Como Moraes Moreira foi decisivo para a expansão do carnaval atual

26/02/2025

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Por: Nicolle Cabral

Fotos: Divulgação

26/02/2025

A catarse poética de Moraes Moreira se manifestou em um poeta Moraes mais velho. Quando nos Novos Baianos, fundado em 1968, o músico ocupava um posto importante: criar melodias para as composições feitas pelo companheiro Luís Galvão

Apesar relação de simbiose do grupo durante a morada em um apartamento na Rua Conde Irajá em Botafogo (RJ), e no mítico sítio, na Estrada dos Bandeirantes em Jacarepaguá (RJ), quando o assunto era fazer música, cada integrante tinha uma função bem definida. 

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Enquanto Baby do Brasil (à época, Consuelo) dividia o vocal poderoso e de energia jovial com Paulinho Boca de Cantor, Moreira, ao lado de Dadi Carvalho e Pepeu Gomes, se dedicava à alquimia rítmica que só o Novos Baianos tem. Ele se encontrou no samba de Noel Rosa, no baião de Luiz Gonzaga, na bossa nova de João Gilberto (“o produtor espiritual” do grupo), nas influentes guitarras elétricas de Jimi Hendrix e sintetizou em música a energia da década de 1970. 

O curto, mas efetivo, acervo de obras do Novos Baianos marcou de maneira indelével a Música Popular Brasileira e respinga na indústria fonográfica mais de cinco décadas depois. Entre os feitos estão É Ferro na Boneca (1970), Acabou Chorare (1972), Novos Baianos F.C (1973), Vamos pro Mundo (1974), Caia na estrada e perigas ver (1976) e Praga de Baiano (1977) — os dois últimos sem a sonoridade regida por Moreira. Os sucessos “Mistério do Planeta”, “A Menina Dança”, “Preta Pretinha” e “Brasil Pandeiro” são as provas de resistência contra o tempo. 

Ao longo de cinco anos, o músico jogou no time dos Baianos, quando em 1974, decidiu sair de campo. Davi Moraes, segundo filho do cantor, herdou o contexto: nasceu um ano antes do pai se despedir do encontro mágico com os Novos Baianos e acompanhou de perto Moreira se tornar um cronista da história de amor do povo com o carnaval.

“Foi um divisor de águas. Depois do Novos Baianos, aconteceu um encontro da mesma importância para a música brasileira e para a carreira do meu pai: o encontro com a família de Dodô e Osmar”, pontua Davi, em entrevista à Noize

Seja ao lado do Novos Baianos, de Dodô e Osmar ou em carreira solo, o artista se consagrou como uma das vozes mais importantes da cultura nacional. A sensibilidade sonora de Moreira ao unir ritmos distintos foi uma das grandes atribuições do cantor e representa parte desse legado. No dia 13 de abril de 2020, essa figura célebre saiu de cena. Moreira morreu aos 72 anos no Rio de Janeiro, vítima de infarto. Sendo assim, para homenagear esse som pulsante e itinerante, resgatamos os encontros e as conexões que o acompanharam nas avenidas — principal palco de Moreira — durante essa trajetória luminosa na música brasileira. 

Ex-novo baiano  

Com a saída dos Novos Baianos, Moreira, enfim, pôde pensar em compor. Armando da Costa Macedo, filho de Osmar Macedo, foi o primeiro elo para essa transição acontecer. A dupla de amigos já se conhecia desde a época em que Moreira vivia no sítio de Jacarepaguá, mas, só em 1974, o baiano o convidou para que eles tocassem juntos. Em entrevista à Noize, Armandinho relembra quando recebeu o recado de Moreira: estava com uma viagem marcada para São Paulo, mas, empolgado com o convite, refez os planos e foi até o Rio de Janeiro para encontrá-lo. 

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“No primeiro dia que nos encontramos, tocamos a noite inteira. No segundo também. Quando chegou o terceiro, Moraes me pediu para dormir na casa dele e, a partir de então, passamos a praticamente morar juntos: ‘eu, ele, o Davi [filho], a Ciça [filha] e Marília [esposa na época]’. Me integrei na família”, conta. 

O casamento do violão de Moreira com o bandolim de Armandinho deu tão certo quanto com a guitarra de Pepeu nos Novos Baianos. “Eles ficavam tocando até tarde”, relembra Davi, que acompanhou de perto a relação dos dois músicos. “Quando eu era bem pequeno e eles viravam a noite tocando, eu ia acordar o Armandinho 6 horas da manhã com o bandolim na mão”. 

