Faixa a faixa | NIWA divide os caminhos até “Araponga” 

05/05/2023

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Revista NOIZE

Por: Revista NOIZE

Fotos: Sofia Colucci/ Divulgação

05/05/2023

“Quando escrevi ‘Urutau’, entendi que estava falando sobre a minha identidade e a forma como sou percebida no mundo”, conta NIWA sobre a faixa que deu o pontapé ao seu primeiro disco, “Araponga”, lançado nesta sexta-feira, 5/5. Do lado materno, a família é japonesa, e do lado paterno, é paraense com raízes indígenas, africanas e europeias. “Durante o processo de pesquisa, percebi que nenhum instrumento seria melhor para falar sobre a minha própria narrativa como mestiça do que a minha voz”, lembra a artista. 

A falta de representatividade desses grupos foi o que a levou a se debruçar em temas como identidade e ancestralidade: “Sendo uma pessoa mestiça, o processo de racialização é algo lento, ambíguo e o racismo é extremamente velado. Foi algo que só me senti à vontade e com alguma propriedade para falar sobre depois de 2020, com 24 anos de idade. De alguma forma, falei sobre isso em todas as músicas porque passei a enxergar a minha vida por essa lente”. 

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O álbum, que conta com 10 faixas, tem produção musical assinada pela artista, em parceria com João Antunes e Rodrigo Passos, além de Diego de Jesus nos arranjos. Além da carreira solo, a cantora e compositora integra o grupo Gole Seco, então Giu de Castro, Loreta Colucci e Nathalie Alvim, as parceiras da banda, também participam do registro. 

O nome do disco ajuda a sintetizar essas ideias de deslocamento e pertencimento porque a araponga é uma ave conhecida pelo seu canto potente. O nome vem do tupi, onde “ara” (ave) e “ponga” (soar), denominando assim uma ave sonora. Desde 2015, NIWA é professora de canto e pesquisadora musical, então esses atravessamentos a ajudaram a compor o cenário do álbum. “Quando comecei a estudar pedagogia vocal, percebi que as metodologias de ensino de música formais são baseadas em estéticas, que não levam em consideração a variedade de estilos musicais fora da Europa e Estados Unidos ou os históricos individuais”, aponta a cantora. 

Desde então, ela busca outras formas possíveis de aprendizado, caminhos possíveis para colocar as suas ideias no mundo. “Passei a explorar as variações timbrísticas, dinâmicas, texturas, ritmos e intenções no canto, ampliando as possibilidades criativas com esse complexo instrumento”, comenta NIWA. No faixa a faixa a seguir, a compositora divide o que há por trás de cada música do disco: 

“Urutau”: Essa foi a primeira canção que compus nesse formato – vozes e eletrônicos – e que deu origem ao disco. O meu processo criativo começa a fluir a partir da experimentação, então em um primeiro momento, há o som e as palavras, e depois eu organizo em ideias, conceitos e estéticas. Assim surgiram os vocalizes e o primeiro refrão: “tu não se reconhece, tu não me reconhece, tu não me conhece, tu não vê” – veio tudo junto, a letra, o ritmo e a melodia. Então percebi que gostaria de falar sobre os processos que estava vivendo. Ela surge como o meu primeiro impulso em direção a uma cuidadosa jornada de reconexão com as minhas raízes, sendo uma pessoa mestiça, desenvolvendo novas perspectivas, não a partir do olhar de uma sociedade branca e patriarcal, mas da pesquisa e do diálogo com os meus ancestrais e pessoas racializadas. Na sequência, exponho na letra: a indignação e negação do lugar que essa hegemonia me encaixa, a assertividade em relação ao que sou e desejo ser. 

Paisagem com Lua Cheia”: A composição começou com o beat, que me proporcionou uma sensação de imensidão muito grande. Neste lugar, encontrei um vazio e uma sensação de paz e alívio. Naquela época, havia acabado de conhecer um poema da poeta polonesa Wislawa Szymborska, que se chama “Paisagem com Grão de Areia”, e daí surgiu o primeiro vocalize, que é uma experimentação rítmica e melódica da palavra “areia”. O poema fala sobre como as coisas são indefinidas quando não damos nomes a elas. O nome das coisas é um reflexo da maneira como quem nomeia vê o mundo, seus ideais, suas experiências e sua forma de se comunicar. Encontrei muitos paralelos entre isso e a questão do “pardo” como linguagem utilizada para definir pessoas não brancas, e uma necessidade de pontuar melhor esses contornos. Historicamente, o termo é usado para distinguir pessoas não brancas, como se houvessem pessoas brancas “puras”, além de não levar em consideração que, nessa classificação, inclui-se pessoas pretas, indígenas e mestiças, agindo na negação da identidade desses grupos. 

