Como o samba e o carnaval influenciaram a obra de Hélio Oiticica

25/02/2025

Powered by WP Bannerize

Avatar photo

Por: Leo Felipe

Fotos: Cláudio Oiticica/Projeto Hélio Oiticica

25/02/2025

Os passistas da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira – mestre Miro, Nildo, Jerônimo, Tineca, Mosquito (o mascote do Parangolé), Robertinho, Nininha Xoxoba, o pessoal da ala “Vê Se Entende” (da qual fazia parte o artista Hélio Oiticica) – desceram o morro naquele agosto de 1965 para participar de uma exposição no Museu de Arte Moderna do Rio, localizado no Aterro do Flamengo. A convite de Oiticica, a turma da Mangueira carregava no próprio corpo as recentes obras do artista, feitas em colaboração com a comunidade: uma série de estandartes, bandeiras e capas de diferentes formas, cores e texturas, feitos com materiais diversos e trazendo, às vezes, dizeres políticos ou poéticos, como INCORPORO A REVOLTA ou DA ADVERSIDADE VIVEMOS.

Um mergulho no caderno de desenhos de Torquato Neto

*

Oiticica era um dos artistas participantes da exposição Opinião 65. A mostra reunia artistas brasileiros e europeus, pretendendo ser um apanhado de novas tendências na pintura moderna. O episódio, tal qual registrado nos anais da História da Arte, apenas confirma o racismo, os preconceitos de classe e a ética segregacionista que estruturam a sociedade e a cultura brasileiras: a turma da Mangueira foi barrada no museu.

Hélio Oiticica (1937-1980) era filho da elite carioca, com pai fotógrafo e avô anarquista. Lia Nietzsche desde os 13 anos de idade. Nos anos 1950, as experiências com Neoconcretismo (sobretudo no diálogo com Lygia Clark) conduzem o artista para a superação dos meios tradicionais como pintura e escultura. O movimento concreto chegara importado da Europa, herdeiro do construtivismo e em consonância com a modernização técnico-científica do pós-Guerra. Alinhado às práticas da vanguarda, iria produzir rupturas, como o Neoconcrestimo, que se contrapunha à ortodoxia geométrica, sugerindo uma arte anterior à existência do objeto: expressiva, sensível e, sobretudo, participativa.

O artista passa a compreender a produção artística como “o exercício experimental da liberdade” (na bela definição do crítico Mário Pedrosa). Era o início do que chamamos hoje de arte contemporânea, uma arte totalmente desvinculada de qualquer corrente histórica ou formato tradicional, em que a única regra existente parece ser a liberdade total do artista. Assim, as formas e cores criadas por HO vão aos poucos saindo da tela e ganhando o espaço, pedindo o toque, como na série Bólides, composta por objetos de vidro, plástico ou cimento, que contém materiais como pigmento e terra dispostos para a manipulação do espectador tornado agente.  

Na busca fenomenológica pela livre expressão, HO percebe que é necessário um mergulho corpóreo para romper com a separação cartesiana corpo/mente. A procura da experiência definitiva o leva morro acima, à comunidade da Mangueira. Ele escreve em “A dança na minha experiência”, texto de 1965:

“Meu interesse pela dança, pelo ritmo, no meu caso particular pelo samba, me veio de uma necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, da necessidade de uma livre expressão”. E logo depois: “A derrubada dos preconceitos sociais, das barreiras de grupos, classes etc., seria inevitável e essencial na realização dessa experiência vital”.

Assim, Hélio passa a conviver com os moradores da favela e se torna passista da escola de samba.

Os Parangolés são o emblema da transformação da arte de HO, quando a forma pura suprematista é incorporada, maculada, coletivizada, contaminando-se da vida. Fruto da constatação da contingência, o Parangolé celebra o precário, sendo a própria anti-arte. A vivência no morro também vai ajudar o artista a conceber o mito da marginalidade que irá alimentar toda a contracultura brasileira na década seguinte.

Segundo Wally Salomão, “qual é o Parangolé?” era uma expressão muito usada quando o poeta chegou da Bahia para o Rio, significando, dentre outros sentidos mais secretos: “o que é que está rolando?”, “qual é a parada?” ou “como vão as coisas?”. Na gíria carioca dos 1960 designava “o mesmo que o étimo oriundo da língua quimbundo dos bantos angolanos: maconha” – nas palavras do poeta. As deambulações vagabundas de Hélio sempre estiveram acompanhadas de muito fumo (e mais tarde de muita cocaína). A dinâmica do Morro, o labirinto de quebradas, a imersão no ritmo e a coletividade da dança ajudam HO a criar uma obra que rompe com a passividade do espectador, um rompimento que irá se expandir até a instituição Museu, um alvo que o trabalho do artista sempre atinge.