Ainda em 1974, entre as viagens de Armandinho do Rio de Janeiro para a Bahia e vice-versa, Osmar fez a letra e a melodia de “Jubileu de Prata” e deu para o filho. Naquela época, Osmar já carregava o legado de ser metade da dupla engenhosa Dodô (Adolfo Antônio do Nascimento) e Osmar. Juntos, haviam despontado no carnaval baiano com a criação da “Fobica” em 1950: um Ford de 1929, equipado com caixas de som e enfeitado com serpentinas coloridas, considerado a primeira versão do trio elétrico. Além disso, inventaram o “pau elétrico” — que viria ser conhecido como guitarra baiana

O Trio Elétrico, criado por Dodô e Osmar, tocava frevos estridentes pelas ruas da Bahia e “Jubileu de Prata” era uma promessa para o carnaval. Ao receber a música, o guitarrista quis Gal Costa como intérprete da canção. A cantora, contudo, optou por não gravar e, com isso, Moreira sugeriu emprestar a sua voz para a faixa. 

Essa formação indireta de um grupo que unia Moreira ao Trio Elétrico de Dodô e Osmar e Armandinho motivou a ida até a sede da Continental, em São Paulo, para tentar um lançamento oficial. Àquela altura, a história da “fobica” já havia chegado nos quatro cantos do Brasil e, com isso em mente, a gravadora quis investir em um LP. 

Jubileu da Prata (1975), que, segundo Armandinho, “não tinha a menor intenção de virar um disco”, acabou se tornando um sucesso nos carnavais baianos e marcou a primeira colaboração de Armandinho, O Trio Elétrico Dodô & Osmar e Moraes Moreira. O trabalho da família baiana, que anteriormente era apenas instrumental, ganhou a voz afinada de Moreira na faixa homônima, em “A Dança da Multidão” e em “Vou Tirar de Letra”, composições autorais do ex-novo baiano, logo após a saída do grupo. Moraes também assina a direção artística do álbum.

Um cronista do carnaval 

No carnaval de 1975, Moreira subiu, pela primeira vez, no Trio Elétrico de Dodô e Osmar e reinventou o carnaval baiano. Com um microfone que a dupla usava apenas para cumprimentar o público, Moreira se torna o primeiro cantor de trio elétrico entoando os versos que abrem o disco Jubileu de Prata: “Há 25 anos / em Salvador surgiu / o frevo numa fobica / e o famoso trio”. Por causa do lançamento do disco, a música homônima já havia estourado na Bahia e estava na boca do povo. “Quando Moreira cantava, mesmo sem uma potência sonora do trio, o povo ajudava”, relembra Armandinho. Naquele momento, o amor de Moreira pela poesia, o frevo e o carnaval havia sido ressignificado.

Acompanhado pelo som da guitarra baiana, o músico potencializou a força do carnaval e é impossível pensar na folia de Barra Ondina ou de Campo Grande sem a voz doce de Moreira e um coro de milhões de foliões cantando as canções atrás do trio. Davi conta que vivenciou o começo dessa relação do pai com os trios elétricos e uma das memórias engraçadas da infância era de ter que esperar o dia inteiro na varanda do prédio de algum amigo da família para ver o trio passar. “Me lembro até hoje da primeira vez que o vi na minha frente: eu estava em um prédio, no centro da cidade, e vi o meu pai e o Armandinho tocando com a banda toda. Eu nunca vou me esquecer da emoção inexplicável que foi ver um palco andante e aquele tanto de gente indo atrás”. 

Depois da estreia no trio, Moreira seguiu agitando os carnavais ao lado de Armandinho, Dodô e Osmar. “No Trio Elétrico, éramos quatro irmãos [Armandinho, Betinho, Aroldo e André], a gente conta o Moraes como o quinto. Ele foi um irmão mais velho que encontrei na vida. Sinto uma felicidade enorme de ter começado essa parceria”, enfatiza Armandinho. 

Os primeiros sucessos nacionais 

Com o tempo, os grandes arranjos de Osmar e também de Armandinho ganharam uma narrativa sensível pelo olhar de Moreira. “Depois que entrei nesse mundo, não teve volta. A coisa do letrista, fui conquistando com o tempo”, explica Moreira sobre suas primeiras composições solo em entrevista a Luiz Felipe Carneiro para o canal do YouTube Alta Fidelidade em 2019. Diretamente influenciado pelos frevos de Pernambuco e por aquela riqueza sonora, Moreira começou a escrever e não parou mais. 

