Incorporando os sabores fortes da cultura do Pará aos sons sintéticos e acústicos da música pop mundial, Arthur Nogueira é um artista daqueles que não se vê muito por aí. Cantor, compositor, jornalista e poeta, já viu suas criações serem cantadas por lendas como Gal Costa e Fafá de Belém e, agora, surpreende o público com o lançamento do seu quarto álbum, Rei Ninguém.
O disco foi produzido com apoio da seção regional do Pará do edital Natura Musical e chegou na semana passada mostrando ao público uma nova face do músico. “Quando fui selecionado pelo edital, percebi que era o momento para reencontrar, de alguma maneira, a minha história”, explica Arthur Nogueira.
Divido em quatro capítulos temáticos, Rei Ninguém é uma obra ancorada no violão que aprofunda em suas canções a já estreita relação que existe entre Arthur e a poesia. O poeta Antonio Cicero, seu parceiro mais constante, une-se a Eucanaã Ferraz, à alemã Rose Ausländer e à Bob Dylan, cujos versos foram incorporados à música de Nogueira.
Abaixo, o próprio Arthur conta como foi o processo de criação das dez faixas do disco. Confira!
I.
Pela primeira vez, devido ao prazo do projeto e à surpresa de minha aprovação no edital Pará do Natura Musical, fiz um disco totalmente do zero. Não tinha repertório nem planejava ainda os próximos passos de minha carreira. A partir do momento em que recebi a notícia e comecei a pensar as canções, por uma mágica que acontece com os compositores e que a gente não sabe explicar como se dá, caí na real de que seria um disco diferente de todos os outros, que gravaria ao vivo em uma imersão com a banda, que as batidas eletrônicas dos meus trabalhos anteriores dariam lugar à essência das composições no violão. O repertório nasceu dividido em capítulos, como um filme, como um livro em minha cabeça. O primeiro capítulo, que abrange as três primeiras faixas, é sobre a tranquila consciência de que os fins são condição para os recomeços. O amor dobra a esquina e bate à porta, parece que “nunca foi tão simples ou tão certo”, só que mesmo em sua bela declaração Bob Dylan reconhece que nada é para sempre. De repente perdem-se os azuis, o céu e o mar tornam-se ruínas até que se abram em um novo sonho. E o que fica? A bagagem para vida presente, as memórias, as canções, o amor “aprisionado em coisas gratas”.
1. “Vou ficar tão só se você se for (You’re gonna make me lonesome when you go)” (Bob Dylan / versão de Arthur Nogueira e Erick Monteiro Moraes)
Estava em Londres, em setembro de 2016, quando decidi visitar o endereço 8 Royal College Street, onde Rimbaud viveu com Verlaine de maio a julho de 1873. Peguei o metrô, saltei em Camden Town e, durante uma caminhada considerável até a casa, imaginava os poetas passeando pelo bairro, a paixão, a angústia, a poesia, a trama decisiva que se desenrolou sob aquele céu cinzento na curta e intensa temporada em que viveram juntos na Inglaterra. Perdi bons minutos parado em frente à porta pintada de verde, emocionado. Depois, em um café ali perto, lembrei da balada de Bob Dylan. Quis fazer uma versão imediatamente, mas achei melhor voltar ao Brasil e convidar o Erick para me ajudar. Apesar de ainda não ter publicado seu primeiro livro, Erick é um poeta no sentido mais preciso, por gostar da “luta” com as palavras e dominar as formas fixas. Foram algumas noites dedicadas a verter a letra para o português, via WhatsApp. Enquanto o Erick apresentava suas soluções poéticas, eu auxiliava o ritmo, sugeria modificações, cantava e tocava violão.
