respeito à economia, o eixo de imantação e transmutação da produção cultural global poderia ser, ao menos provisoriamente, a região entre o Trópico de Capricórnio e a linha do Equador. Na definição de Torquato Neto, tratava-se de “assumir completamente tudo o que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra, ainda desconhecido”.
Ailton Krenak conta que quando seus ancestrais fincavam um mastro no chão para realizar seus ritos, o objeto marcava, temporariamente, o centro do mundo. A tropicália já entendia que era mágico que o centro pudesse estar, revezada ou concomitantemente, em tantos lugares. Parece ainda mais mágico que o ápice metodológico tropicalista e sua condição de dissipação possa ter se dado justamente no Meridiano de Greenwich. Transa é um disco de latitude feito na longitude mais célebre: um reencontro transversal com as belezas puras e impuras do país, que atrai o centro mundo para o paralelo onde crava o mastro – pouco importa que este paralelo seja, afinal, mais famosamente, o meridiano que junta ou separa os hemisférios ocidentais e orientais.
Muito já se fez a crítica de Transa indicando ser este um disco de saudade. O próprio Jards Macalé já definiu assim: “era uma saudade nossa, detonada pela saudade do Caetano”. Evidentemente, Transa, é, também, um disco de saudade. Porém, parece ser, mais do que isso, um disco de volta – mais precisamente, um disco que, da primeira à última faixa, faz a narrativa da travessia odisseica, lusidíaca, dantesca, oxossiana, sacrificial e, no limite, analítica, quase transferencial e trágica, do retorno. Se o Transa foi o ápice, foi também a despedida do tropicalismo – especialmente porque, apontando para a possibilidade de volta ao país tão belo e banguelo quanto a baía de Guanabara, simultaneamente indicava que o momento mais duro e doloroso da trajetória de Caetano diante do estado de exceção tinha acabado.
A preposição latina trans significa “além de”, “para além de”, “o outro lado” ou “o lado oposto”. Em português, trans é prefixo de movimento – de travessia, de alteração de estado, de comunicação, de passagem. É prefixo de diferença – prefixo heraclitiano quase ontológico de um mundo que não cessa de diferir de si mesmo, mundo trans que não permite entrar no mesmo rio duas vezes porque nem o homem nem o rio são os mesmos. Transrio, transhomem. Transa é, sem exageros, um disco de celebração da mudança de estado e do encerramento do que houve de infernal na travessia tropicalista.
Em Verdade Tropical, Caetano refere-se algumas vezes ao sexo. A “coisa mais natural e também a mais misteriosa e transcendente de todas as coisas deste mundo”, “o mistério central da vida” e “milagre rotineiro” são algumas das expressões que utiliza para explicitar a importância que dá à transa em sua vida. Diz ser pouco a definição de sexualidade que, em A velhice, Simone de Beauvoir atribui a Lou Andreas-Salomé – “uma realização magnífica e exaltante do indivíduo”. A descoberta do orgasmo é definida por Caetano como “o acontecimento-chave da minha vida”. E completa: “Eu, aos dez, onze anos, senti-me – e o disse entusiasmado a mim mesmo – não apenas justificado em minha existência, mas também no direito de justificar plenamente a existência do mundo. O caráter de iluminação da experiência sexual proibia a intromissão da noção de pecado na seara da minha intimidade. Era uma evidência muito grande do bem e do belo como verdadeiro para que pudesse representar um aspecto censurável da vida. Na verdade, não era um aspecto, um fato entre outros, mas algo que se abria como um absoluto. Eu me segredei o nome de Deus e me perguntei maravilhado como era possível que em nosso próprio corpo – em meu próprio corpo – estivesse inscrita essa graça”.
Nos porões da ditadura, muito magro e de cabelos forçadamente cortados, Caetano sentiu os efeitos do totalitarismo diretamente no corpo, e especialmente nas materializações intensíssimas e pontuais de transbordamento líquido e viscoso da vida que são o pranto e o gozo. Na tranca, e mesmo com toda a tristeza que a situação impunha, era impossível chorar: “nem uma lágrima sequer começava a se preparar em minha alma para que eu esperasse senti-la escorrer generosamente sobre meu rosto invisível”. Igualmente, era impossível gozar – ou, até, minimamente se excitar e atingir uma ereção. Todas as tentativas de masturbação eram infrutíferas – o que, a despeito da situação, causava em Caetano certo estranhamento em relação à “neutralidade tátil com que reagiam meus órgãos genitais ao manuseio, neutralidade que logo se transformava em dissabor, e que correspondia a uma indisposição do espírito para o prazer ou o desejo”.
Antena hipersensível, Caetano vivia direta e dolorosamente a radicalidade da experiência fardada e ultradireitista nacional. Na cadeia, sentia o rebaixamento da vida em ato no impedimento de um corpo que não podia ser arrebatado nem pela tristeza nem pelo prazer, e muito menos pela fisicalidade transbordante das lágrimas e da ejaculação. Em um testemunho quase espinosista, conta que sem a graça do sexo ou do pranto, sentia-se como que seco e apartado do próprio corpo, e que parecia que poderia ser salvo do horror se sentisse jorrar de si esses líquidos vitais – vitalidade que havia se esvaído sob o antierotismo ditatorial infernal.
Na tragédia As Fenícias, de Eurípedes, há um diálogo em que Jocasta encontra Polinices em seu retorno de Argos e pergunta se o exílio é realmente uma coisa tão dura. Polinices responde que é a coisa mais dura que se pode suportar, porque no exílio não se tem o direito de falar. É claro que, na Grécia da tragédia, tratava-se de um direito stricto sensu. Um estrangeiro, assim como as mulheres e os escravos, não tinha cidadania, e não sendo cidadão, não poderia se dirigir à assembleia e, com a força da palavra, contribuir na direção da coisa pública: literalmente, um exilado estava publicamente silenciado. No exílio de Caetano, a proibição de fala é mais simbólica do que literal. O distanciamento e a saudade do Brasil mantinham o corpo tomado pelas afecções tristes – e, logo, distantes e saudosos também de si e do mundo.
