Já passaram mais de 20 anos desde que BNegão está no rolê. Ao longo das décadas que separam a criação do The Funk Fuckers até o Seletores de Frequência, passando pelo mitológico Planet Hemp, Bernando Santos soube unir como ninguém o rap, o punk, o reggae, o dub, o soul e o funk.
Hoje, todo mundo sabe quem é o BNegão, mas quantas pessoas o conhecem? Quantos fãs sabem que ele vem de uma família de militantes contra a Ditadura Militar? Ou então que a yoga teve (e tem) um papel fundamental na vida do músico? A entrevista que você lê abaixo é um convite a conhecer um pouco mais desse artista complexo, que se preocupa tanto com o suígue de um baile quanto com a revolução interior que suas músicas podem e devem provocar.
Amanhã, BNegão & Os Seletores de Frequência lançam seu novo disco, Transmutação (baixe de graça), em Porto Alegre. No próximo dia 13, o show é em Brasília; no dia 14, em Belo Horizonte e, no dia 21, no Rio de Janeiro. Essas são oportunidades únicas para sentir o peso desse novo álbum que saiu de supetão, como ele conta abaixo.
Antes de sair o Transmutação, o plano era fazer um disco instrumental com o Seletores de Frequência. O que rolou?
Esse instrumental seria da forma como sempre fizemos os discos: correndo atrás, bancando, fazendo nossa própria parada. Paralelo a isso, nosso produtor decidiu, por ele mesmo, fazer o projeto com a Natura pro nosso terceiro disco. A gente nem levava tanta fé no projeto, pensamos que a Natura nem era pro nosso bico, aí seguimos fazendo o disco instrumental. Mas foi passando de fase na Natura e aí, quando passou, a gente se ligou: “Caramba, vamos ter que fazer esse disco!”. (Risos) Aí corremos atrás.
E o disco instrumental ficou em que pé?
Tá com as músicas bem definidas. Lógico que, com mais tempo, vamos acabar compondo mais. No Seletores, todo mundo compõe, então tem música a dar com pau. Devemos lançar no ano que vem esse disco.
Você toca algum instrumento nele?
Não, até componho, mas não toco ao vivo. No Transmutação tem um baixo que eu gravei pra demo e acabou ficando no disco, de “Mundo Tela”. Mas normalmente, eu não gravo. Sou mais produtor mesmo. Mas se tiver alguma música que, dentro das minhas limitações técnicas, eu consiga gravar, eu faço! (Risos)
O Transmutação foi todo composto em estúdio, então?
No estúdio de ensaio, não no de gravação. Ensaiamos um mês direto e efetuamos. É um “disco polaroid” porque as músicas são todas de agora, fora a “Surfin’Astake”, que já tava feita e é uma prévia do disco instrumental. As outras todas foram feitas naquele momento, finalizadas no laço, ou na madrugada antes da gravação ou na própria gravação mesmo.
Você já tinha feito um disco com tanta pressão?
Não, mas achei ótimo porque sou um cara que só funciona com prazo. Sem prazo, deu no que deu, entre o Enxugando Gelo (2003) e o Sintoniza Lá (2012) se passaram nove anos.
E sobre o nome do disco, você fala sobre uma mudança necessária pra garantir o bem estar das pess…
(Interrompendo) É mais do isso! É pela sobrevivência do planeta, sacou? O bicho tá pegando de tal forma que é diferente dessa ideia de “melhorar seu bem estar”. É isso ou é isso! Basicamente, acho que é a única chance. O mundo tá ladeira abaixo. A mudança precisa acontecer e de dentro pra fora, que é você prestar atenção na sua caminhada, no que você tá fazendo pra melhorar seu entorno. Não vai ser algo de cima pra baixo, de fora pra dentro, que vai mudar alguma coisa significativa. Aí vai ser só mais do mesmo.
Você diz que não é uma questão de escolha, mas de necessidade.
Necessidade de sobrevivência pra que o planeta não exploda antes do tempo.
Você já chegou com o desejo de fazer um disco falando isso ou foi algo que surgiu na hora das composições?
Tudo que fiz e faço, também com o Seletores, tem essa visão espiritual. Todos discos têm isso. Mas senti essa necessidade até pelo meu momento de vida, vendo as coisas acontecerem no Brasil e no mundo. Fiquei um tempo buscando as letras e a parada não tava saindo, eu tentava direcionar a parada e não tava vindo, aí deixei fluir e o que veio foi isso aí. No final de tudo, quando acabamos o disco e tinha que dar o nome, fiquei ouvindo as músicas na ordem e sentindo o que vinha. Aí veio “transmutação”, o título foi a última coisa que veio.
Qual é importância que você dá à música enquanto ferramenta de mudança individual e social?
