Esta matéria foi publicada originalmente na edição 114 da revista NOIZE, lançada com o vinil de “Tim Maia Disco Club” (1978), do Tim Maia, em 2021.
Basta digitar “Chic Show” na barra de pesquisa do Facebook para encontrar entre os resultados ao menos cinco grupos em referência à equipe de som paulistana. “Família Chic Show”, por exemplo, ostenta 36,1 mil participantes, enquanto “Bailes da Chic Show”, 21,7 mil. Fazendo menção à época dos bailes black em São Paulo e sua região metropolitana, esses espaços virtuais acabam por reunir um público nostálgico que compartilha panfletos de eventos promovidos há mais de 30, 40, 50 anos, vídeos de canções românticas do soul e R&B estadunidenses, e as memórias orgulhosas de quem faz questão de dizer que frequentou os bailes da Chic Show em seu auge.
Em julho deste ano, a nova geração terá a chance de conferir um baile em primeira mão: no sábado, 13/7, a produtora levará um line-up de peso ao Allianz Parque, em São Paulo. Nomes gringos e nacionais estão escalados – Lauryn Hill, YG Marley, Wyclef Jean, Jimmy “Bo” Horne, Mano Brown, Criolo, Rael, Sandra de Sá e os DJs Luciano, Grandmaster Ney e Preto Faria.
Existe boogie em SP
Os bailes black e soul no Brasil se unem ao redor do conjunto de valores formados pela exaltação da cultura preta e do povo preto sob influência direta do que borbulhava nos Estados Unidos na curva da década de 60 para os 70. Um caldeirão composto pelo movimento black power, os Panteras Negras, o soul, o funk, o R&B e até mesmo os ecos da luta de países africanos por independência que reverberavam através do intercâmbio entre ativistas negros dos continentes de África e América.
Entretanto, em cada novo território brasileiro em que chegavam, tais ventos moldavam as manifestações culturais locais de forma diferente. No estado de São Paulo, por exemplo, o termo baile black se origina a partir das equipes de som como a Chic Show.
A marca, que se tornaria emblemática, tem como embrião a Discoteca do Luizão, fenômeno que transformou os rumos de Luiz Alberto da Silva para sempre. Nascido no bairro paulistano da Lapa e criado na Vila Madalena, ele, ainda na juventude, inicia sua jornada como colecionador de discos.
Pela qualidade de sua coleção e por possuir um bom equipamento de som, Luizão começou a receber convites para tocar em diversos eventos, de forma ainda informal: amigos, parentes e conhecidos que queriam som no quintal, em encontros de família, piqueniques e festas, como ele nos conta em entrevista. Os convites se expandiram para bailes de bairros como Pinheiros, Vila Madalena, Butantã, Bonfiglioli, Ferreira e Vila Sônia. Com o aumento da demanda, Luizão decide que é hora de dar um passo a mais.
Assim é criada a equipe de som Chic Show, no ano de 1968, conforme registra a dissertação de mestrado Chic Show e Zimbabwe e A Construção de Identidade nos Bailes Black Paulistanos (2000), de João Batista de Jesus Félix.
A escolha por um nome que soasse pomposo foi intencional e por um motivo nada banal: o de conectar o status de elite à população negra. Em específico, a uma geração negra “com novos anseios”, como Luizão classifica.
A partir daí, os bailes organizados sob o nome da Chic Show passaram acontecer, de forma improvisada, no quintal do Bica, um local aberto, equipado por uma lona, e localizado no bairro Pinheiros, conforme atesta o trabalho de Félix. Ele segue nos indicando a cronologia, informando que ainda em 68 os bailes passam a ser sediados aos domingos no salão da cooperativa Carvão, situada no mesmo bairro.
O ano de 71, entretanto, marca uma virada de chave; primeiro, com a realização dos bailes no salão São Paulo Chic, pertencente à Escola de Samba Camisa Verde. Segundo, com a ampliação das atividades da Chic Show a outros locais – entre eles, clubes de elite – como Mansão Azul no Jabaquara, Clube Homs e Clube Alepo no Jardins, entre outros.
Entretanto, Luizão tinha ambições ainda maiores para a Chic Show e para o lazer da população negra. É nessa conta de adição que surge o salão de festas da Sociedade Esportiva Palmeiras, em 1975. “Era uma questão [vinda] da necessidade de fazer o negro dançar nos grandes espaços da cidade, lugares que eram praticamente proibidos para negros, entendeu?”, demanda.