2. “Moonlight” (Zé Manoel / Arthur Nogueira)
Desde a primeira vez que ouvi, fiquei abismado com a grandiosidade do trabalho do Zé Manoel. Admiro sua versatilidade, sua sensibilidade, o toque de seu piano, que sempre me lembra um poema de Eugénio de Andrade sobre pássaros que saem pelos dedos. Escrevi um esboço da letra de “Moonlight” para o disco Delírio de um Romance a Céu Aberto (2016), em que vários artistas interpretam a obra do Zé, mas não conseguimos fechar a composição no prazo estabelecido. O tempo passava e a promessa de que deveríamos fazer algo juntos vinha à tona a todo momento. Um dia, quando o repertório desse novo disco já estava definido, Zé mandou uma mensagem comentando que tinha acabado de assistir “Moonlight” e que o filme havia provocado uma melodia para aquela minha letra quase esquecida. “O que você escreveu parece ser inspirado pelo filme”, ele disse. Tratei de ver imediatamente e a cena na praia iluminou em mim o “Soneto do desmantelo azul”, de Carlos Pena Filho, pernambucano como o Zé. Depois, os dois com “Moonlight” na cabeça, ajustamos alguns versos, acrescentamos outros para fechar a canção e tivemos clareza de que não seria mais possível entrar no estúdio sem ela.
3. “De repente” (Pratagy / Arthur Nogueira)
Um estrangeiro em sua própria cidade. Eis como me sinto cada vez que volto a Belém. Não porque não reconheça minha história ali, sob as mangueiras, mas porque, depois de cinco anos fora, não paro de me surpreender com pessoas ou lugares novos e fascinantes que Belém, esse lugar sui generis, é capaz de revelar. É como se a cidade onde eu cresci só existisse realmente em minha memória. E há algo de revigorante nisso, nessa capacidade que Belém tem de se reinventar, apesar de todo o descaso da administração pública. O disco do Pratagy, hoje um representante da novíssima geração da música pop de Belém, chegou a mim pelas mãos da Elisa Arruda, diretora de arte do disco Rei Ninguém, em uma noite deliciosa em São Paulo. Admirei principalmente a beleza das melodias e a maneira como ele se apropria da sonoridade que evoca referências dos 80’s e do rock alternativo. Propus uma parceria para meu disco novo, ele curtiu a ideia e mandou a música em pouco tempo. Sempre senti dificuldade para escrever sobre uma melodia pronta, mas tudo entre a gente rolou tão bem que, depois de “De Repente”, nossa primogênita, já nasceram outras três.
II.
O segundo capítulo do disco é sobre a beleza do mundo sob uma perspectiva relacionada à poesia de Antonio Cicero e Ferreira Gullar, dois autores centrais em minha vida, que exaltam a natureza em oposição a uma “pretensa transcendência”, isto é, “em toda sua imanência, imediaticidade, aleatoriedade, fenomenalidade, finitude, particularidade, acidentalidade, contingência, relatividade”.
4. “Papel tesoura e cola” (Arthur Nogueira / Eucanaã Ferraz)
Certa noite, em São Paulo, saí com o poeta Eucanaã Ferraz e falei perdidamente do meu amor por “Papel tesoura e cola”. Ele contou que sempre pensou nesse poema como letra de música. Musiquei no dia seguinte.
5. “Era só você” (Arthur Nogueira)
As canções acontecem. “Era só você” veio inteira em uma noite branca, bem paulistana, quando cheguei em casa e pensava em qualquer coisa, menos em fazer uma canção. Sentei no sofá, o violão estava perto, agarrei-o despretensiosamente e um Lá com sétima maior sugeriu que “tudo era tão bonito quando havia sol”. O Marahu e o Paraíso são duas praias em Mosqueiro, ilha perto de Belém onde passei todas as férias durante minha infância, que já foram o cenário sem memória de momentos inesquecíveis em minha vida.
6. – “Lume” (Luiz Gabriel Lopes / Arthur Nogueira)
Em 2016, estive com Ferreira Gullar por acaso, a poucos meses de sua morte. Almoçava com Antonio Cicero no Rio de Janeiro e o grande poeta apareceu de repente no restaurante. Ele foi à nossa mesa agradecer ao Cicero pelo prefácio da nova edição do “Poema Sujo”. Que privilégio viver aquele breve momento com eles. Pensava nesse dia e na poesia do Gullar enquanto escrevia, em uma tarde de fevereiro no Porto da Barra, em Salvador, a letra para a melodia que ganhei do Luiz Gabriel Lopes. Durante a gravação, para não deixar dúvidas sobre a referência e prestar uma homenagem, resolvi dizer “Vendo a Noite”, um dos poemas do espantoso “Dentro da Noite Veloz” que sei de cor. Nada disso seria possível no disco, no entanto, sem a gentileza e sensibilidade da poeta Cláudia Ahimsa, companheira de Gullar, a quem dedico a canção.