Eu faço música por causa disso. Muito antes de fazer música, fui atingido por isso. Basicamente, pelo punk rock. Foi o que me trouxe a vontade de fazer música, música de mudança. O rap teve uma função mais na forma da coisa, desde 1984 eu ouço e nem sabia que o nome era rap, e aquilo me atingiu desde o início, mas eu não sabia o que o cara tava falando ali, sacou? E na época, ninguém falava nada de muito importante no rap, fora o Grandmaster Flash and the Furious Five, a galera falava só: “ah, eu sou foda, olha minha corrente”. Essa coisa nunca me interessou. Ao mesmo tempo, o punk rock nacional, Inocentes, Ratos de Porão, Cólera, isso aí fez a diferença. Eu vim de uma família que sempre batalhou por mudanças, meu pai foi um ativista forte contra a Ditadura Militar. Essa visão de mundo já vem comigo, essa consciência de que é necessária a mudança. Então, pra mim, sempre fez diferença as músicas. Foi o que me fez ver que eu não tô sozinho nessa, sabe? Não tô maluco, tem gente que também tá pensando assim. Aí você chega num lugar e vê mais gente como você, tem esse lado também. Ao mesmo tempo, eu recebo diariamente – mesmo! – mensagens de gente me apoiando. A primeira vez que isso aconteceu com mais força foi no começo dos anos 2000, encontrei um cara na rua que me disse que ouvia muito o refrão de “Stab”, do Planet, que eu escrevi. Aquele: “vários irmãos se recolhem e vão em frente…”, ele disse que ouvia direto e que era fã e que ficava todo momento focado ali. A partir daí, comecei a ficar com a antena mais atenta no sentido de ter essa noção de que é importante pras pessoas mesmo. Já encontrei gente na rua que me disse: “Muito obrigado, suas letras me salvaram”. Tem gente que usa [as músicas] em colégios, com crianças, gente que usa na aula de literatura, já recebi contatos de gente que usa em aulas de filosofia pra discutir com os alunos. Esse tipo de coisa acontece muito e é mó felicidade porque o que eu faço é música de mudança. Eu tô na música por causa disso, decidi fazer música por isso. Minha ideia não era subir no palco e ficar famoso, era fazer música de mudança. É isso que me mantém até hoje, nunca fugi desse esquema, é o que me move. Eu faço música porque eu amo a música, mas a minha parada é a mudança. É a função básica.
Você cita diversas personalidade no disco novo, Darcy Ribeiro, Mahatma Gandhi… Mas me surpreendeu que você cita o Yogananda e o Hermógenes, dois mestres de yoga. A yoga teve um papel importante na sua vida?
Tem, fundamental. O Hermógenes é meu mestre, sempre foi. Tive acesso a ler e me inteirar disso desde pequeno e fez toda diferença pra mim. Toda diferença. Tanto que ele é citado em várias situações, “Prioridades” tem uma parte inteira que é basicamente de citações dele ou a ele, aquela fala “somos atores que vestiram a carapuça”, é tudo dele. “Hoje pavão, amanhã espanador”, essa frase é dele. Eu tive a oportunidade, depois, de conhecê-lo. Ele fazia um trabalho numa delegacia, aí eu ia tocar minhas músicas, e ele apresentava um filme sobre yoga nos presídios. Aí a gente se conheceu, fiquei emocionado e, depois de um tempo, tivemos uma relação direta. Ele me acolheu mesmo, acabei tocando no aniversário dele, foi do caralho. Foi num centro Hare Krishna, mas tinha líderes de todas religiões, todo mundo tava lá, o principal cara do candomblé, a galera budista… Eu sempre tive isso muito claro, o universalismo. Eu não tenho religião, eu sou universalista, uso coisas no meu dia a dia de várias religiões, sempre buscando o aprendizado. Quando eu vi essa união no aniversário do Hermógenes, tive a confirmação de que ele era meu mestre mesmo porque tinha essa coisa ecumênica. Eu sou isso, até minhas próprias músicas são isso. Faço uma música ecumênica, não música separatista, é ecumênica. O Hermógenes tem muito disso. O Yogananda é um dos maiores mestres mundiais, e o Hermógenes foi um cara que trouxe a Yoga pro Brasil. Foi o primeiro cara que publicou livros sobre e trouxe o conceito todo da parada, contra tudo e contra todos. É o maior mestre no Brasil de yoga, isso é certo. Filosoficamente, sempre me deu várias luzes. Foi demais a primeira vez que eu pude cantar “Prioridades” pra ele, ele que pediu pra eu tocar, aí toquei, fiquei felizão. Nossa relação é próxima e fundamental pra mim.
E quando você começou a praticar a yoga?
Então, minha relação com a yoga é completamente filosófica. No momento em que eu conseguir implantar ela, vou resolver a maior falha que eu tive com o Hermógenes (e até com minha ex, que é professora de yoga). Falta botar a prática física no dia a dia, se não eu não tava desse tamanho também! (Risos) Mas filosoficamente é o que eu sigo, sempre segui, é o que fez a conexão toda entre eu e o Hermógenes. A yoga junta o corpo e o espírito pra você fazer esse caminho de evolução. No dia em que eu estiver fazendo direto a prática física, vocês vão ver meu físico mudando! (Risos) Vou conseguir em algum momento.