Propor uma parceria com um dos clubes tradicionais da elite paulistana exigiu confiança, e logo se firmou em resultados expressivos. Os primeiros contatos se deram através de uma conexão estratégica: o Palmeiras “tinha um diretor que era juíz, e eu tinha um amigo que era do Juizado de Menores”, detalhe Luizão. “Convoquei essa pessoa e ela me colocou diante desse diretor. Com muita dificuldade, a gente conseguiu entrar no Palmeiras”, remonta.
De acordo com o já referido trabalho de Félix, o pedido de aluguel foi aprovado pela diretoria da Sociedade Esportiva Palmeiras na seguinte condição: se o público total não atingisse os 10 mil, o espaço não seria mais alugado para esse tipo de atividade.
O baile de estreia da Chic Show no espaço alviverde teve como atração nada mais, nada menos que Jorge Ben Jor e reuniu 16 mil pessoas. O sucesso selou um contrato anual entre a equipe de Luizão e diretoria do Palmeiras, dando início à fase mais icônica dos bailes black da Chic Show.
People Get Up And Drive Your Funky Soul
O lugar de destaque da Chic entre os outros bailes black de SP na época se dá tanto pela prestigiosa nova sede quanto pela promoção de shows de peso. No salão localizado embaixo da arquibancada do antigo Parque Antártica (estádio do Palmeiras, antes de se tornar Allianz Parque), localizado no nobre bairro de Perdizes, cabiam de 15 a 20 mil pessoas, segundo Luizão.
Sucedendo a Ben Jor, o artista da vez foi Tim Maia. Na ocasião, Luizão relata que houve a derrubada de um muro do espaço palmeirense. “Era muita gente, o que tinha na rua cabia duas vezes o que tinha dentro do ginásio”, estipula. Depois dele, nomes como Gilberto Gil, Djavan, Sandra de Sá e Carlos Dafé marcaram presença em uma sequência dedicada à música nacional.
“Bombava, bombava! Cerca de 20 mil pessoas em cada baile do Palmeiras, fora os que ficavam do lado de fora porque não conseguiam entrar”, relembra de modo enfático o dançarino e ícone do Hip Hop Nelson Triunfo, que conta à NOIZE ter começado a frequentar os bailes black da Chic Show por volta de 1977.
Nessa fase, a Chic e o Palmeiras já celebravam uma parceria de franca ascensão. “Se você fosse ter um baile em São Paulo no dia que tivesse o baile da Chic Show no Palmeiras, era melhor que não fizesse, porque não iria ninguém”, diz Triunfo. Uma grande festa que virou tradição e ponto de encontro de diversas São Paulo existentes na mesma capital.
É Nelson quem pontua: “Era como se fosse uma festa de intercâmbio da cidade. Você não conhecia só as pessoas do seu bairro, você conhecia novas amizades e encontrava pessoas da Zona Leste, Zona Sul, Zona Norte e da Zona Oeste”, explica.
O maior balanço do mundo aterrissa em SP
“O James Brown era um sonho americano dos negros brasileiros. Eles sonhavam em vê-lo no palco”, cunha Luizão. O Mr. Dynamite era a principal figura da potência do soul mundo afora. Sua estreia no Brasil aconteceu em 1973, mas é em sua segunda passagem, no ano de 1978, que ele marca presença como a primeira atração internacional do baile da Chic Show. Posteriormente, viriam Gloria Gaynor, Earth Wind & Fire, Jimmy Bo Home, e mais.
Os panfletos anunciavam “James Brown – o maior balanço do mundo”, ressaltando a oportunidade imperdível com os dizeres “única apresentação para os blacks paulistas”. Sobre os bastidores da façanha de trazer um dos maiores nomes da música internacional para o palco da Chic Show, Luizão permanece reservado e breve: “Isso tinha que ser realizado, então, batalhamos para poder trazê-lo”.
Já Nelson Triunfo recorda a busca do ídolo no aeroporto: “Na época só existia o Aeroporto de Congonhas em São Paulo, e fomos lá recebê-lo. A gente tava lá vendo o cara pela primeira vez! [Foi aí] que ganhei aquela capa que aparece em uma foto minha durante o show e que ficou famosa”, destaca.
À noite, o espetáculo foi ganhando tons de um evento ainda mais memorável. Luizão evoca:
– O Palmeiras teve uma superlotação. Grande acontecimento! Os jovens negros vindo de todo o Brasil para se reunir, pessoal de Minas Gerais, Porto Alegre, Rio de Janeiro…, pessoal até de outros países da América Latina vieram para ver o James Brown. Muitas pessoas dentro do Palmeiras, muitas não conseguiam se mexer no espaço. Uma loucura muito grande porque o James Brown com a banda dele tinha uma coisa, era o ápice de tudo. Vibração de gol, loucura!
