É incrível como a música, mesmo sendo uma forma de arte apreciada com apenas dois sentidos, a audição e o tato, tem a capacidade de nos fazer viajar longe, criar cenas complexas com a imaginação, povoar mundos de personagens, imagens em movimento, sentir cheiros e sabores… A música manipula nossa memória auditiva, responsável por recuperar lembranças associadas aos sons, e transforma-se em arte no momento em que abandona a função meramente objetiva, das percepções, e invade o plano subjetivo, das emoções. No lugar de fornecer resposta, instala interrogação – desloca. Assim, ouvir música pode tornar-se uma viagem. Espacial, tridimensional, existencial. Cada conjunto de sons, ordenados e dispostos no tempo e no espaço, dão sensação de profundidade, mas, mais do que isso, produzem intensidade.
Estes elementos estão presentes no último EP lançado pela dsrptv rec. chamado Diegese e assinado pelo artista recifense baseado em São Paulo Entropia-Entalpia. Matheus Câmara é multi-instrumentista e, além do seu live set voltado pra pista, faz parte da banda Teto Preto, atua como stage manager nas raves urbanas de SP, trabalha como músico de apoio e produtor técnico, tem um projeto voltado ao público infantil com seu pai (o famoso músico e apresentador de TV China) e produz trilhas para o setor audiovisual. Inclusive, em conversa que tivemos sobre seu último lançamento, ele afirmou que os trampos com trilhas para vídeo, intensificados durante a pandemia, influenciaram fortemente a produção do EP Diegese:
“Depois que eu comecei a trabalhar com vídeo, virou uma chave na minha cabeça, eu componho muito baseado em imagens. Assisto filmes e às vezes dou pausa no Netflix e vou produzir, meu processo é muito imagético hoje em dia. Inclusive, pretendo fazer mais produções audiovisuais minhas. Não necessariamente clipes, mas instalações, essas coisas”.
Fica evidente em Diegese a incorporação de técnicas de produção de trilhas sonoras. A complexidade de camadas e elementos apresentados nas músicas convidam o ouvinte a completar, com imaginação, o restante da cena. São instrumentos que vêm e vão, como se carregados por uma brisa. Entre presenças e ausências, espaços preenchidos e espaços vazios, especula-se o desenrolar de um ato, onde as emoções são provocadas pelos sons.
Como a música surgiu? Quais suas origens? Tais questões têm sido um desafio para historiadores e antropólogos e não encontram resposta fácil. Há um certo consenso de que os seres humanos fazem música desde a pré-história, embora seja muito difícil precisar com detalhes seu surgimento, que confunde-se com a revolução cognitiva e o desenvolvimento da linguagem, há cerca de 30 mil anos, como nos conta o historiador isrelense Yuval Harari. É neste período que a humanidade desenvolve a capacidade de criar ficções: ordenar elementos narrativos para contar histórias. O filósofo argelino Jacques Ranciére define a arte como uma produção que desloca os sentidos e instala uma interrogação no sujeito. Diferente da ciência, que traz uma certeza, a arte carrega consigo a dúvida. Portanto, os sons, para transformarem-se em música – em arte –, abrem uma fissura que convida o sujeito a participar, com a sua subjetividade.
Em Diegese, “Cena 1”, faixa que abre o disco, texturas graves criam tensão. Pequenos ruídos de objetos se movendo ao fundo sugerem que a cena é habitada por alguém. Quem? A forma como os sons reverberam dão sensação de espacialidade. Vozes robóticas, texturas de K7 e amplificadores valvulados contrastam com instrumentos acústicos soando livremente na sala, como em uma jam session. Piano, baixo e percussão lideram a cena mas são complementados por estes outros elementos, transformando a música em uma história cheia de nuances. O fato da cena desenrolar-se apenas através da audição convida o ouvinte a preencher as lacunas, povoar a narrativa com sua imaginação. Os pads constroem uma ambiência agradável e ao mesmo tempo melancólica, uma ambiguidade reflexiva e contemplativa. Elementos sutis e imprevisíveis convivem em harmonia relativa, dando dramaticidade a uma jornada experimental e minimalista.
Se na primeira faixa as texturas graves criavam tensão em uma paisagem ambient, na “Cena 7”, segunda faixa e última original, a melodia doce aponta um caminho de desbravamento com referências de jungle e breakbeat na bateria. Mesmo mantendo o clima contemplativo, combinado com relativa tensão – que aparece através das notas graves do sintetizador distorcido – a segunda faixa incorpora vitalidade com a bateria drum’n’bass. A trip de distorções remetem às qualidades de Matheus como instrumentista, habilidades nem sempre fáceis de serem transportadas para a produção de música eletrônica. Filtros discretos são usados nas construções, que seguem minimalistas. O groove transporta a narrativa ambient para a pista.
O remix da “Cena 7” assinado por Norus tem cadência. Usando o tempo do beat pela metade, cria um groove denso que soa mais derretido. A urgência transmitida pelo ritmo drum’n’bass da faixa original é substituída por uma levada arrastada, colocando a track no chão, tornando a track ainda mais espacial. Uma espécie de combinação das duas pegadas é construída no remix do crew da dsrptv, onde o drum’n’bass aparece no seu formato mais líquido. É incrível como a caixa soa vibrante (escutando em bons fones, parece que ela está no mesmo cômodo que o ouvinte). O grave do baixo, esticado por toda a extensão da música, com momentos de respiro inteligentes, segue garantindo forte apelo emocional, um convite ao mergulho – de olhos fechados, de preferência.
Assim como outros animais, nós apreendemos o mundo através dos sentidos. No entanto, os seres humanos são capazes de manipular as expressões sensíveis, retirando-as dos contextos “originais”, criando experiências estéticas. Assim nasce a música, segundo especulações presentes no maravilhoso podcast Ser Sonoro, do pesquisador Fernando Cespedes. Cenas, causos e histórias são contadas através de sons, imagens, palavras, no que Rancière chama de uma partilha do sensível.
É curioso como na primeira vez que ouvi Diegese o disco passou batido. No momento de ouvi-lo novamente, para a escrita desse texto, me lavei em lágrimas. Essa diferença, um certo espaço não preenchido, uma abertura que convida o ouvinte a embarcar na viagem sonora, completando a obra com o seu sentimento encarnado naquele momento, é o que faz da música uma forma de arte. Imprevisível, é um convite à participação ativa, uma aventura dos sentidos.