As estrelas não se apagam com o tempo. O documentário musical de Win Wenders Buena Vista Social Club (1999), feito em parceria com o grande guitarrista Ry Cooder, foi o que catapultou ao mundo todo a cena musical de Cuba dos anos 1950, mas a grandiosidade da obra desses artistas nunca dependeu do sucesso comercial massivo. A cantora Omara Portuondo, a única mulher que integra o grupo mostrado no filme, já gravou dezenas de álbuns desde que saiu Magia Negra (1959), seu disco de estreia. Mas é justamente esse primeiro disco o foco da turnê que Omara está realizando agora e que passa pelo Brasil: hoje, ela toca em Porto Alegre, amanhã vai pro Rio de Janeiro e, no dia 30, toca em São Paulo.
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Conversamos brevemente com essa cubana de 83 anos que mescla em seu canto a força de uma revolução com a doçura da cana-de-açucar. Leia abaixo:
Nos últimos anos você estreitou sua relação com o Brasil…
Não, eu sempre tive o Brasil no meu coração. Nesses últimos anos pudemos nos reencontrar e vocês me presentearam com um pedaço dos seus corações quando eu pude estar aí.
Que elementos você sente que unem a cultura brasileira e a cubana?
O elemento humano! Como seres humanos, nos parecemos muitíssimo. Somos alegres, simpáticos, fazemos brincadeiras, somos rítmicos… e a música! A música é uma coisa que nos une. A música de vocês é uma coisa contagiosa, rítmica, os cantos são maravilhosos. Nós amamos a música do Brasil, nos fascina o fato de que ela se espalhou tão tranquilamente. A minha espera foi grande, mas valeu: a primeira faixa brasileira que gravei foi uma música do Carlinhos Brown no disco Flor de Amor (2004). Teve também o maravilhoso disco que gravei com Maria Bethânia [Omara Portuondo e Maria Bethania (2008)].
Você também gravou com o Chico Buarque.
Sim, o Chico Buarque é um homem maravilhoso. Aliás, o primeiro músico do Brasil que conheci foi o Chico Buarque. Porque ele ia muito a Cuba, tinha alguns festivais de música popular lá onde ele costumava tocar. Iam outros artistas brasileiros também, como a Maria Bethânia. Mas eu nunca tinha tido a oportunidade de estar tão próxima a eles na época, até porque ficamos divididos pela distância territorial.
E você sente que há uma conexão musical entre toda a América Latina?
Toda a América Latina está relacionada porque temos músicas melódicas e rítmicas que fazem parte da nossa vida. Tivemos os mesmos escravos que saíram da África e chegaram no Brasil, uma parte desse grupo chegou a Cuba. Então, por exemplo, a religião, os ritmos, a alegria pela vida, essas coisas são comuns entre a gente, a natureza das pessoas é a mesma.
Você está vindo ao Brasil apresentar o seu primeiro disco, Magia Negra (1959). Como você se sente revisitando uma obra de tanto tempo atrás?
Essa é a pergunta de todos e parece uma coisa normal, mas não é. Quando nos juntamos para fazer esse disco, eu estava trabalhando com muitas pessoas. Trabalhava no Tropicana [casa de shows de Havana], e não tive muitas chances de promover o álbum. Consideramos que agora seria um bom momento de fazer isso. Nós músicos, artistas, amamos todas nossas obras, mas tem algumas que chamam mais atenção e todo mundo se interessa por elas. Agora quero voltar a esse disco pelo papel que ele teve na minha vida e em tudo o que vivi.
A cena musical de Cuba dos anos 1950, do Tropicana, do Buena Vista Social Club, era um produto da Cuba do ditador Fulgencio Batista?
Não. A música é a natureza de Cuba, não é de ninguém em especial. Aquela música já existia com San Martín [Ramón Grau San Martín, presidente cubano de 1944 a 1948] antes do Batista e continuou depois quando Cuba se tornou livre. É por isso que eu digo que a música é a alma do povo. De todos os povos, que eu saiba. Eu não conheci um ser humano que não goste de música. Todo mundo gosta. É por isso que a música ainda existe e segue sendo transmitida pela voz, pela percussão, pelos instrumentos. De qualquer forma, a música sempre existe.
Como você e os outros artistas da época sentiram a revolução cubana?
Eu sou muito cuidadosa e muito respeitosa sobre isso. Eu penso que esse é um processo normal do ser humano. Desde quando chegaram os espanhóis, que trouxeram os escravos, houve sempre uma parte de Cuba onde só viviam eles. Foram os espanhóis que chegaram e disseram que queriam esse território para eles e conquistaram isso. Não sei o que os escravos e os índios diziam disso, mas o que se viu depois foi uma sucessão desse mesmo ser humano, dessa mesma natureza. Por lógica, se eu tenho na minha mão algo que pertence a mim, eu não gostaria que viesse alguém e me tirasse isso. Processos como esse também aconteceram aí no Brasil, por sorte cheguei a conhecer pessoalmente o Lula, cantei uma música pra ele. Coisas como essas acontecem, e a vida vai seguindo de um jeito que a gente nem sequer imagina. Quando era criança e cantava a música “Veinte Años” eu nunca imaginava que, em um determinado momento, eu seria uma grande cantora. Ainda assim, sigo cantando essa mesma música hoje e adoro fazer isso.