“O amor é o fundamento de toda mudança social significativa”, disse a escritora bell hooks (1952-2021) que publicou mais de 30 livros. O pensamento que Bia Ferreira acredita segue pela linha da frase de hooks, ideia essa que só foi exibida ao público em novembro passado, com a divulgação do disco duplo Faminta (2022), que contêm 21 faixas. “Eu fiquei com muito medo de mostrar esse lado amoroso no disco, porque eu acho que todo mundo está habituado a me ver num lugar combatente e até agressivo, e aí eu estou falando enquanto uma mulher preta, enquanto uma sapatão. Então, escrever sobre o amor me ajudou a me humanizar e me libertar”, afirma a mineira que traz no lado A, canções amorosas sobre suas relação homoafetivas.
O disco foi selecionado pelo programa Natura Musical, através do edital de 2021. Em oito faixas autorais, Ferreira transporta uma nova sonoridade para a sua trajetória musical no primeiro lado do disco, onde passeia por gêneros como R&B, pagodão baiano, afrobeat, blues e samba, em composições que se encaminham para as love songs. “O afeto para mim é recente, eu acho que tudo que eu entendi sobre afeto era mentira, não era real. E aí eu fui começando a entender o afeto enquanto uma tecnologia de cura, a partir dos meus estudos, da minha troca com outras mulheres que são parecidas comigo, a partir desse desse lugar de vivência, porque eu sempre fui ensinada a doar tudo de mim e em vários lugares eu não sentia reciprocidade”, assume.
O lado B do disco já trilha por outro rumo, onde nas imagens a cantora desponta fazendo uso de outros trajes, num estilo mais dark, e com um estilo de cabelo diferente do primeiro lado do álbum. As 13 músicas seguintes se mesclam na cultura hip hop, passeando por várias vertentes do rap, como o Drill, Grime, Trap, Funk e Boombap, que acabam somados à referência estética da liturgia religiosa como corais, órgãos e oratória.
Ferreira passou a entender sua oratória, fruto da sua criação de pais religiosos, quando ainda estava nas pistas de skate, durante sua adolescência: “Quando eu levava meu violão, todo mundo parava para me ouvir cantar, mas quando eu ia sem meu violão a galera do skate já me achava chata, por trazer debates mais densos. Falavam ‘Lá vem a Bia com as loucuras dela’. [brinca] “Foi nesse processo de começar a cantar, que eu tive coragem de mostrar as coisas que eu já tinha escrito e vi que as pessoas estavam mais abertas quando eu estava cantando”, acrescenta.
Reconhecida por sua canção “Cota Não é Esmola”, que viralizou na internet em 2018 e se tornou obra musical obrigatória, em 2019, do vestibular seriado da Universidade de Brasília (UnB), ao lado de canções de artistas como Tom Zé, Ney Matogrosso, Elza Soares e Beto Guedes, Ferreira hoje se firma com um auto protagonismo, sendo uma artista preta lésbica em um mercado musical que, em sua maioria, busca invisibilizar estas pessoas: “Dificilmente você vai encontrar nas canções brasileiras, letras feitas de uma mulher para outra mulher abertamente. Normalmente as mulheres usam eu masculino na poesia ou fica tudo nas entrelinhas. Hoje até para ser sapatona na música brasileira existe um perfil, você tem que ser branca e ter cabelo curto. Então eu busco fazer uma arte que, tocando em festivais ou não, as sapatonas que me ouvirem irão se sentir contempladas, as pessoas pretas que me ouvirem vão se sentir representadas”.
A crítica da artista se deve ao fato da mesma não ter recebido convites para integrar as programações de festivais brasileiros: “Eu acho que as pessoas criaram uma imagem sobre mim que nem sou. E eu entendo que deva ser difícil você ser dono de um festival e saber que a galera está indo lá para curtir, e botar alguém para falar sobre racismo estrutural genocida e não estou julgando a arte de outras pessoas, mas eu tô falando que às vezes é muito mais fácil você trazer alguém com o discurso mais leve, e esse também foi um motivo de eu apresentar o lado A do meu último disco”, reflete.
“Isso já me adoeceu demais, porém não é mais uma questão para mim eu vou continuar produzindo minha arte com altíssima qualidade, da forma que eu acredito, sendo relevante para as pessoas. E aí eu entendo que o legado que a gente tá construindo é bonito, me traz força para seguir e acho que essa galera vai começar a perceber isso”.
No começo deste ano, a multi-instrumentista representou o Brasil na terceira edição do Tiny Desk Meets globalFEST e pôde assistir o reconhecimento de outros países do mundo que não entendem sua língua, sem se desvencilhar das causas que defende: “Eu consigo alcançar o coração das pessoas, apesar de cantar em português. Tem casos que eu explico sobre o que eu estou cantando e falo para as pessoas buscarem depois no YouTube, e que vejam a tradução daquilo que eu estou cantando. Tem casos que eu recebo pessoas chorando, muitas se dizendo transformadas pelo que elas tiveram acesso, e isso é muito bonito”.
No vídeo da artista, gravado na Ocupação 9 de Julho, em São Paulo, para o projeto que é fruto de uma parceria entre a emissora estadunidense NPR Music, criadora do famoso canal de apresentações ao vivo Tiny Desk, e da plataforma musical globalFEST, a mineira toca acompanhada por Érica Silva (baixo), Mari Lima (guitarra) e Pé Beat (bateria).
Em pouco mais de 17 minutos, ela apresenta as composições “De Dentro do AP”, “Levante a bandeira”, “Aquela Moça” e “A Conta Vai Chegar”, parte do repertório dos discos Igreja Lesbiteriana, Um Chamado (2019) e Faminta (2022).
Ferreira também confirmou uma turnê internacional, onde irá passar quase cinco meses circulando por Inglaterra, Bélgica, Alemanha, integrando também o line-up do Herzberg Festival, Espanha, Portugal, França, Estados Unidos e Itália.
“Quando eu vi, a minha arte já tinha atravessado do Oceano antes de mim. Eu fui a primeira pessoa da minha família a sair do país e isso é muito representativo para mim, porque foi através da minha arte que eu conheci o mundo. Desde 2018 eu faço essa construção de público na Europa e também estudo como comunicar em outra língua. Eu tenho a obrigação de fazê-los que a cada 23 minutos uma pessoa parecida comigo é morta pela polícia no Brasil, eu preciso falar que não foi descobrimento [do país], eu preciso falar sobre isso. “
Faminta de futuro, a artista também declara que tem vontade de realizar parcerias musicais com a cantora de jazz e contrabaixista Esperanza Spalding e com a cantora Lauryn Hill: “Vai ver que falando para você, eu consiga profetizar”, finaliza aos risos.
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