Paralelamente ao Trio Elétrico Dodô e Osmar, Moreira montou a banda de apoio “A Cor do Som”, formada por Armandinho, Dadi Carvalho, Gustavo Schroeter e Mu Carvalho para trabalhar em discos solo. Amparado pela Som Livre, Moreira lançou também em 1975 seu primeiro disco homônimo, com 12 faixas autorais. 

Em Moraes Moreira, Luiz Galvão retoma a parceria com o velho amigo e aparece em “Anda nega” e” Chinelo do meu avô”, porém, a surpresa do disco é a colaboração com Luiz Gonzaga, o Rei do Baião e grande inspiração de Moreira. O registro também conta com o sucesso “Guitarra Baiana”, que chegou a ser incluída na trilha sonora da novela Gabriela, da TV Globo em 1975 — em uma gravação diferente a do disco. Moreira, ao longo da carreira, esteve na trilha de mais de 18 novelas. 

Em 1977, quando estava com o segundo disco de estúdio na mão, Cara e Coração, o produtor Guto Graça Mello alertou o baiano de que o álbum não tinha nenhum “hit”. Assim, Moreira buscou a faixa instrumental “Double Morse”, um frevo de Dodô e Osmar feito em 1950, e a transformou no grande sucesso “Pombo Correio”. A faixa romântica e carnavalesca ganhou reconhecimento nacional e se tornou um dos clássicos da carreira do músico.  

Seguido de “Pombo Correio”, a voz e violão de Moreira conduziu outras canções icônicas como “Bloco do Prazer” (1979), parceria com Fausto Nilo, outro frevo que virou hino no Carnaval e que foi gravado por Gal Costa. “Lá vem o Brasil descendo a ladeira” (1979), “Carnaval em Casa Esquina (1979), “Chama Gente” (1985), que deu o nome do seu trio elétrico, e “Vassourinha Elétrica” (1995). Com a última, Moreira conquistou ainda mais o coração dos pernambucanos ao fazer alusão ao bloco de frevo Vassourinhas – que inspirou Dodô e Osmar na criação do Trio Elétrico.

Cidadão do Frevo

Em fevereiro de 1998, Moreira foi homenageado por Recife com o título de “cidadão do frevo”. Concedida na Câmara dos Vereadores, logo após a apresentação do grupo de maracatu Nação Erê e do frevo do Bloco das Ilusões, a honraria foi entregue na época pelo vereador João Negromonte (PMDB).

Com a difusão do frevo pelo Brasil pela voz de Moreira, o músico foi reconhecido por grandes maestros do gênero como o Maestro Spok e Maestro Duda. “Moraes tem diploma de frevista em qualquer lugar do mundo”, relembra Davi dos frequentes comentários que ouvia sobre o pai. 

Longe de qualquer rivalidade, Moreira passou por um teste de resistência ao ter as músicas tocadas em todo o Brasil e, principalmente, nos dois carnavais mais famosos: o da Bahia e o de Olinda. A própria letra de “Vassourinha Elétrica”, grande sucesso do músico, narra essa trajetória:  “O frevo que é pernambucano / Sofreu para chegar na Bahia / Um toque, um sotaque baiano / Pintou uma nova energia”. 

Durante a entrevista à Noize, ao citar os dois disputados carnavais, Davi Moraes lembra de uma situação que Moreno Veloso passou: “Moreno foi tocar em Recife no Galo da Madrugada com a Orquestra Imperial, mas disseram que lá não pode tocar música da Bahia porque o público fica irritado. Ele foi todo tenso e, quando chegou lá, disse que em todo lugar tinha banda tocando música do meu pai: ‘Que rixa é essa que tanto falam, que aqui não toca música da Bahia, e está tocando Moraes Moreira?’”, conclui a história rindo no telefone. 

Assim como o samba, em cada lugar, um gênero musical pode ganhar uma releitura. O frevo passou pelo mesmo pela voz de Moraes em parceria com a sonoridade da guitarrinha: ganhou um sotaque baiano. “Tenho muito orgulho de ele ser tão querido em Pernambuco sendo baiano”, comemora o filho. 

Os ritmos do baiano

A cada novo ano e carnaval, Moreira lançava mais um álbum. Os ritmos que instigavam o cantor na criação das harmonias do Novos Baianos seguiram ainda mais evidentes, mas com um adicional proporcionado pela energia das ruas e da poesia de cordel. 

