Ainda que os movimentos contra diversas formas de preconceitos sociais estejam em constante eclosão, há uma onda conservadora que não faz sentido em tempos de tanto acesso à informação. Se em 2017 é necessária a luta por respeito à diversidade étnica, de opção sexual e de gênero, ser transexual e feliz é uma questão política.
As Bahias e A Cozinha Mineira surgiu em 2011, do encontro das cantoras trans Raquel Virgínia e Assucena Assucena com o guitarrista Rafael Acerbide, durante o curso de história da Faculdade da USP. Mulher, primeiro disco da banda lançado em 2015, é um belo tapa na cara da hipocrisia social, além de ser uma aula de arranjos, interpretações e diversidade rítmica.
Nosso primeiro encontro com o trio aconteceu um dia antes do show que faria em Porto Alegre, no calor do começo de fevereiro, em uma antiga fábrica abandonada da zona norte. Conversamos sobre a força de expressão que a banda tem e também pedimos que escolhessem duas músicas para a gravação de versões exclusivas para a NOIZE. Leia, assista, e se arrepie:
Vocês escolheram “Fumaça“, composta pela Assucena e “Mãe Menininha do Gatois“, da Raquel. Qual é o sentimento que vocês têm em relação a cada uma delas?
Assucena – O nosso disco traz, ao longo de sua narrativa, tanto a questão da figura da mulher como ser, quanto o papel dela como agente social histórico, mas também traz questões semiológicas. Signos que vão se delineando ao longo da narrativa. A “Comida Forte”, a “Melancolia”… E a “Fumaça” é uma delas. A fumaça é “ela” né? A fumaça. É uma expressão e ao mesmo tempo uma simbiose entre a matéria e a não matéria. Porque o átomo está lá. A composição atômica está lá. É uma metáfora da presença e da ausência ao mesmo tempo. Tem uma questão afetiva colocada. “Na fumaça da fumaça tem a massa, tem a massa”. Toda a fumaça tem uma matéria. E é uma questão de amor, uma questão de saudade, de falta. Falta e presença. E só quem ousava ocupar esse espaço era a fumaça enquanto fumava. E ele estava presente como a ausência, como esse oco.
Raquel – Essa música é uma homenagem à Bahia. Mãe Menininha é uma figura icônica da Bahia. Fala do carnaval também, da questão da liberdade. Há mais uma questão de liberdade envolvida do que tudo. De como é importante a liberdade e o território da Bahia. São duas coisas ligadas.
Mulher é um disco expressivo musicalmente também, não apenas no discurso poético. Ainda que exista um fio condutor entre as faixas do álbum, há também uma diversidade de estilos, performances e gêneros sonoros.
Rafael – Quando planejamos o disco, a gente não quis se prender em nenhum molde, rótulo ou gênero. Apesar de o álbum ter uma narrativa, cada música tem um universo musical em si. “Mãe Meninnha de Gantois” é um axé com uma mistura de samba-reggae, influência que a Raquel trouxe pra gente. “Fumaça”, por exemplo, já é uma bossa nova, um samba triste. A gente também tem baião e xote no disco, são múltiplas sonoridades. As letras das meninas têm todo um universo musical de paisagens. Então quando a Raquel compõe “Mãe Menininha do Gantois” existe uma paisagem colocada ali, que é a Bahia, que é o Pelourinho. Quando fomos buscar musicalmente a inspiração para fazer isso, não só nos debruçamos em vários discos da música popular brasileira, mas também nas letras, nas paisagens, por que as letras já traziam em sí todo um universo para ser trabalhado musicalmente.
Assucena – A questão da performance também, do nosso canto, foi uma coisa que a gente foi entendendo. Nosso disco tem uma relação entre um timbre médio e o canto mais gritado, acho que veio naturalmente, como uma necessidade estética mesmo, de se posicionar desse jeito. E é assim que tá lá. A gente é performática por natureza. Desde os nossos primeiros shows sempre foi assim. A interação da performance sempre se deu por aí.
Já no âmbinto das palavras, Mulher tem sido chamado de “transrevolucionário”. A coragem de vocês pra “botar a cara no sol” e lutar contra a marginalização transexual através da arte é impressionante. Vocês acreditam em uma transformação na sociedade?