O Sonho da Vírgula | Waly Salomão: poesia sem fronteiras

No entanto, ao retirar a palavra da gíria maconheira carioca para dar título à sua obra, Oiticica fez com que a expressão acabasse sumindo da gíria do morro para fixar residência no… museu. O tiro saiu pela culatra? A questão da apropriação que atravessa o seu trabalho precisa ser reavaliada hoje à luz das teorias decoloniais. Afinal, Oititica foi homem branco, membro da elite, que subiu o morro em busca de uma experiência transformadora que desse subsídios a sua arte – arte que circula em museus onde os corpos negros são impedidos de entrar.

As ideias de HO fizeram eco com uma produção artística muito mais ampla, integrando a formulação no Brasil de um movimento de vanguarda com ramificações na cultura pop. A pioneira instalação Tropicália, de 1967, exemplo de sua “arte ambiental”, emprestaria seu título à uma canção de Caetano Veloso e ao movimento musical criado por ele e Gilberto Gil. Caetano também vestiria um Parangolé na foto para a reportagem

“Marginália: Arte e Cultura na Idade da Pedrada”, veiculada na Revista Cruzeiro, em 1968. O estandarte SEJA MARGINAL, SEJA HERÓI apareceria no cenário do show da dupla tropicalista (acompanhada de Os Mutantes) na Boate Sucata, no Rio. A peça foi o estopim para que os militares censurassem o espetáculo, provocando a prisão e o subsequente exílio dos músicos baianos. A obra de Oiticica também pode ser lida como um comentário sobre a escalada da violência policial no país, sinalizando a urgência da elaboração de uma crítica radical e ativa ao sistema. Esta crítica só poderia ser realizada na decisão de viver à margem através da transgressão total. Alinhada à ética do drop out (o cair fora da contracultura estadunidense), a cultura marginal, no entanto, tem suas origens no estilo de vida da bandidagem carioca. É uma cultura anti-miliciana.

Um pouco antes da promulgação do AI-5, HO parte para Londres para sua primeira exposição internacional. Na Swinging London toma contato com o rock e este gênero musical irá influenciar sua obra tanto quanto o samba. Assim, não parece estranho que a bandeira da Mangueira compartilhe com a capa do álbum Axis Bold As Love, de Jimi Hendrix, a mesma composição radial em cores vibrantes. O rock oferece a Oiticica uma mitologia do corpo e da dança e um tipo de sacrifício ritualístico de vivência no limite que seriam a chave de acesso para o que chama de “suprassensorial”. Em Londres, que por alguns anos se torna um ninho tropicalista, com a presença da dupla baiana e a circulação de outros artistas brasileiros, exilados ou não, Oiticica formula o conceito de “subterrânia”, dando nome para a movimentação cultural underground que emerge no fim da década.

Em 1970, viaja à Nova York para participar da exposição coletiva Information, no MoMA, e, após conquistar uma bolsa da Fundação Guggenheim, passa a viver na cidade até a volta ao Brasil, em 1979, pouco antes de sua morte. No autoexílio, Hélio prossegue na incessante busca por experimentar o experimental e pelo subterrâneo e a transgressão, sempre transitando no lado selvagem da mítica cidade.

Mais de meio século depois de Opinião 65, os museus seguem espaço majoritariamente brancos, mas os Parangolés estão de volta ao MAM-Rio. A exposição A dança na minha experiência apresenta um panorama da obra de Oiticica em relação com a dança e a cultura popular brasileira. Dessa vez não há passistas da Mangueira vestindo os Parangolés, e para enfrentar a contradição entre a necessidade museológica de conservação e a necessidade da participação (para que a obra exista, tal qual concebida por seu criador) foram feitas réplicas dos Parangolés.

Os protocolos sanitários da realidade pandêmica, contudo, impediram mais uma vez que estas peculiares obras fossem postas em movimento pelo público. Pateticamente, as réplicas inertes reiteram a indisposição dos Parangolés para com este problemático lugar chamado Museu.

Esta materia foi publicada originalmente na edição da Revista Noize #107, que acompanha o vinil Pérola Negra (1973), de Luiz Melodia, lançado em 2020.

Tags:, ,

25/02/2025

Avatar photo

Leo Felipe