“Aí liguei para o Marcelo”, conta BNegão. “Eu falei: ‘Qual é?’. E ele: ‘Porra, eu não posso falar muito que eu estou dirigindo na estrada aqui nos Estados Unidos’. Ele estava lá, passando férias com a família, naqueles negócios de highway. ‘Mas fala, fala o que é?’. ‘Irmão, tenho a banda para abrir o show do Planet Hemp no Circo Voador’. ‘Quem?’. ‘Tantão e Os Fita‘. E ele: ‘Tantão… O Tantão?’. Eu falei: ‘É, cara! Tantão e Os Fita’. ‘Caralho! O cara fez uma banda, que foda. Onde é que dá pra ouvir, tem um link aí? Dá pra mandar por e-mail a música demo e tal?’. E eu falei: ‘Não é demo, não, mano! Os caras lançaram o disco’. ‘Então dá pra ouvir onde?’. ‘Spotify’. ‘Tantão no Spotify?! Não acredito!’. Daí eu mandei depois uma mensagem: ‘Ouviu?’. E ele: ‘Ouvi, meu irmão! Quase bati o carro aqui! Fiquei maluco, dando cabeçada no volante ouvindo a parada’.”.
Tantão é um ícone da música carioca. Compositor objetivo e visceral, Carlos Antonio Mattos tocava synths e compunha uma ou outra canção da banda Black Future, um marco do punk do Rio de Janeiro nos anos 1980. No geral, ele é visto como uma espécie de produtor da Black Future, um dos responsáveis pela sonoridade arrebatadora do grupo. A banda tem um único disco, Eu sou o Rio (1988), que virou influência para outros projetos ligados ao cenário punk que viriam a surgir, como o Planet Hemp.
“O Tantão estar no disco [JARDINEIROS (2022)], pra gente, é uma questão fundamental”, dispara BNegão. “A gente é fã do Tantão há muito tempo, antes de conhecer ele, porque a gente era fã do Black Future, que era a banda dele com o [Márcio] Satanésio. Quando eles lançaram o disco, pelo selo Plug, eles eram amados por tanta gente que o primeiro e único disco dos caras é o que tem mais participações que eu vi até hoje. Todo mundo queria tocar no disco! Tem membros do De Falla, tem o Edgard Scandurra, Paulo Miklos. Todos os grandes mestres da época, todo mundo queria tocar num disco dos caras. E a gente era muito fã. Pô, Tantão é punk da primeira geração, junto com o Formigão, do final dos anos 1970 no Rio.”
Depois do fim do Black Future, Tantão começou a se apresentar em parceria com vários artistas em jam sessions e, entre um show aqui e outro ali, ele assumiu o lugar de cantor, letrista e performer. Mais de uma década depois de Eu sou o Rio, a Lapa ganhou um centro de efervescência cultural do noise, o Plano B, uma casa com lotação de 30 pessoas no máximo, mas que reunia cerca de cem pessoas na rua, vendo shows de música experimental pela janela. Essa loja de discos de vinil tornou-se a principal casa de shows de peso da música experimental do Rio de Janeiro entre os anos 2000 e 2015, e também um espaço marcado pela presença inconfundível do Tantão. E é aí que entram Cainã Bomilcar e Abel Duarte, Os Fita.
“O Plano B, para mim é um marco de quando eu comecei a pensar música como uma expressão artística, projeto, trabalho”, conta Abel Duarte, de 30 anos: “A gente tinha sessões coletivas de improviso e eu comecei a fazer um projeto com o Tantão, que vivia lá”. Já Cainã Bomilcar, de 34 anos, tinha um grupo de música experimental chamado Rádio Lixo quando começou a frequentar o Plano B. Abel começou a colaborar com a Rádio Lixo e, assim, o vínculo entre os produtores musicais que viriam a se chamar Os Fita foi se tornando mais forte. Passaram a compartilhar projetos e também uma urgência: é preciso registrar o Tantão como cantor e compositor.
“Foi um intervalo de 29 anos sem lançar nada do Tantão”, diz Cainã: “A gente não tinha a ideia de juntar essa banda, mas o Tantão estava pilhadão e isso, pra mim, na época, foi muito foda.” Eu liguei para o Tantão para ouvir como foi para ele ser procurado por esses dois jovens e entender por que ele passou tanto tempo fora do radar. Primeiro, ele me pediu para ligar às 22h, depois pela manhã e, de tarde, nos desencontramos porque o celular dele estava carregando em outro cômodo. Foram mais de dez ligações sem ser atendida, um caminho sinuoso que ajuda a entender a agitação de Abel e Cainã que, na época, viram o Tantão entusiasmado com a banda. Por outro lado, é nítida também a importância que essa parceria tem para o Tantão: Os Fitas chamaram ele para fazer um projeto dele em um estúdio — e ele foi.