Gilberto Gil foi para Londres mandando aquele abraço para Realengo e retornou dizendo não saber se foi sorte ou castigo dar de parar naquela Ilha do Norte. Com Caetano, tudo foi diferente: a saída, a chegada, a adaptação à cidade, à cultura e ao clima, a condição de expatriado o colocaram diante de um distanciamento de si e do mundo dificílimo de atravessar. Em uma carta-coluna escrita ao Pasquim em novembro de 1969, diz: “Hoje quando eu acordei eu dei de cara com a coisa mais feia que eu já vi na minha vida. Essa coisa era a minha própria cara” (…) Quando um homem vê a sua cara no espelho ele vê objetivamente em que estado a vida o deixou”. Nem mesmo a visita de Roberto Carlos e a presença simbólica de um legítimo rei que falava e agia em nome do Brasil com mais autoridade do que os milicos, e que o fez chorar ao cantar As curvas da estrada de Santos, bastava para desviar o fel de um coração que estava “cheio de um ódio opaco”. Nas últimas linhas do texto, como corolário da depressão que atravessava, ele declara sua própria morte: “Mas eu agora quero dizer aquele abraço a quem quer que tenha querido me aniquilar porque o conseguiu. Gilberto Gil e eu enviamos de Londres aquele abraço pra esses caras. Não muito merecido porque agora sabemos que não era tão difícil assim nos aniquilar. Mas virão outros. Nós estamos mortos. Ele está mais vivo do que nós.”
Contracenar não-intencionalmente com o corpo de Carlos Marighella na capa de uma edição anterior do Pasquim evidenciava o ostracismo melancólico e deprimido que Caetano atravessava ao ver desmanchar no ar a aparentemente sólida imagem que havia costurado nos dois anos em que havia habitado e disputado a cena pública nacional. Em suma, silenciado pelo exílio como Polinices, era agora um corpo subjetivamente mais morto do que o corpo do líder comunista morto pela ditadura – na mensagem cujo oculto óbvio, para usar a fórmula precisa de José Miguel Wisnik, sintomaticamente ninguém entendia.
Quando seus pais iam comemorar quarenta anos de casados, Maria Bethânia conseguiu que Caetano obtivesse uma autorização para retornar temporariamente ao Brasil – e, assim, que todos os cinco filhos estivessem presentes nas bodas de esmeralda do casal. Assim que desembarcou no Galeão, Caetano foi separado de Dedé e levado por militares à paisana para um apartamento na avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio de Janeiro, onde, evidentemente angustiado e amedrontado, foi interrogado pelos oficiais por um punhado de horas. Além das ameaças de não ser liberado, da exibição da listagem de colegas que supostamente eram dedos-duros e das perguntas acerca de sua relação com outros exilados, os militares impuseram as condições para aquele mês que Caetano passaria no Brasil: compor uma canção em homenagem à Transamazônica, a estrada megalomaníaca e frustrada que o governo militar construía como símbolo de um Brasil Grande, dirigir-se para Salvador e de lá não sair até o retorno à Inglaterra, não cortar o cabelo ou fazer a barba, atender a todos os pedidos de entrevista da imprensa – entrevistas que deveriam ser dadas por escrito e submetidas à avaliação dos agentes federais – e fazer duas apresentações na televisão – uma no programa do Chacrinha e outra no programa Som Livre: exportação, comandado por Ivan Lins e Gonzaguinha. Tudo deveria parecer normal.
Depois do interrogatório, já na zona sul da cidade, próximo à casa de Maria Bethânia, Caetano viu, pela janela do carro de polícia, os integrantes do MPB4 passarem muito perto. Ver aqueles músicos da sua geração, tão brasileiros que tinham usado a abreviação da expressão música popular brasileira para dar nome ao grupo, expressão que mais de uma vez Caetano disse não gostar, mas que talvez, naquele encontro, simbolizasse a relação adversativa leal que ele e o conjunto mantinham entre si, a disputa mais agonística do que antagonista que protagonizavam, o amor pelo país e pela arte que performatizavam de modo tão distinto, tudo isso acendeu, ali, um amor “como a gente imagina que alguém que já morreu pode amar os que ainda vivem: do ponto de vista da eternidade”, e seus olhos se encheram com as lágrimas que expressavam a emoção que Caetano diz sentir até hoje toda vez que pensa ou fala nessa cena – as mesmas lágrimas que, cerca de um ano antes, na prisão, estavam impossibilitadas de transbordar.
Já em Salvador, percebeu, no vidro de trás do carro do concunhado com quem pegou uma carona, um adesivo com o slogan dos militares que ocupavam o poder e que queriam amalgamar totalmente o regime odiento ao país: Brasil, ame-o ou deixe-o. Estar na Bahia, no carro de um parente, circulando em um veículo que difundia os ideais daqueles que o haviam prendido e afastado do país, em tudo opostos ao Brasil dele e dos rapazes do MPB4, deu a medida da drasticidade da situação pessoal e nacional. Caetano voltou para a Inglaterra apavorado, e achou que talvez fossem passar muitos anos antes que fosse possível retornar ao país novamente.
Na volta a Londres, terminou de gravar seu primeiro disco fora do Brasil. Na capa do álbum, a imagem do artista carrancudo, de cabelos compridos, cavanhaque e enrolado em um casaco pesado indica que a melancolia era a marca mais forte do trabalho. Seis das sete faixas são cantadas em inglês. No idioma estrangeiro, lembra da prisão, da impossibilidade de chorar, da obrigação de deixar o país e afirma estar ainda mais triste agora, pede notícias do Brasil para a irmã e deseja que as coisas melhorem, cola a homenagem aos objetos relacionais de Lygia Clark a Marinheiro só e Quero voltar para a Bahia, fala de caminhadas errantes e solitárias por Londres e menciona quase sem alterações um trecho da carta escrita ao Pasquim.