Pra você, a mudança de consciência que você fala passa diretamente por um reconhecimento da espiritualidade?
Cara, eu acho que isso é fundamental, mas ao mesmo tempo vejo um monte de pessoas agnósticas que tão na busca de serem melhores seres humanos e que fazem tanto ou mais [do que pessoas religiosas]. Pra mim, é uma preciosidade saber o que você veio fazer no planeta. Fez toda diferença na minha vida me ver como um espírito encarnado. Em algum desvio, você consegue voltar mais rápido pro prumo porque tem essa noção, você não fica no meio daquele redemoinho sem ter onde se agarrar. Isso faz toda diferença, MAS eu tenho vários dos meus melhores amigos que são agnósticos, completamente descrentes dessa parada, e que fazem toda diferença no mundo. Neguinho que é um agente de mudança. O importante, na verdade, é a prática de ser agente de mudança. Tem nego que sabe a Bíblia de trás pra frente e não bota em ação uma linha daquilo ali e ainda fica dizendo que sabe citar isso e aquilo. Tá bem, o cara decora, mas o negócio é prática. É melhor você praticar uma frase do que saber um livro inteiro e não fazer nada. Ao mesmo tempo, acho importantíssimo que, quem se dispõe a buscar esse lado espiritual, que o faça. Porque faz diferença na vida mesmo. Independente de religião ou não. O Dalai Lama fala algo assim: “Não é importante que você venha pra minha religião, o importante é que você se ligue, acorde”. É basicamente isso. Aí outro dia um cara me falou: “Ah, tá apelando pro misticismo”. Mas cara, pra mim isso é uma coisa do dia a dia, é óbvia, tão óbvia quanto a Terra ser redonda e girar em torno do Sol. Na época em que os caras mandaram essa parada, neguinho queria queimar quem falou isso, um foi queimado [Giordano Bruno], o outro, Galileu, não foi porque se retratou perante o tribunal da Inquisição. A ideia era que tudo girava ao redor da Terra, que era a coisa mais importante do Universo. Isso é uma ignorância olímpica. E essa mesma ignorância eu vejo hoje, daqui a um tempo a gente vai estar dando risada falando sobre isso. Não vai ser um tabu, vai ser uma coisa normal do dia a dia daqui a algumas décadas.
O Transmutação chegou bem carregado de percussão, você tinha o desejo de trabalhar com a raiz afro da música brasileira?
Então, tenho essa ligação com o tambor desde sempre. Sempre fui batuqueiro. Tenho pra mim que, se eu entrasse pra um terreiro, seria o cara do tambor. O ritmo da parada sempre me emocionou muito. E eu sempre achava que meus trabalhos estavam em débito com isso, eu não me sentia 100% representado porque sentia que tava faltando esse lado. Aí a única coisa que eu já tinha pré-concebido era isso: “No próximo disco eu vou botar o tambor lá na frente”, já deixei avisado pra galera. Queria puxar o tambor pra linha de frente, pra ele ser o comandante da situação. E consegui. E daqui pra frente, vai ser assim. Eu fiquei muito feliz com isso. É uma coisa que me arrepia e faz diferença em termos de convocação de energia, e tudo mais. Acho que rolou, nesse disco conseguimos dar esse passo importante.
Está bem em voga falar sobre as conexões da música africana com o Brasil, será que o nosso país está tentando resolver a ferida aberta com sua herança africana?
Não, acho que continua igual. O que acontece são movimentos individuais, de pequenos grupos. É por essas e outras que falo: a transmutação é importante enquanto tiver gente acreditando na ignorância de que uma pessoa é diferente da outra – por qualquer motivo, cor, classe social -, sem entender que estamos no mesmo barco, que viemos do mesmo lugar. Tem pessoas que só se identificam com quem é parecido com elas, isso aí é um egocentrismo absurdo. Isso é o fim, é a base do racismo, de qualquer racismo. Pra mim, não existe racismo ao inverso, racismo é racismo, sacou? Da mesma forma que existe de brancos com negros, existe racismo de negros com brancos, ou então do cara que é de uma tribo em relação à outra, etc. Isso já foi motivo de guerras e continua sendo. Pra mim, a humanidade é uma irmandade. Enquanto tiver gente que pensa desse jeito, é necessária a transmutação. A pessoa tem que entender o que a gente tá fazendo aqui nesse planeta. Essa é que é a minha. Porque aí você vira um instrumento de mudança pra esses caras que tão nessa escuridão de discriminação, racismo, homofobia, várias paradas dessas. Ou seja, pras pessoas que tão sem luz. É importante isso aí.