Decidiram então gravar uma jam session juntos, os três, com aproximadamente 15 máquinas diferentes, entre vinis, samplers e uma porrada de pedais. “Espectro (2017) nem ia ser um disco: era uma jam session que a gente gravou e a própria jam session motivou a gente, disparou esse desejo do disco. Um ano depois, fomos dar nome pra parada. A gente fez um álbum em estúdio e transformou isso num show, numa banda, num projeto, depois”, relembra Cainã.
O processo criativo do trio mudou muito desde então, disco a disco. Em Drama (2019), o sentimento de urgência ainda era presente nos produtores musicais, mas por outro motivo: o álbum foi feito em 2018, às vésperas das eleições presidenciais no Brasil. “Tantão tem essa sensibilidade para falar muito bem e contundentemente sobre o que está acontecendo, então esse é um disco que veio muito a partir das letras”, revela Cainã. Segundo Abel, Drama é a tentativa de ser mais certeiro. Assim, os produtores trouxeram previamente as bases para a jam session e o Tantão trouxe as letras. Eles apostaram no mesmo processo coletivo do primeiro disco, mas com atalhos que tornaram a construção do álbum na pós-produção muito mais ágil. A ideia era uma só: a mensagem precisa chegar.
O terceiro e último lançamento do trio, Piorou (2020), rompeu com o pilar coletivo do processo criativo de Tantão e Os Fita. Feito no auge do isolamento social da pandemia de Covid-19, foi o primeiro disco que partiu totalmente das letras e de material gravado. “A gente começou a se encontrar quando o disco estava 70% pronto”, relembra Cainã, “As letras são mais curtas, ele é todo picotado porque tinha uma limitação de material”. De certa forma, Piorou revisita todos os anos de existência de Tantão e Os Fita, com gravações que vão da primeira jam session juntos até shows de 2017, passando por vinhetas de uma captação para um projeto de instalação que não deu certo — segundo Abel, o disco tem trechos deste dia em que os três foram para a rua com gravadores ligados enquanto o Tantão comentava sobre geradores, rua e dinheiro.
Vale dizer que Tantão não tem WhatsApp e não atende o celular na base da insistência. Em certa medida, essa postura arredia denuncia também uma falta de espaço hoje para se lidar com um artista como ele, que não deixa de ser um vanguardista. Contatá-lo pode ser tão complexo quanto o texto que ele canta, e não tem como não se perguntar: como um produtor marca um horário no estúdio com Tantão? “Eu estava acompanhando a parada d’Os Fita, fiquei felizão quando eu ouvi o som deles”, diz BNegão: “Porque basicamente eles conseguiram encapsular o Tantão. Porque o Tantão é esse cara que está sempre nas madrugadas e os caralho, na Lapa, no centro da cidade, profetizando um monte de parada sinistra, gritando, sacou? Com aquela voz distorcida: ‘Ahh, a matemáticaa! É universaaal!’, cuspindo em cima de você. É um negócio dele mesmo: ‘Ahhhh, ahhh, o underground, ahhh’. Ele só falava dessa forma”.
BNegão lembra do amigo com carinho e, desde Espectro, o Planet Hemp é um grande entusiasta do Tantão e Os Fita. Os membros do histórico grupo compartilharam o disco de estreia do projeto nas redes sociais, trocaram elogios e, na ocasião do show no Circo Voador, em 2017, convidaram Tantão e Os Fita para abrir a noite — a história do começo deste texto, que traz a definição mais certeira da sonoridade áspera do trio: é música para dar cabeçada no volante.
Foi em 2019 que o disco JARDINEIROS começou a ser feito e rolou um primeiro convite para Os Fita: o Planet Hemp queria samplear o Tantão. Não somente Abel e Cainã conseguiram trazer o artista para um estúdio e registrar sua nova faceta na música brasileira, mas através desse registro foi aberto um novo leque de possibilidades e de reafirmação da importância histórica do Tantão — que é um pouco a filosofia do sample: criar o novo a partir da reverência às memórias.
Este sample, da música “Portal”, deu origem à faixa “VEIAS ABERTAS”. Mais tarde, Marcelo D2 encontrou o Abel e convidou Os Fita para mais parcerias. A banda assina mais duas faixas do disco, “TACA FOGO” e “DISTOPIA”. Para Cainã, que fazia cover de Planet Hemp na sua primeira banda, aos 11 anos de idade, tem um sabor especial trazer a sonoridade única de Tantão e Os Fita para o mais novo disco do grupo.
Já eu consegui falar uma vez só com Tantão ao telefone, mas durou pouco e o volume da ligação estava baixo, como se ele falasse através do viva-voz, mas no outro canto do cômodo. Logo, ele desligou e, em seguida, me mandou a seguinte mensagem, reproduzida a seguir da forma que foi escrita: “Vou chamar um amigo, ele só pode amanhã é o único jeito esse celular está clonado. Tenho inimigos fascista existem bolsonaristas nazistas estão bolados com sucesso repentino vou fazer uma música”. Até o fechamento dessa matéria, estas foram as únicas palavras de Tantão.
Esta matéria foi publicada originalmente na edição 131 da revista NOIZE, lançada com o vinil de “Jardineiros”, do Planet Hemp, em 2022.
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