Mateus Fazeno Rock divide o processo de criação de “Jesus Ñ Voltará”

10/05/2023

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Revista NOIZE

Por: Revista NOIZE

Fotos: Divulgação/ Jorge Silvestre e Nay Oliveira

10/05/2023

Em seu segundo disco, “Jesus Ñ Voltará”, lançado no final de abril, Mateus Fazeno Rock une diferentes estilos musicais para criar o rock de favela que, segundo o artista, “busca ser um contraponto às formas hegemônicas de criar música”. Em suas referências, há pitadas de grunge, punk, funk, rap, reggae, dub e R&B.

Nascido e criado em Sapiranga, bairro da periferia de Fortaleza, o compositor canta o dia a dia do seu território em letras que discutem as diferentes fases da existência: “O álbum é ligado por canções que falam do começo e do fim da vida, só que dentro de uma perspectiva da vida na favela e como são os desafios para estar vivo, continuar e gostar de estar vivo”. 

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As 13 faixas tem produção musical de Mateus Fazeno Rock, ao lado de Agê, Caiô e Glhrmee, e contam com feats de Jup do Bairro, Brisa Flow, Big Léo, Má Dame e Mumutante. “A ideia de trazê-los é engrandecer a conversa que o álbum propõe”, explica o músico. O novo trabalho dá continuidade a conversa iniciada em “Rolê nas Ruínas”, seu debut, lançado em abril de 2020. 

Na sua constelação de ídolos musicais, Djavan e Kurt Cobain ocupam a primeira posição em harmonia. Como um jovem preto roqueiro, que cresceu tocando violão e escutando Nirvana e Silverchair na casa do vizinho, ele não se reconhecia no grunge, cena formada em sua maioria por pessoas brancas. Hoje usa a linguagem punk para comunicar todos esses atravessamentos. No faixa a faixa a seguir, o artista divide o que há por trás de cada música de “Jesus Ñ Voltará”: 

“Jesus Ñ Voltará” feat. Jup do Bairro: Essa música está relacionada com os ciclos que permeiam o disco. Ela fala sobre o começo e o fim da vida, só que dentro de uma perspectiva na favela, e também fala dos desafios que damos conta para continuarmos vivos. Gostar de estar vivo, né? Também tem a ver com o que falo na letra: “Deixe quieto, ma/ Deixa assim mermo/ Deixa ele partir/ Ele vai se entregar/Já se entregou”. Eu faço uma metáfora sobre o Jesus que não fugiu. Jesus foi crucificado e morto. Tem a história de que a crucificação de Jesus era a vontade de Deus, por isso ele deixou. Ele não tentou fugir dos soldados romanos. Eu faço o paralelo com as pessoas que se entregam, que se deixam autodestruir através do suicídio, do envolvimento, do alcoolismo e de todas as coisas que podem levar para a autodestruição. “Deixa ele partir/ Ele vai se entregar/ Já se entregou e tu não tem como compreender/ A autodestruição começa quando descobrimos quem somos/ E principalmente quem somos no aonde estamos”. É uma música sobre as partidas. Por isso “Jesus Ñ Voltará”. É uma saudade gigante, que podemos traduzir como o próprio banzo, que é um sentimento veiculado nas pessoas em diáspora. Todo mundo tem banzo. Aquilo que a gente leva para a terapia é o nosso banzo, basicamente. Então, esse disco é um completo estado de banzo. Mais uma vez, chamo a Jup do Bairro, uma amiga, nós temos perspectivas, histórias e experiências em comum. 

“Pode Ser Easy” feat. Mumutante: É, talvez, a música mais esperançosa e leve do álbum inteiro. A letra fala sobre uma lembrança boa, as melhores partes dos dias bons, das coisas do cotidiano e da leveza. Diz que é possível viver, mesmo nesse contexto absurdo e louco. Fala também sobre sair da zona de conforto para buscar uma vida melhor. É sonhar com os pés no chão. Mesmo nesse contexto, eu quero ser luz, iluminar, quero ir e voltar tranquilamente. Quero poder sonhar e quero que seja fácil. Quero que seja simples. Quero que isso seja palpável.