III.
O capítulo três é feminino, centrado em duas mulheres imprescindíveis nesse disco gravado por homens: Rose Ausländer e Fafá de Belém. A primeira tem o sal do mar por onde se ganha o mundo. A segunda, o calor da minha terra.
7. “Consegui” (Arthur Nogueira / Antonio Cicero)
Era 2011 quando o Antonio Cicero ligou para contar que havia feito um poema “diferente”. Diferente porque se parecia menos com ele mesmo e mais com Waly Salomão, seu grande amigo, um dos poetas cuja obra determinou, em minha adolescência, que eu deveria me expressar por meio da música. Cicero leu os versos pelo telefone e eu saquei que poderiam virar letra de música. Acabei não chegando a um resultado que me deixasse satisfeito naquela época e a ideia ficou na gaveta. O poema foi publicado em 2012, no livro Porventura. Em 2015, assisti a um show da Fafá de Belém no Sesc Pompeia, em São Paulo, e o momento que mais me impressionou foi “Dona de Castelo”, de Macalé e Waly. A canção parecia ter sido feita para ela. Quando fui selecionado pelo edital Pará do Natura, percebi que era o momento para reencontrar, de alguma maneira, a minha história. Fafá abriu caminhos para todo mundo que vem de lá e nossa amizade é o melhor pedaço de Belém que já pisei em São Paulo. Sonhei, por causa disso, trazê-la para perto desse disco. Imediatamente, voltei ao poema do Cicero inspirado por Waly e à emoção que Fafá me causou com “Dona de Castelo”. Além da felicidade de contar com a voz mais importante do Pará a serviço de uma canção minha, fico feliz por também ter promovido um encontro inédito: Cicero é um poeta apaixonado, Fafá é uma cantora apaixonada e os dois são as pessoas mais deliciosamente boêmias que eu conheço.
8. – “Ninguém (Niemand)” (Arthur Nogueira / Erick Monteiro Moraes / Rose Ausländer)
Musiquei a tradução do Erick para o poema de Rose Ausländer sem ter qualquer esperança de que a canção seria autorizada. Descobrimos o editor responsável pela obra na Europa, Sr. Helmut Braun, e entramos em contato por e-mail. Não houve resposta. Algumas semanas depois, obstinado, liguei para o telefone que encontrei no site da Rose-Ausländer-Gesellschaft. Foi então que descobri um detalhe importante: Herr Braun não fala inglês. Em um diálogo entre o alemão e o desespero, entendi ele dizer que autorizaria a canção e que enviaria o documento por e-mail. Dei a ótima notícia ao Erick, porém algumas semanas se passaram e o e-mail não chegou. Resolvi, então, apelar para meu professor, Lutz Gallmeister, pedindo que redigisse um e-mail em alemão, explicando detalhadamente em que consistia meu trabalho no Brasil e a importância de contar com o poema de Rose no disco. Eis que então Herr Braun, de forma muito simpática, autorizou a parceria e nos colocou em contato com a editora S. Fischer Verlag. Essa é a primeira vez que versos de Rose Ausländer são ouvidos em forma de música no Brasil.
IV.
O disco termina celebrando as coisas lindas, “muito mais que findas”, que se realizam plenamente na hora certa. É a força do presente que, como em um trecho de Proust ao qual faço sutil referência em “Pra nós”, confirma: “ver passar um rosto desejável que não conhecíamos abre-nos novas vidas que desejamos viver. Desaparecem na esquina da rua, mas esperamos revê-los, ficamos com a idéia de que há muito mais vidas a viver do que pensávamos, e isso dá mais valor à nossa pessoa.”
9. “A hora certa” (Arthur Nogueira / Antonio Cicero)
Assim como “Consegui”, Cicero leu “A hora certa” por telefone. Fiquei impactado com o poema e sua beleza dura. Ele repousou durante algum tempo em minha cabeceira até que, inesperadamente, inspirou a melodia que considero meio Fagner, meio Tom Waits. Depois da gravação no estúdio, não havia quem conseguisse parar de cantarolar o riff de guitarra criado pelo Allen.
10. “Pra nós” (Arthur Nogueira)
A maior referência para me ouvir em “Pra nós” são as baladas do Nick Drake.