O disco é todo dolente e deprimido: tradução musical da alma exilada, documento poético do banzo. Mas é em seu último ato que a posição distante, triste, desprovida de vitalidade, subjetivamente estiada se faz mais tortuosamente presente. O eu lírico da canção se equipara ao pássaro que foge da seca e, longe muitas léguas, numa triste solidão, espera a chuva cair de novo para voltar para o sertão. Chuva também é transbordamento líquido, como o pranto e o gozo impossibilitados no período de reclusão. A imagem é clichê, mas não inválida. Como disse Itamar Assumpção, chavão às vezes abre porta grande. Quando canta a Asa branca, de Luiz Gonzaga, Caetano se equipara, em sua secura subjetiva, à secura do sertão. Era a imagem antropológica e didática do sofrimento de um rapaz latino americano degredado. O desejo da ave e do eu lírico da canção de voltar ao sertão mais umedecido é também o desejo de Caetano de voltar a si – ou, mais precisamente, à umidade subjetiva do sertão-eu, do sertão-recôncavo, do sertão-Bahia, do sertão-Brasil, ou, mais ampla e roseanamente, do sertão-mundo.
A passagem pelo Brasil havia sido dura, mas, de algum modo, havia reanimado Caetano. Rever pessoas, lugares e coisas do Brasil dava ao país um aspecto de realidade material e concreta que a perspectiva de um exílio sem retorno diluía. Apesar de tudo, o Brasil ainda existia – e isso bastava para reacender minimamente uma fagulha vital. Em uma ligação transmitida por Bethânia no carnaval de 1970, motivado pela pequena chama, convidou Jards Macalé para ir a Londres tocar com ele. Tutty Moreno, Áureo de Sousa e Moacyr Albuquerque completariam a banda. Depois da prisão que o deixou temporariamente impossibilitado de chorar e de gozar, mas ainda no exílio que o deixara silenciado e simbolicamente morto, Caetano queria transar o Transa.
O trabalho no álbum novo e as recordações recentes do Brasil – da existência real do Brasil – deixavam-no mais aberto para o que, a despeito do movimento forçado de saída de seu país, poderia haver de interessante em Londres. Raspou a barba, deixou de se sentir sempre triste e passou a amar “o verde dos parques, a calma das ruas em forma de crescente, das vielas, os musgos e as flores, enfim, a sabedoria de vida que há ali, de uma forma genuína e intensa como nunca sonhara antes que poderia”. Assim, finalmente dentro de Londres, mas sempre como estrangeiro, ele poderia enfim fazer uma ode ao Brasil – ao seu Brasil peculiar, singular, inacabado e, mais do que tudo, amado.
Uma ligação de João Gilberto em agosto de 1971 intensificou a mudança que já se iniciara. Seu mestre maior convidava para juntar-se a ele e a Gal na gravação de Chega de saudade, um especial da TV Tupi. Diante da descrição do tormento que havia sido a visita anterior ao país, o bruxo de Juazeiro, mais bruxo do que nunca, assegurava que era Deus quem estava pedindo para fazer o chamado e que nada daquilo iria se repetir: que Caetano iria saltar do avião e todas as pessoas sorririam para ele e que, assim, ele veria como o Brasil o amava. Ele não podia nem desacreditar nem desobedecer a João, e, mesmo amedrontado, embarcou para o Rio de Janeiro no dia seguinte. Na chegada ao Brasil, as coisas aconteceram exatamente como havia sido profetizado. Nos trâmites da alfândega e da imigração, era como se o Brasil dos milicos nunca tivesse tido qualquer problema com Caetano. Reaconchegar-se no Brasil era reaconchegar-se no mundo, o que, evidentemente dava outras perspectivas de presente e de futuro para a relação entre ele e o país.
Poucos artistas brasileiros combinam tanto quanto Caetano o caráter público e o caráter privado. Em sua obra quase tudo é pessoal, mas quase nada é privado. Como ele mesmo já disse, todas suas letras são autobiográficas, até mesmo as que não são. Essa intensa sensibilidade micropolítica acopla-se a uma singularíssima aptidão para o discurso público. Também como poucos artistas brasileiros, Caetano suga, mais como uma antena do que como uma esponja ou como um buraco negro, as forças e os fluxos ainda sem forma do Brasil, e os devolve ao país transformados em canção. Assim, se havia a percepção vibrátil de que era possível voltar, era preciso, antes, processar artisticamente a volta: era preciso transar o Transa.
Talvez se possa começar dizendo que, nas letras das sete canções que compõem o disco, menos da metade das palavras são criações inauditas do próprio Caetano: mais da metade são de colagens extraídas de outras obras já existentes. Quase todo texto da lavra de Caetano é em inglês – há apenas duas exceções, ambas na mesma música. Ao contrário, as colagens, que funcionam pelo que inserem, mas também pelo que excluem, são todas em português. Esse jogo verbal de revezamento criativo, linguístico e nacional, alinhado ao cubismo, ao cut-up de Burroughs e às discussões de época acerca do que é um autor, já dá fortes indícios do que seja o simbolismo do disco e quase já diz tudo. Todavia, mesmo correndo o risco de um excesso semântico, é importante atentar também ao arco narrativo que as canções descrevem – os problemas que montam, nos quais imergem e dos quais se libertam na travessia heroica e anti-heroica que o disco conta.