“Pose de Malandro/ Me Querem Morto” feat. Big Léo: Uma música sobre masculinidades negras. Por isso, falo sobre “sustentar ou não a pose de malandro”, que é, na verdade, um arquétipo que a sociedade. É o “vetim”, é o “cria”. É esse lugar ambíguo, de empoderamento e, ao mesmo tempo, de vulnerabilidade que a gente está inserido – independente de querer ou não. Ela está divida em duas partes, sendo que a última parte funciona como uma resposta à reflexão lançada na primeira parte, digamos assim. Fala também sobre questões com essa pose. E tem o Big Léo, todas as pessoas envolvidas, estão aí para engrandecer a conversa. É uma forma de trazer mais um ponto de vista. 

“Nome de Anjo”: É uma música bem direta. Ela conta uma história minha sobre um amigo de infância, que convivi durante muitos anos. A vida foi acontecendo, a gente seguiu caminhos diferentes, e ele passou por vários maus bocados, questões com movimentos, masculinidades, de ter que fazer isso ou aquilo. Em 2019, durante uma invasão entre as facções, que ocorreu lá no bairro, na Sapiranga, ele foi uma das vítimas assassinadas. A música é sobre isso. 

“Melô de Aparecida”: Envolve as questões de masculinidade negra, ainda mais na infância, quando se é lido como menino, e as exigências que isso carrega. Basta você estar inserido. Você está na favela, você é uma criança, então você já está inserido, você já é o contexto das tretas e tudo que envolve a favela. Por isso que eu falo: “Se o corpo tu põe de fora/O rosto eles já decora/É tanta vida indo embora”. E o “corto de fora” pode ter dois sentidos: tanto é fora de casa, no sentido das, as pessoas te conhecerem e você estar na rua junto com as outras pivetadas. Quanto pôr o corpo fora, que é quando você não quer fazer alguma coisa proposta, como fugir de uma briga ou de uma alguma situação.  Também por essa exigência de ser homem, mesmo sendo uma criança, tem toda a performatividade, da força, do aguerrido, da nossa masculinidade negra da favela. Pôr o corpo de fora também te marca. E é isso, vou questionando várias coisas, e contando histórias, que se misturam com essa experiência de estar na favela e de ser menino. Também tem as questões de ter medo: “Qual é seu medo?”. O medo de cada um. O véi do saco. A representação do medo de  cada um. 

“Pôr do Sol Marrom”: É, talvez, a música mais suave do disco, apesar da densidade dela. Escrevi andando de bicicleta, compus ela de cabeça, voltando da Barra do Ceará, depois de ver um pôr do sol com a Má Dame. Para mim, o meninozinho sou eu, mas, acredito que serve pra geral que anda de bicicleta. Quando fiz essa faixa, estava pensando na imagem da praia repleta de gente preta e o sol se pondo. Na verdade, esse pôr do sol marrom era um monte de gente negra junta, um monte de gente marrom junta, reunida na beira de uma praia vendo o pôr do sol ou voltando pra casa, pegando ônibus. Esse é o cenário da música. É algo simples sobre a existência e a sensação de estar vivo. 

“Feito Um Porco Indo Pro Abata”: Essa faixa é uma carta sendo lida – e é uma carta que escrevi para uma amiga. Ela fala sobre todas essas questões que nós passamos, que nossos familiares estão passando, pessoas ao nosso redor estão passando. Enfim, quem vive na favela, quem tem famílias pobres. Aliás, todas as famílias têm suas questões. Mas, a gente fica muito afetado, quando convive com alguém lutando contra vícios. Além das outras violências, que tornam as pessoas depressivas, pela falta de direitos, oportunidades e muitas outras coisas. 