Assucena – O poder da arte é algo que a gente não pode dimensionar a priori. É um poder que pode ser muito mais nocivo do que bombas atômicas no sentido de eclosão e de seu poder revolucionário. Um historiador, Eric Hobsbawm, fala sobre isso, mas em relação aos professores de história. Eu faço esta mesma analogia com a arte. Dessa dimensão potencial que a arte tem, mas que a gente não sabe dimensionar. Depois que sai de nós, não é mais nossa. Mas eu acredito sim, porque a gente está fazendo parte de uma cena musical, embora a nossa intersecção seja comportamental. Tem uma galera enfrentado os dilemas de gênero, de sexualidade, de liberdade de corpo, de liberdade de existir e de ser. E é nisso que a gente acredita, na liberdade como princípio. Por isso que eu acredito na nossa música, porque ela já tem trazido um retorno social de potencial revolucionário mesmo. De um entendimento da força que a gente tem de fazer de nós, donos do nosso próprio destino e do nosso próprio corpo.
Em 2015 no Brasil, tivemos o começo de uma maior exposição de artistas que abordam essa temática, como Liniker, Jaloo e Mc Linn da Quebrada. A liberdade de gênero é um assunto recorrente na indústria da comunicação. Como vocês percebem isso?
Assucena – Eu não acho que é moda. Foi uma demanda conquistada. O movimento feminista e o movimento negro trouxeram muito a questão de liberdade de corpo que é fundamental. E aí o movimento LGBT também. Então você tem artistas como a Mc Linn que trabalha com o conhecido “funk proibidão” porque tem palavras que não podem ser veiculadas nos espaços de concessão pública por todas as caretices que existem. Mas este espaço está sendo conquistado e a Linn tem saído em matérias incríveis com um discurso incrível. Jaloo, com sua androgenia, sua imagem e a sua capacidade de criar beats e composições a partir de sintetizadores, trazendo o Belém do Pará. Liniker que é um artista de um canto maravilhoso, muito refinado e potente, com suas canções de amor.
Eu acredito plenamente que as canções de amor para uma mulher trans, pra uma travesti, são extremamente políticas. Porque pouco se fala da solidão da mulher trans, do homem trans. Então é extremamente político falar das nossas questões de amor. Porque a gente ama, porque a gente é igual a todo mundo. Existe um senso comum de hipersexualização da nossa subjetividade e do nosso corpo. É como se a gente não pudesse. É como se a mulher trans fosse o oposto direto a familia tradicional burguesa patriarcal. Porque é um ser que não procria, aparentemente. Tem vários homens trans que estão grávidos e é incrível essa relação. Mas na maioria dos casos não procria. Como se fosse sinônimo de família a procriação em si. Como se não pudessem existir outros modelos de família. E a mulher trans é relegada muitas vezes a solidão e a marginalidade, a ser sozinha. Então falar de amor nesse caso é muito político, como a Liniker fala. E As Bahias e a Cozinha Mineira faz parte desse momento. E é interessante que quando a gente lança o disco Mulher em 2015, Elza Soares lança A Mulher do Fim do Mundo, Ava Rocha lança Ava Patrya Yndia Yracema, Liniker eclode em outubro, o que foi uma surpresa muito boa, que a gente estava carecendo. Karina Buhr lança Selvática. E a Elza é a maior delas, ela é a mulher do fim do mundo.
E o que é ser mulher pra você?
Assucena – Ser mulher… Primeiro é uma palavra que me toca profundamente, me transpassa. Ser mulher é viver o mundo com outros óculos, mais sensíveis. E quando eu digo sensível eu não quero dizer mais fraco, é mais apurado mesmo. Eu acho que até quando um homem se propõe a expressar sua feminilidade o olhar dele começa a ficar mais sensível. E eu acho que a mulher é responsável por trazer essa construção social da sensibilidade com o outro e com a vida. Então ser mulher é a água, ser mulher é a própria vida. É a vida. É a existência. É a beleza. É a sabedoria. São todos esses “as” que se manifestam em nós e por nós. Por nosso entendimento.
O próximo disco está previsto para agosto de 2017 e vai se chamar Bixa, em homenagem ao álbum Bicho (1977), de Caetano Veloso.