Alguns anos antes de Transa, Caetano havia gravado Lost in the paradise, uma canção de apresentação de alguém que, de uma posição menor, sul-americana e brasileira, com um pequeno erro de inglês no título que adensa e explicita a posição, pedia apenas que as pessoas do mundo maior, anglófono e rico, não o ajudassem – que apenas dissessem seus nomes e deixassem-no dizer quem era. Em alguma medida, esse tema, um tanto modificado, atravessava You don’t know me, a primeira canção de Transa. No começo, o acompanhamento e o canto são calmos e introspectivos. Na letra em inglês, ouve-se o desabafo do exilado que diz que os outros não o conhecem e aposta que jamais o conhecerão. De lado a lado, não há nada para se ver detrás do muro que os separa. Depois dessa parte inicial, repetida duas vezes, com pequenas inversões de significado promovidas por cortes e mudanças de palavras, quando o impeditivo “você não me conhece” desliza sorrateiramente para o imperativo “me conheça”, a bateria entra forte junto com o baixo, e o violão fica muito mais agressivo.
Com essa alteração instrumental, surge uma espécie estranha de declaração de si, uma apresentação autobiográfica de Caetano e do Brasil e o convite ao contato com aquelas mesmas pessoas que jamais o conheceriam – cartão de visitas e convite feitos através da colagem transfigurada de quatro canções de nosso país e gritados a plenos pulmões como algo que precisa de um alto volume para que seja mostrado do outro lado do muro subjetivo e físico do exílio. O início da apresentação é feito com a colagem de excertos de duas músicas da segunda geração da Bossa Nova: Maria Moita, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, e Reza, de Edu Lobo e Ruy Guerra.
As citações introduzem a miscigenação brasileira em seus aspectos mais distintos – e, no limite, contraditórios. De Maria Moita, extraem-se as desigualdades sociais, raciais e de gênero, marcas estruturais, ainda e sempre, da colonização da transa brasileira: “Nasci lá na Bahia/ De mucama com feitor/ O meu pai dormia em cama/ Minha mãe no pisador”. Na versão original, há um sincopado minimalista, que é substituído na versão de Caetano pela percussão forte que sublinha a tensão já inscrita na letra. O refrão de Reza, por sua vez, explicita a força inventiva do sincretismo e a dramaticidade da via sacra vivida por tantos no Brasil: “Laia, ladaia, sabatana, Ave Maria!” é um encantamento popular que as benzedeiras utilizam como uma reza muito forte, suposta transliteração enigmática, popular, iletrada e brasileira das palavras de Jesus Cristo em seu calvário (“Eloí, Eloí, lamá sabactâni” – ou “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”). Na gravação original, o tom é litúrgico e reverente, mas na versão de Caetano aproxima-se mais de um transe xamânico ou de terreiro. A filiação genealógica bruta, a cartografia afetiva intrincada que roça em Gilberto Freyre, o abandono divino, a fidelidade religiosa, eis o Brasil que, de lá, não se conhece.
Mas isso não é tudo. Logo entra Gal Costa cantando Saudosismo, canção pré-tropicalista de Caetano, um acerto de contas com a Bossa Nova todo feita em torno de João Gilberto: “Eu, você, nós dois, já temos um passado meu amor, um violão guardado, aquela flor, e outras mumunhas mais”. O amor de Caetano por João é o amor de João pelo Brasil, e o amor de João pelo Brasil é o amor de Caetano pelo Brasil – por um Brasil delicado e moderno, abrangente e revelador, talentoso e verdadeiro, de cuja linha evolutiva ambos eram protagonistas e ainda teria muito a oferecer ao mundo caso o mundo quisesse, e certamente quereria, conhece-la.
E se Asa branca havia tristemente dito ao que veio na vida seca do disco anterior, You don´t know me retorna a Luiz Gonzaga para, com as palavras dele em A hora do adeus, gravada no álbum Oia eu aqui de novo, expressar o carinho e a gratidão pelo Brasil: “Eu agradeço ao povo brasileiro/ Norte, Centro, Sul inteiro/ Onde reinou o baião”. Na versão original, o Rei do baião afirma sua realeza ao declarar que vai se aposentar – coisa que, sabe-se hoje, não ocorreu naquele momento, muito pelo contrário. Alocada na composição de Caetano, o sentido torna-se exatamente inverso, pois o eu lírico apresenta-se renovado e agradecido por esta renovação. A bossa e o rock, o violão, o pessimismo e saudade, a violenta diferença de classe, gênero e raça, a fé forte e transformada do sincretismo, um passado amoroso a recompor: esse é o cartão de visitas do Brasil que Caetano, ainda detrás do muro, apresentava a quem não o conhecia, talvez jamais o conhecesse, mas deveria conhece-lo.
Os tropicalistas nunca esconderam seu encantamento pela televisão. Nine out of ten, segunda canção do disco, tem seu título parafraseado do slogan dos comerciais dos sabonetes Lux estrelados por grandes atrizes de Hollywood – “nine out of ten screen stars use lux toilet soap”. Nela, é a primeira vez que compassos de reggae são tocados em uma música brasileira: uma vinheta na introdução e outra na coda. A admiração pelo ritmo caribenho descoberto por Caetano e Péricles Cavalcanti é o mote da canção transatlântica: uma canção de transa do Atlântico negro, uma canção da transa londrina entre a África, a Jamaica e a Bahia.
Após o fade out dos compassos de reggae, entram a voz e o violão de Caetano. Caminhar na rua Portobello ao som do reggae e assistir filmes no Electric Cinema eram distrações dos amigos brasileiros na Inglaterra: antídotos para o frio térmico e existencial do exílio. Nine out of ten parte disso – mas é muito mais que isso: talvez seja a canção de despedida do estado emocional que, na prisão e no exílio, havia secamente se instaurado. Algumas passagens curtas e precisas da letra dialogam diretamente com a impossibilidade de gozo e choro da cadeia e com a sensação de morte enunciada na carta ao Pasquim. O corpo, como a alegria, é a prova dos nove. Sentir a pancada do reggae no estômago era um signo de vitalidade. Nove entre dez estrelas de cinema o faziam chorar – e, em uma prova cartesiana anticartesiana, se chorava, logo existia.