“Tenho Pressa”: Essa foi uma das últimas canções compostas para esse trabalho. Criei ela na intenção de falar sobre a sensação de descobrir que estou velha demais para descobrir certas coisas, mas quis falar isso de uma forma leve e bem-humorada. Contraditoriamente, trago quase uma perspectiva jovial sobre essas descobertas, como quem tem muita curiosidade, pressa e vontade de entender.

“A Justiça de Tupã”: Tinha vontade de criar uma música dançante e impactante pra esse trabalho, sem deixar de endereçar os assuntos presentes nas outras músicas. Então imaginei uma cena em que as pessoas estariam dançando e de repente seriam arrebatadas pelas forças da natureza: um carnaval e uma chuva torrencial, com direito a rios canalizados e soterrados escapando pelos bueiros da cidade, e a possibilidade de um renascimento. Trouxe isso na letra e então resolvi trazer isso na música também. Pro início imaginei uma batida dançante, um ritmo envolvente que segue até o fim. E no meio, a intervenção da maravilhosa voz da cantora indígena Djuena Tikuna cantando sobre a origem do seu povo, que nasceu do rio Eware. Minha ideia era criar uma canção que levasse a voz de uma cantora indígena pra uma festa no meio da cidade de São Paulo.

“Quente”: A faixa surgiu com a ideia de criar um arranjo 100% vocal, sem a intervenção de nenhum outro instrumento, mas que dialogasse com o resto do álbum. Naturalmente, resolvi convidar minhas colegas do Gole Seco, grupo vocal acapella do qual faço parte. Então veio a necessidade de criar a batida toda com beatbox, e logo pensei no Diego de Jesus, que além de beatboxer e baterista, é um barítono de voz poderosa. Quando escrevi essa letra, estava com muita raiva e percebi que não explorava tanto essa faceta da minha personalidade. Sou do tipo que reprime esses sentimentos, e acho que isso tem a ver com eu ser mulher. Nessa época, estávamos vivendo sobre a ditadura do inominável e todo dia ouvia notícias terríveis sobre queimadas na Amazônia. Quando senti raiva, pensei em fogo, e a partir dessa sensação do calor do fogo, afluiu toda letra da canção. Falei um pouco do potencial destrutivo do fogo (utilizado pelo inominável). mas também do meu fogo como energia vital, mais poderosa que o resto.

“Serra”: Serra é a única canção no disco em que “abaixo a guarda” rs e lembro dos momentos em que restaurei as minhas esperanças na humanidade. Eu narro um encontro que se inicia a partir do contato com a natureza, então compreendo que o ser humano também faz parte dela. Tive encontros muito felizes fora de São Paulo, e a partir desses encontros, comecei a refletir sobre ser parte de algo maior, algo que a cidade sufoca em meio aos prédios e jornadas de trabalho. Essa música é como uma redenção do ser humano com a natureza. 

“A Pele”: No passado, eu tratei muito sobre a questão da mulher. Em 2018, eu estava começando a tomar consciência sobre os efeitos do machismo e a maneira como ele atuava na minha vida, mas a minha forma de falar sobre isso era um pouco mais “suave”, como se eu estivesse clamando meu “feminino”. Hoje, com mais maturidade e consciência, procuro ir além e questionar o que seria esse “feminino”, incluindo perspectivas que vão além da feminilidade sensível, mas também pela sensualidade, a ironia, a acidez e a raiva. Essa é uma música de duplo sentido, que traz a ideia da sensualidade, ainda que abordando o tema da não compreensão e do não pertencimento. Criei ela a partir de uma frase que ouvi do Ailton Krenak: “na grande noite colonial todos os gatos são pardos”.

“Vai se Tratar”: Aqui, sigo na ideia de abordar temas não tão acessados no meu dia a dia, como a raiva. A revolta aqui é especificamente com os homens. Como mulher somos condicionadas a estar constantemente nos adaptando a situações desagradáveis, por conta da possível ameaça de sermos desacreditadas e desmentidas se perdermos o controle. 

“Mulessa”: Essa foi a última canção que escrevi pro meu projeto anterior, “Carcaju”. Ela representa o caminho de transição no meu trabalho. Mulessa é o encontro perfeito entre o que eu fazia antes e o que comecei a fazer agora. Também fala de outras facetas do feminino para além do que é atribuído às mulheres. Foi a época em que comecei a explorar a minha voz em outros lugares, que não necessariamente o que é considerado mais “belo”.

“Aoi Me No Nyngio”: Essa é uma canção que a minha avó cantava pra mim quando eu era criança. Minha memória musical é muito viva, lembro de tudo que ela cantava até hoje. Lembro, inclusive, da sensação, e foi a partir dessa sensação que criei o arranjo pra essa música. Então imaginei uma coisa super ritualística e profunda, quando na verdade a canção era bem infantil e alegre (risos), porque ela falava sobre o encontro de uma boneca com uma menina.

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05/05/2023

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