“Indigno Love” feat. Brisa Flow: É uma música que escrevi sozinho e só depois a Brisa veio chegar junto. É sobre o próprio ato de fazer música, mas é uma letra grande e complexa. Ela fala sobre a minha existência negra no Ceará fazendo música. E aí chamo a Brisa, que considero também uma artista do corre, vivendo em São Paulo,  lutando. A ideia de trazê-la é engrandecer a conversa que o álbum propõe. 

“Da Febre”: É uma metáfora, onde “Da febre” representa o estado febril, de cansaço, mas também uma metáfora sobre arder de paixão. A febre da paixão e da vontade de realizar o seu sonho. É uma música que fala de cansaço. Por isso que “ainda que mais tarde eu volte a adoecer”, tipo, pode ser que eu volte a acreditar, sonhar de novo, que essa febre e paixão me consuma de novo, e eu volte a tentar, mas agora não vai rolar porque estou cansado.  Eu escrevi essa música em 2017, quando estava trabalhando numa lanchonete lá perto de casa e acho que nesse contexto eu eu estava um pouco desmotivado de tudo. Sem vontades, meio desacreditado e meio dormente. Eu convivia com outras pessoas parecidas comigo nesse sentido. Cada um com seus sonhos, tentando não ficar parado e o que me inspirou foram essas trocas e essa sensação, que eu também partilhava. 

“Só Suor e Lágrima” feat. Má Dame: Considero essa faixa complexa. Ela fala das rotinas de exploração, da nossa vida, da nossa força vital e do nosso tempo. Nessa época, eu andava muito de busão, uma das minhas fontes de renda era tocar músicas nos ônibus de Fortaleza, recitando poesia, então a letra fala dessa rotina de trabalho. A rotina do busão pra mim estava muito presente também nas músicas e a Má Dame chegou contextualizando isso. Enfim, é sobre acordar e querer que esse ano seja diferente, questionar essa branquitude, que fica validando se a dor do outro é válida ou não, se as questões do outro, da população preta, a população favelada e da população indígena são válidas ou não. Fiz essa música há uns, mas parece que funciona até agora, nada mudou muito. 

“Rezo”: É um interlúdio, então como é pequena e repetitiva, também estou raciocinando ela como uma oração. É bem direta. Questiona o envolvimento da pivetada em grupos das facções. 

“Vontade Nego”: É uma faixa que, como todo o álbum, conta histórias. O disco todo sou eu contando para alguém as histórias lá das áreas. Nessa faixa, eu estou contextualizando umas paradas que aconteceram, são histórias reais, são meus colegas, da adolescência, que se envolveram, fizeram alguma coisa, foram presos ou passaram perrengue. Vou contextualizando essas lembranças no percurso que eu fazia para ir trabalhar todos os dias. Sempre levava baca aleatoriamente da polícia nesse caminho, cheguei a apanhar, mesmo estando sem nada. E foi mais de uma vez que aconteceu comigo e amigos também. No meio desse lance de pensar, jogo umas questões existenciais também, pensar alguma possibilidade de vida, que eu pudesse ser algo além de um corpo político. Só ser um bicho, algo natural, que não exige tanto da minha existência, as tretas, as dores e tudo mais. É um grande devaneio existencial sobre a vida enquanto matéria orgânica, mais do que um ser político inserido na sociedade.

“Da Noite”:  A música lembra uma época em que eu morava na Sapiranga, bairro da periferia de Fortaleza, na casa da minha mãe, que ficava atrás de vários campos de futebol. Os favelados de Fortaleza todinha iam para os forrós na Sapiranga. Uma época chegou o brega funk e virou um baile, virou o fluxo. A música é sobre esses movimentos, sobre esses cenários, a subida na ruazinha que leva até a entrada do campo. O tema central é a vida da gente, é quase como uma oração, um desejo que o lazer seja massa, que a gente aproveite a vida, mas sempre atento porque acontecem várias coisas que não dependem de nós. Eu também falo de intuição, memórias, mistérios, feitiço e oração. 

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10/05/2023

Revista NOIZE

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