Caetano sabia que um dia iria morrer, mas não agora – agora já não estava mais morto. Caetano estava “alive and”, na primeira inserção de palavras originalmente suas em português no disco, “vivo muito vivo, vivo, vivo”. Caetano vivia muito, e a vivacidade da vida novamente presente era também o transe que realizava com os amigos e instigava o grito de “bora, Macau!” convite para Jards Macalé na segunda e última inserção de termos seus em português no disco todo, provavelmente improvisados e empuxados pelo calor da gravação, que era também um convite feito por Caetano na tela da frente do espelho onde talvez vislumbrasse um rosto que não se achava mais a coisa mais feia do mundo e que, novamente alegre e disposto a experimentar o gosto do mundo, talvez se perguntasse mais uma vez: eu vou, por que não?
Se Nine out of ten é considerada por Caetano como sua melhor composição em inglês, a faixa seguinte, Triste Bahia, é, para ele, a melhor gravação do disco. Em um acerto de contas do tropicalismo com a Bahia, as colagens passeiam, dentre outras coisas, pela herança portuguesa, angolana e iorubá, fundamentos da formação da cultura do estado. A base estruturante da canção é o famoso soneto de Gregório de Matos, À cidade da Bahia, de cujo vocativo inicial retira o título. São várias as sintonias entre o poeta e o músico: o barroquismo, o gosto pelo paradoxo, o trânsito entre o popular e o erudito, a ligação antropofágica, o exílio. Não à toa, no final dos anos 1980, Caetano interpretou o próprio Gregório no filme de Julio Bressane Sermões – A história de Antonio Vieira. Todavia, a relação transversal mais forte entre ambos, marca intensa da canção, é a beleza e o brilho conceitual e artístico com que cantam a Bahia como chave possível de leitura monádica para o Brasil.
À cidade da Bahia é um poema inspirado em Fermoso Tejo Meu, do poeta português do século XVI Francisco Rodrigues Lobo. Ambos são sonetos, mas, na canção que completa a tríade, Caetano mantém apenas os quartetos e retira os tercetos, substituindo-os por uma profusão encadeada de trechos populares brasileiros. Como já se disse, toda colagem vale por aquilo que insere, mas também por aquilo que intencionalmente exclui. Implodir por dentro a forma poética privilegiada e nobre do soneto e apensar seus fragmentos restantes a estilhaços oriundos de nossa cultura de inflexão africana – talvez se possa dizer afro-ameríndia, amefricana – já bastaria como gesto contracolonial, mas Triste Bahia também é mais: é o Brasil sonhado, despedaçado e sonhado novamente. Medir e desmentir a distância entre a dessemelhança da Bahia e do eu lírico em relação aos seus antigos estados talvez seja a operatória maior da colagem nesta canção.
Essencialmente percussiva, a instrumentação da canção é feita pela voz e pelo o violão de Caetano, pelo contrabaixo de Moacyr Albuquerque e pelos atabaques, berimbau, agogô e pandeiro tocados pelos outros músicos. A canção se inicia com dois toques de berimbau e a voz de Caetano a cappella, emulando uma saudação aos tambores tal qual se faz na ladainha de uma roda de capoeira. O toque da corda única e da cabaça abre espaço para a entonação da sílaba prolongada de “Tris-”, seguida pela emissão mais breve da última sílaba de “Bahia”, imitando a prosódia dos mesmos cantos de capoeira.
Interpretado e transformado por Caetano, o tom crítico possivelmente conservador do poema de Gregório se torna crítico e progressista. Entre o Tejo, o Tâmisa e Todos os santos, é sintomático que a mesma larga barra que possibilita o comércio dos mais variados produtos tenha também servido para o comércio de pessoas sequestradas e traficadas. Quando o eu lírico canta, emulando a dicção de ascendência africana, que “a mim vem me trocando e tem trocado”, projeta a voz de um escravizado. Com a intervenção de Caetano Veloso, o poema é deslocado de seu sentido original para se tornar o canto de lamento e de resistência da população a quem a “máquina mercante” toca e troca diretamente – e esse tom se reforça pelas inserções que se seguem às menções ao poema recortado.
Em algumas versões, as estrofes dos cantos de capoeira recortadas por Caetano compõem uma só canção, intitulada Eu vivo enjoado, gravada em 1969 por Pastinha no disco Capoeira Angola. Em outras, a primeira estrofe faz parte de um canto independente, Pastinha já foi à África. O primeiro excerto se conecta à literal chegada do homem à lua: “Eu já vivo tão cansado / de viver aqui na terra / minha mãe eu vou pra lua / eu mais a minha mulher / vamos fazer um ranchinho / todo feito de sapé”. Como em boa parte da lateralização tropicalista, a ponta mais atual a tecnologia se acopla à tradição brasileira: a imagem, em tudo surreal, de um ranchinho de sapê na lua é quase didática. Com signos invertidos, lembra o Carnaval em Madureira de Tarsila do Amaral ainda da fase Pau Brasil.
Pastinha já foi à África, evidentemente, diz respeito à divulgação internacional da capoeira – um dos biscoitos finos que a ambição tropicalista sempre creu que o Brasil era capaz de gerar e exportar internacionalmente. Caetano escolhe variantes particulares desse diálogo, selecionando, na sequência, o canto do galo, o vamo-nos embora – que, tardiamente, reforça o “bora, Macau” de antes –, o pelo mundo afora, e, por fim, o fechamento do ciclo capoeira com o retorno ao início vocativo do poema de Gregório de Matos.