Nelson também retoma algumas das cenas que nos ajudam a mensurar o frenesi. “Foi louco porque lotou, lotou! Eu vi gente chegando até pelas telhas – não sei como eles chegaram até lá em cima, [outros] quebraram o portão. Muita gente não conseguia mais entrar no salão, então, ficavam ao redor do ginásio sentindo o som ao vivo, que era muito alto e pesado”, conta.
Em entrevista concedida à Gazeta do Esporte, publicada em 2020, Luizão diz terem entrado 23 mil pessoas no salão para ver James Brown, apesar do espaço ter como lotação máxima um público de 12 mil. Ele acrescenta, ainda, a impossibilidade de “levantar o braço” pela quantidade de gente – foi preciso “colocar o pessoal todo pra dentro. Foi a única maneira de controlar a galera”, justifica.
Nelson Triunfo já era uma estrela à parte na cena dos bailes black de São Paulo. Na noite do show, se apresentaria no palco. Ele compartilha sua visão momentos antes de protagonizar um dos momentos mais marcantes da noite e eternizado em fotografia.
– Eu fui para o baile com a capa que James Brown me deu. Não sei que porra deu na cabeça dos caras que estavam comigo, mas, no meio daquela multidão, eles falaram pra mim ‘endurece as pernas que nós vamos te levantar!’. Eles começaram a me levantar, e eu endureci as pernas; os caras me puseram por cima do ombro deles, tinham várias mãos me pegando, e eu fiquei em pé numa boa por cima da multidão. Foi uma loucura aquilo! Fico pensando qual visão o James Brown teve…
A foto se tornou uma das mais simbólicas quando assunto é baile black brasileiro. O que nem todo mundo sabe é que depois de tirar a capa para uma outra apresentação no baile e guardá-la em sua mochila, dentro do camarim, ela foi perdida/furtada. “Quando fui [mexer] na mochila, ela levantou muito fácil”, narra, “quando fui olhar, ela realmente estava vazia”, diz já conformado.
Chic Show, para além do Palmeiras
A conquista da ocupação de um espaço de elite não esteve imune a questionamentos. Luizão atesta a ocorrência de um certo choque com alguns associados do Palmeiras, que compartilhavam o uso de um espaço com um baile de veia negra e periférica.
Em matéria publicada no blog Verdão Web (ligado ao Palmeiras), o fundador da Chic Show dá exemplos do que se colocava em xeque: “pô, não pode alugar para a negrada, o pessoal é da raça”, alegavam. Mas, segundo ele, “os diretores [do clube] sempre correram junto conosco”, conforme registrado no blog.
Fato é que a monografia de Félix, baseada em depoimento de Luiz, indica que as (não especificadas) dificuldades trazidas pela organização dos bailes junto ao Palmeiras marcam a década seguinte, impulsionando uma desconexão entre a Chic Show e o alviverde.
As atividades foram perdendo fôlego e sendo realizadas de forma mais espaçada, pulverizando-se para outras partes da cidade, inclusive para as zonas periféricas, de onde haviam surgido. Em 81, a Equipe Chic Show ruma para uma sede própria – uma oficina antiga, próxima à Camisa Verde Branco, no bairro da Barra Funda. Após as primeiras reformas, recebe o nome de Clube da Cidade e é inaugurado em 82.
A consolidação nas periferias é frutífera. Se no Rio de Janeiro o movimento de bailes soul formou as bases para o desenvolvimento do funk, em São Paulo prosperaram o rap e o pagode. Coletâneas, concursos e bailes – inclusive os organizados pela Chic Show – cruzaram e contribuíram para a trajetória de nomes como Racionais MC’s, Rappin’ Hood, SampaCrew e Péricles.
A marca Chic Show se mantém há 50 anos, prosperando, ramificando e se reinventando sob o comando de Luizão. “Hoje ela não é mais uma equipe de som, ela é uma empresa de eventos”, distingue o fundador. Ele detalha: “Temos trabalhado com artistas internacionais de outras linhas e também em outras áreas; a própria rádio Chic Show, os programas em outras rádios. A Chic Show continua ativa”, pontua.
Os bailes black paulistanos contribuíram para o fortalecimento da identidade cultural negra, oferecendo um espaço feito por e para a comunidade negra. As dimensões desse legado impulsionam discussões no âmbito da pesquisa acadêmica, estão expressas na influência artística do rap e do pagode, e merecem destaque. As noites da Chic Show deixaram uma marca na Sociedade Esportiva Palmeiras que nenhuma reforma é capaz de destruir.
Serviço Festival Chic Show
Data: sábado, 13 de julho de 2024
Endereço: Allianz Parque – Avenida Francisco Matarazzo, 1705 | R. Palestra Itália, 200
Horário: 13h45 às 23h15
Ingressos: https://ticketson.com.br/
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