O disco Lá vem o Brasil descendo a ladeira (1979), por exemplo, é uma obra-prima presente na discografia solo do artista e esclarece esse som elétrico e carnavalesco com as faixas “Chão da praça”, composição de Moraes com Fausto Nilo, e “Som moleque”. A música homônima, e que abre o disco, foi inspirada na frase de João Gilberto — “lá vem o Brasil descendo a ladeira” — quando os dois avistaram uma mulher belíssima descendo uma rua em uma caminhada pela manhã. 

Nesse disco, Moreira também apresenta a primeira fusão entre o frevo e o batuque do bloco afro: o afoxé, ritmo que o influenciou ao longo da carreira, e apontou os caminhos da música afro-pop-baiana, conhecida a partir dos anos 1980 como axe music. Nomes como Chiclete com Banana, Araketu, Banda Eva, TimbaladaAsa de Águia surgiram depois consolidando uma nova estética que dominaria o Carnaval por um bom tempo. 

Rica, porém subestimada, grande parte da discografia da década de 1980 não possui fácil acesso na era do streaming. Os discos Bazar Brasileiro (1980), Moraes Moreira (1981), Coisa Acesa (1982), Pintando o Oito (1983), Mancha de dendê não sai (1984), Tocando a vida (1985), Mestiço é isso (1987), República da Música (1988) e Bahiano fala cantando (1988) formam grande parte do repertório autoral e expressivo do cantor na composição de marchas, choros, frevos, sambas e lambadas. 

Com mais de 40 discos lançados — incluindo os discos em grupo, participações e gravações ao vivo —, Moreira também resgatou a sua inquietação pelos alto-falantes, festa-juninas e o som das sanfonas da época em que morava em Itauçu, município do sudoeste baiano. 

As memórias do sertão são vistas ao longo de toda a obra de Moreira, principalmente em “Alto Falante” (1978), parceria com o poeta e letrista cearense Fausto Nilo, e “Ser Tão” (2018), em que o músico faz um resgate muito profundo sobre as sensações da terra em que viveu, a memória de Luiz Gonzaga em “O Nordestino do Século” e a literatura de cordel. Sonoramente, no registro, Moreira passeia pelo samba de roda, blues e o jazz. 

Em 2012, o músico fez um hiato pela primeira vez na carreira. Depois de sete anos sem nenhuma música inédita,  A Revolta dos Ritmos chega como o primeiro registro da nova safra energética de Moreira. O disco, inicialmente, seria só de samba. Porém, Moreira diz ter sonhado “que os ritmos chegaram reclamando”, por isso, fez um álbum em que mistura vários gêneros como o baião, o xote, o bolero e o samba. 

“Como você vai abandonar a gente agora se você sempre foi um cara que fez tudo?”, relembra do sonho rindo na já citada entrevista com Luiz Felipe Carneiro para o Alta Fidelidade. Lançado pela Biscoito Fino, o registro é uma grande homenagem aos representantes dos ritmos brasileiros. 

Embora o tempo não tenha mantido todo viço vocal de Moreira, o artista permaneceu elétrico e grandiosamente inspirado em suas criações. Quando esteve longe dos estúdios, dedicou-se à literatura e publicou duas obras: A História dos Novos Baianos e Outros Versos (2007) e Sonhos Elétricos (2010). Além disso, entrou para a Academia Brasileira de Cordel, na cadeira 38. “Mergulhei fundo nessa história de formas de cantorias”, registra Moreira. Antes da morte, o músico planejava uma nova reunião com os Novos Baianos e deixou 25 poemas inéditos que terão trilhas adicionadas por Davi. 

O principal sentimento que floresce do filho em relação ao pai é o de gratidão. Para o músico, que cresceu sob a influência de todos os parceiros de Moraes Moreira e viveu esses grandes encontros, foi a realização de um sonho ter conseguido retribuir tudo o que recebeu “de uma árvore genealógica tão rica que ele formava”. Segundo Davi, os dois compartilharam “uma vida inteira de muita parceria”. Moreira parte em uma época turva, mas com a certeza de que as suas paixões foram regidas por diversos sotaques, classes sociais e ritmos. 

Esta matéria foi publicada originalmente na Revista Noize que acompanha o vinil de “Orquestra Frevo do Mundo Vol. 1”, lançado em 2020.

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