“Bandeira branca enfiada em pau forte/ trago no peito a estrela do norte” é um verso do Ponto do guerreiro branco, gravado por Maria Bethânia em 1969. A criminalização e a perseguição às religiões de matriz africanas fizeram com que o uso discreto de uma bandeira branca se tornasse uma forma de indicar a presença de uma casa de santo. O canto honra o Caboclo Boiadeiro, entidade que presentifica o espírito dos sertanejos no candomblé, e solicita a presença dos guias espirituais que trazem características indígenas, ligadas aos mistérios da jurema, destacados pelo ânimo e pela coragem. Com essa prece por firmeza de alma, chega-se à porção mais ritualística do disco, que insiste no universo afro-religioso na referência que faz aos afoxés no verso “afoxé leî, leî, leô”. Do bloco da capoeira ao bloco da religião, tudo é cultura negra, escrava e popular, vilipendiada e resistente na imagem de cultura nacional: Triste Brasil, Triste Bahia, Triste Recôncavo.
Dali, encadeiam-se menções de temas populares ligados à tradição infantil e ao samba de roda, como, por exemplo, nos versos “O vapor da cachoeira não navega mais no mar”, “Maria pé no mato é hora / arriba a saia e vamo-nos embora” e “Pé dentro, pé fora / quem tiver pé pequeno vai embora”. As cantigas são seguidas pelo verso “Ó Virgem Mãe puríssima…”, parte do Hino a Nossa Senhora da Purificação, padroeira de Santo Amaro, fragmento da Bahia e do Brasil católicos que logo será atravessado pelo retorno sincrético do Ponto do Guerreiro Branco, cujo canto acelerado e em volume mais alto conduz ao transe ou à gira que induzem a verdade tropical fragmentária, lateralizada e corajosa com que, apesar da tristeza quase estrutural, a canção de afirmação torta da vitalidade insistente da Bahia e do Brasil se encerra.
It’s a Long Way é a primeira canção do lado B do disco. A inspiração evidente é The long and winding road, lançada como single pelos Beatles em meio às notícias de que a banda tinha acabado, e, por isso, tomada como símbolo desse fim e, como disse Paul McCartney, das coisas que nunca se alcançam. A canção de Caetano, por sua vez, opera uma espécie de balanço do caminho na longa e tortuosa estrada da vida e do inferno: no início, com a letra em inglês, o despertar cantando uma antiga canção dos Beatles e a lembrança de que já não é mais tão forte; ao fim, a passagem da fraqueza à luminosidade. A transmutação se dá, mais uma vez, através da operação de colagem – e, especialmente, de trechos recortados do cancioneiro popular brasileiro. A primeira é o baião Sodade meu bem, sodade, de Zé do Norte – lateralizando enfaticamente o rock inglês à tradição nordestina, ao cangaço, a Lampião e ao cinema da Vera Cruz, como na visão fundande da Tropicália de Gilberto Gil no sertão de Pernambuco ao entender que a Banda de Pífanos de Caruaru era semelhante a Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. “Os olhos da cobra verde / Hoje foi que arreparei / Se arreparasse há mais tempo / Não amava quem amei” e “Arrenego de quem diz / que o nosso amor se acabou / ele agora está mais firme / do que quando começou” são versos que, sem esforços exagerados, se transmutam das agruras e resiliências do amor romântico para o amor nacional: Caetano e Brasil.
O excerto de Água com areia, canção de Jair Amorim e Jacobina gravada por Pery Ribeiro quase uma década antes, explicita a tensão ontológica, filosoficamente basal desde Parmênides e Heráclito, entre o que flui e o que fica: a água passa e a areia fica no lugar. Os versos de Consolação, afrosamba de Baden Powell e Vinícius de Moraes, têm seu significado transfigurado. Mais uma vez, as colagens valem pelo que incluem, mas também pelo que ocultam. Retirada o último verso da primeira estrofe e toda a última estrofe da canção, quando o eu lírico diz saber que, a despeito das agruras do amor, ninguém obteve mais do que ele obteve de sua amada, e mantidos apenas os versos iniciais, a colagem explora as dificuldades relacionais. Ou, para dizer o mínimo, conjectura a possibilidade menos dramática de um mundo sem amor – possivelmente o amor pelo país cujas cobras verde-oliva estavam no poder. Mas se assim fosse, o mundo sem amor, e especialmente sem esse amor, melhor era tudo se acabar.
Por fim, vem a citação de Lagoa do Abaeté, de Dorival Caymmi. A lagoa assustadora do norte de Salvador, temida por suas águas incrivelmente escuras, é arrodeada de uma areia branquíssima. A conversa interna complexa entre as colagens talvez permita dizer que, na longa e tortuosa estrada que Caetano viveu no exílio, a água opaca passa e a areia alva fica no lugar – e, apesar das tantas dores, dos Beatles a Caymmi, o que resta é a claridade e a esperança.
Mora na filosofia, o belíssimo samba de Monsueto Menezes e Arnaldo Passos, interroga o caráter intrínseco – ou, liricamente, a necessidade de rima – entre o amor e a dor. No contexto de Transa, talvez fosse a canção de recado mais direto e enfático, já que o eu romântico, desgostoso da conexão repetida, dá a decisão: se botou na balança e não pesou e botou na peneira e não passou, indica-se, quase inequivocamente, na cara, o fim da relação. Traduzida para a tensão amorosa entre Caetano e Brasil quase onipresente no disco, a mensagem de desistência seria facilmente depreendida – o que, depois das areias brancas do Abaeté, soaria estranho. O que desfaz a estranheza de significado, paradoxalmente, é a construção da estranheza musical. Sambista de fino tino melódico, Monsueto era especialmente hábil na composição de canções melancólicas em tom menor, característica que não foi abandonada na versão de Caetano. Todavia, se é uma canção de fim de relacionamento, Mora na filosofia é também uma canção de desprendimento – desprendimento da relação intrínseca entre amor e dor. O que traz complexidade, e quase justifica a presença da canção na longa estrada do álbum, o que não se faria tão somente por sua evidente beleza, é a performance vocal de Caetano – ou, mais precisamente, os variados matizes dramatúrgicos da interação entre o vocal e o instrumental.
Mais do que por aquilo que diz, a canção vale pelo modo como diz. Porque se a letra convida a perceber que não é preciso que se rime amor e dor, a dramaticidade da interpretação de Caetano parece contradizer isso. Mora na filosofia talvez seja a performance vocal teatralmente mais complexa do disco, com modulações ora debochadas, ora irônicas, ora líricas, ora agressivas, ora dramáticas, ora dolorosas – o que talvez faça crer que, por mais que se acredite em Monsueto, não é tão fácil abandonar a rima fácil e recorrente entre amor e dor. Surge, em suma, uma constatação de liberdade travestida de aceite de um relacionamento abusivo, porque quem expulsa Caetano é o próprio Brasil, o Brasil que ele tanto ama e que é seu inimigo – e que assim seja, porque há quereres que são mesmo assim.
Neolithic man começa com a marcação da percussão e o violão tocado por Caetano em fade in. O violão mantém a pulsação, sustentando o traçado sinuoso da voz na interpretação dos versos “I’m the silence that’s suddenly heard / after the passing of a car”. De algum modo, talvez se possa dizer a música que se estrutura como uma bossa nova joãogilbertiana às avessas. Não à toa, um de seus temas é o silêncio – e parece sugestivo lembrar que, anos depois, em um inventário torto e pessoalíssimo da música brasileira, contrapelo de Paratodos de Chico Buarque, Caetano cantará que melhor do que o silêncio, só João. Na primeira repetição do verso, os instrumentos se calam. Na segunda, só o contrabaixo pulsa – como pulso que pulsa incontornavelmente no corpo vivo, ou não morto, mesmo quando tudo lá fora é silêncio.
De certa maneira, a penúltima canção do álbum instaura um diálogo com a primeira – talvez encerrando, na infinita conversa interna da obra, o tema do isolamento do exilado. Se o efeito acústico é o mesmo, simbolicamente o silêncio ético e estético da música não pode ser entendido como um sinônimo do silenciamento político do exílio. Se em You don’t know me não havia nada para se ver detrás do muro, mas mesmo assim se convoca ao imperativo para que se veja algo detrás do muro, aqui, numa segunda citação aos Beatles, o que se diz é diferente: “If you look from your window at the morning star /You won’t see me”. Já não há mais muro ou parede entre os mundos, mas janela – e janela, sabe-se, pode estar aberta ou fechada. Também por isso, “you won’t see me” bascula aos poucos, como uma gelosia que discretamente se abre, para “You’ll only see” – deslizando de “você não me verá” para “você só verá, você verá só”.
E quando os olhos guiados por Deus, como os de João Gilberto antes da ligação que forçou a segunda e mais vivaz ida de Caetano ao Brasil, varrerem o horizonte, chegarão ao som de um sabiá-da-mata e seu canto onomatopeico que parece dizer: “Quem tem vovó, pelanca só”. Mais do que colagem, aqui o que há é, novamente, o óbvio oculto e a presença simultaneamente evidente e escondida da referência. Sabiá é um pássaro mencionado em outras obras que expressam a situação degredada e as saudades da terra de origem. Canção do exílio, o louvor à pátria de Gonçalves Dias, talvez seja o exemplo mais célebre, parafraseado no Hino nacional e com alguns dos versos mais famosos, repetidos e parodiados da poética brasileira. Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque, foi a vencedora do Festival Internacional da Canção de 1968. A repetição do fraseado da ave, acompanhada e alternada por “you won’t see me” e “you’ll only see” até que fique apenas a marcação rítmica da canção, que termina em fade out, só pode ser entendida como o prenúncio do retorno de Caetano para a terra cujas palmeiras sustentam o canto dos sabiás: você não quer me ver, você só vai me ver. Caetano vai voltar, Caetano sabe que vai voltar para o seu lugar.
Nostalgia (That’s what rock’n’roll is all about), a última e mais curta das canções do disco, parece auto-ironizar a posição existencial do compositor: a ingenuidade agridoce do eu lírico infinitivamente pessoal que flanava por Londres e acordava melancólico, que canta sobre acordar cedo, mas nunca acorda antes do meio-dia, que acredita ser apenas mais uma flor que desabrochou no meio de outras tantas, e que se sente orgulhoso ao ouvir alguém gritar que sua presença não é permitida e que deve cair fora. Afinal de contas, o rock’n’roll é sobre isso: um certo desajuste ajustado com o espírito do tempo cantado em doze compassos.
Em um dos primeiros textos de sua autoria a que temos acesso, um Caetano Veloso de 19 anos escreve para O archote, jornal de Santo Amaro, sobre o filme Juventude transviada. No elogio que faz à atuação de James Dean, diz que em sua expressão facial angustiada e cínica encontra-se a revoltada denúncia contra a sociedade burguesa decadente que causa, com sua falsidade moral e religiosa, o desespero ético e metafísico da nova geração. Por certo, esse descompasso geracional ainda acompanha Caetano, agora com um deboche doce e autoafirmado em relação àqueles que desandam o fio moral e caminham contra o vento, vão contra a via, cantam contra a melodia e nadam contra a maré. Da terceira margem do rio da política brasileira, destratado pela esquerda nacionalista e expulso pela direita fardada, e não sem certo orgulho juvenil, simultaneamente afirmativo e autoirônico, Caetano se colocava tranquilo em relação à posição, menos estrangeiro no lugar que no momento: uma posição com o tempo, no tempo, contra o tempo, por um tempo porvir.
Aquilo que amplamente podemos chamar de clima da canção – e, indo um pouco mais longe, especulativamente, de clima da gravação – muda um tanto nesta faixa. Tudo parece distensionado com o modo da banda tocar, de Caetano cantar, de Ângela Ro Ro soprar a gaita de boca, de Gal vocalizar. Já não há mais gira, nem gritos, nem tensão: o rockzinho-antigo-quase-blues, mais pra 50’s do que pra 60’s ou 70’s, afinal, canta a despreocupação da figura mítica – um dândi, um hippie, um Lampião, um Cara de Cavalo, um trans, um viado, um mulato, um mano, um Caetano. É, afinal, o phyllum daqueles que, mais do que não caber em doze compassos, sustentam o descompasso vital e deslizam para fora da mediocridade ditatorial da norma e do normal que abrangia todo campo político. A canção e o disco findam com um clima de festa, e a última coisa que se ouve são as vozes e os risos de Caetano e de Gal. Assim, sustentando com gargalhadas seu exílio essencial, produtivo, criativo, vivaz, que um Caetano antes impedido de chorar e gozar, melancólico, autodeclarado morto, já podia retornar à outra banda da terra chamada Brasil.
Caetano, Dedé Gadelha e os músicos de Transa voltaram ao Brasil em janeiro de 1972. Ainda no aeroporto do Galeão, Jards Macalé deu um tom térmico ao expressar para o repórter Geneton Moraes Neto a impressão da chegada: “Uma labareda que lambeu tudo”. Perguntado sobre seus desejos no retorno, Caetano apenas disse ter “vontade de cantar, cantar muito”. No dia seguinte, o show estreou em um Teatro João Caetano absolutamente lotado. De calça amarela, tamanco e jaqueta, Caetano cantou por mais de duas horas – e repetiu o espetáculo por algumas noites no Rio de Janeiro antes de tocar em São Paulo, no Recife e, claro, em Salvador. No Teatro Castro Alves, a plateia acompanhou a versão de Eu e a brisa, de Johnny Alf, de modo tão bonito, que Caetano até hoje, “lembra disso como sendo um dos momentos mais altos de minha vida na música”. Dizia a letra: “Fica, oh brisa, fica / pois, talvez quem sabe / O inesperado faça uma surpresa / E traga alguém que queira te escutar / E junto a mim, queira ficar / Bem junto a mim, queira ficar”. Caetano estava de volta, e já podia chorar um choro muito diferente daquele que não conseguia chorar dois anos antes. A prisão, o exílio e o inferno haviam acabado.
Caetano, que nunca quis morar fora do país, foi expulso de sua terra no ponto mais extremado do arco que desembocou em Transa. Na ocasião, o agente que o levou até a porta do avião, disse para ele não voltar – e, se voltasse, para poupá-los do trabalho de procura-lo. Em uma ida a Paris, no segundo ano do exílio, com o frio chegando aos 12 graus abaixo de zero, ele chorou na rua e cantou, aos gritos, Apesar de você, a célebre canção antiditatorial de Chico Buarque. Em Não vou deixar, presente em seu último disco, Caetano cita orgulhosamente um trecho desta música. Não vou deixar é uma das raras canções de protesto de sua trajetória, motivada pela eleição de Jair Bolsonaro à presidência da república em outubro de 2018. Ali, assistindo a contagem dos votos pela televisão com amigos, pessoas que ficaram angustiadas e assustadas com o rumo do pleito e consequentemente do país, Caetano disse: “Ele não vai fazer o que ele quer fazer com o Brasil porque eu não vou deixar”. De lá pra cá, foram quatro anos de destruição quase total do país: a arte, a educação, a saúde, a Amazônia, a vida afetiva, relacional, amorosa – tudo esteve em risco. Não que tudo esteja bem agora, como, afinal, não estava em 1972. Quando Caetano colocou os pés no país, o presidente ainda era Emílio Garrastazu Medici, depois viriam Ernesto Geisel e João Figueiredo, e apenas 13 anos depois findaria a ditadura. Apenas alguns meses depois do retorno de Caetano, Torquato Neto se suicidaria.
Hoje, temos um dos legislativos mais conservadores de nossa história e o entulho fascista ainda quer gritar. Tudo ainda parece muito difícil em nosso horizonte: passamos por uma eleição complicadíssima, vivemos uma belíssima posse e, aos poucos, o país parece recordar que é uma república e que ainda pode espalhar justiça e beleza no mundo. Sem exageros, também agora, retornando da estranhíssima experiência de um exílio do país dentro próprio país, estamos saindo do inferno. Já se disse ser óbvio que Caetano nasceu no Brasil, mas também é preciso entender que há um Brasil que nasce em Caetano. Quando Caetano volta ao Brasil, é também o Brasil que volta ao Brasil – e quando o Brasil volta ao Brasil, é também Caetano que volta ao Brasil. Tocar o Transa agora, e celebrar seus 50 anos fora de época, talvez seja a efetivação quase proustiana desta travessia. É, enfim, a lembrança do gosto de uma nação grande demais para que alguém engula. Transa é o testemunho de um Brasil muito maior do que queriam os milicos que exigiam uma canção sobre a Transamazônica: é um documento que nos lembra que, apesar de tudo e apesar de vocês, o Brasil ainda existe – que estamos alives e vivos, muito vivos. Quando Caetano abrir a voz, um cristal de tempo se formará – e, diante da espessura da história e da fina e tensa lâmina do presente, refazendo juntos a travessia, finalmente entenderemos porque celebrar agora os cinquenta anos do disco. Bora, Caê!
LEIA MAIS