Gal Costa, Caetano Veloso e a história do Auto-Tune no Brasil

26/09/2024

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GG Albuquerque

Por: GG Albuquerque

Fotos: Divulgação/ Roncca e Carol Siqueira

26/09/2024

O rapper norte-americano T-Pain estava sentado tranquilo em um avião viajando à cerimônia do BET Awards de 2013 quando uma aeromoça chamou sua atenção. Era Usher, cantor de R&B e amigo pessoal do rapper, que o chamava. T-Pain chegou com aquela conversa fiada inicial: “E aí, tudo bem? Como você tá?”. Mas Usher estava sério e preocupado, e então lhe disse: “Cara, você meio que estragou a música. Você estragou a música para os cantores de verdade”.

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Estrela de hits como “Buy U a Drank” (2007), T-Pain foi um divisor de águas na difusão do Auto-Tune como estilo vocal no rap e na música pop. Amado e (muito) odiado, o seu modo de usar e abusar do software — um afinador de voz digital — popularizou a ferramenta e provocou uma enorme controvérsia no cenário musical. A CNN chegou a descrevê-la como “a invenção que mudou a música para sempre”, enquanto artistas como Jay-Z revoltaram-se, o rapper chegou a pedir seu fim em “Death of Auto-Tune”, faixa de 2009.

O que era um mero afinador logo passou a ser cada vez mais explorado a partir de diversas abordagens criativas. O programa, que a princípio foi pensado para corrigir erros, ganhou um outro sentido: um recurso expressivo, uma sonoridade única, capaz de dar vazão a novas identidades sônicas.

Curiosamente, as sementes que dariam no Auto-Tune cresceram bem distante da indústria fonográfica. O inventor do software é o norte-americano Andy Hildebrand, engenheiro elétrico que trabalhava na Exxon Mobil, uma das maiores companhias de extração de petróleo do mundo.  O cientista era especialista em processamento de dados sísmicos, que são empregados para localizar petróleo no solo. Após explodir dinamite no solo, ele captava as reverberações a partir de um geofone. “Matematicamente, é como sair na chuva durante uma tempestade de raios, fechar os olhos e, através do som ecoado pelo trovão, determinar o formato das nuvens”, contou ele em depoimento à série documental This Is Pop (2021).

Certo dia, uma amiga pediu a Hildebrand, brincando, que ele criasse uma máquina que a faria cantar de forma afinada. Ele então percebeu que a lógica do seu trabalho com sistemas geológicos poderia ser aplicada para desenvolver esse programa e montou várias equações e problemas matemáticos para torná-lo possível em termos de computação. Quatro meses depois, o Auto-Tune estava pronto.

A princípio, o Auto-Tune era uma ferramenta para reparar a desafinação, e o impacto foi praticamente imediato. Se, antes, os artistas ficavam uma semana no estúdio para gravar os vocais, o novo dispositivo reduziu esse tempo para metade de um dia. Hildebrand costuma contar um caso curioso: “Um produtor muito famoso me abordou e disse: ‘Andy, você mudou a minha vida. Meu trabalho era encontrar pessoas que cantavam bem e agora eu só tenho que achar pessoas bonitas”.

Por um bom tempo o uso do Auto-Tune foi mantido na surdina, evitando levantar polêmicas sobre a competência e o talento dos cantores. Mas começaram a surgir usos inesperados da ferramenta, que não correspondiam às intenções de seu criador. Ao colocar o ajuste do programa no 0, a voz fazia mudanças de ritmos instantâneas, dando um efeito um tanto robótico e alienígena à voz. Foi o caso de “Believe”, hit arrasa-quarteirões de Cher, que escancarou ao mundo esse som autotunado — seguido depois por “One More Time”, do duo francês Daft Punk, os sucessos do próprio T-Pain e o aclamado álbum 808 & Heartbreak (2008), de Kanye West

Historicamente, a voz esteve para a música assim como a rostidade esteve para o cinema e a fotografia na era da reprodução técnica — uma espécie de último aceno da aura. O Auto-Tune representou uma fissura nessa auralidade ao manipular a voz, que era vista como a conexão mais pura, humana e íntima, a última fronteira entre o cantor e o ouvinte. Por volta de 2009, vivia-se uma relação de amor e ódio com o software. Embora cada vez mais usado no dia a dia dos estúdios em diversos gêneros musicais, o Auto-Tune era criticado por destruir uma certa autenticidade artística. 

“Nos últimos 10 anos, vimos muitos bons músicos sendo afetados por essa nova manipulação digital da voz humana, e sentimos que já basta”, declarou Ben Gibbard, frontman da banda Death Cab For Cutie, ao jornal inglês The Guardian, em 2009. Naquele ano, ele apareceu ao Grammy com um adesivo manifestando sua contrariedade ao Auto-Tune. “A nota que não está tão perfeitamente afinada dá à gravação alma e caráter real. É como as pessoas realmente cantam”, disse.

Os pixels da voz

No Brasil, a vida-música de Gal Costa exprimiu bem essas contradições diante da nova tecnologia. Em entrevista à Veja São Paulo, em 2011, a Fatal criticava: “Hoje em dia, existem esses recursos… Até quem não tem tanto talento nem é muito afinado pode cantar. O Auto-Tune pode resolver problemas, mas isso não é genial nem ideal. Infelizmente, ele existe”. Ao mesmo tempo em que exibia falas conservadoras, em seu álbum Recanto (2011), Gal explorava diversas possibilidades eletrônicas e digitais para a voz, chegando a gravar a faixa “Autotune Autoerótico”, na qual fazia um improviso modulado pelo software homônimo e a sua voz se tornava uma beleza escura e pixelada.

Poucos meses antes do lançamento de Recanto, Caetano Veloso, que produziu e compôs o álbum, refletia sobre o afinador de voz em sua coluna no jornal O Globo. “A ideia é considerar o advento do Auto-Tune como algo semelhante ao advento do microfone elétrico”, escreveu ele. Comentando sobre Kanye West, T-Pain, Cher e James Blake, ele afirma: “Percebemos que um uso artístico, propriamente musical, pode ser atingido nas relações entre o modo de cantar e o manuseio dos efeitos que essas ferramentas oferecem. Os critérios de julgamento da capacidade de cantar mudam com as novas tecnologias. Como mudaram quando microfones sensíveis deixaram para trás a necessidade de potência vocal”.

Depois de todos esses anos, a visão de Caetano se revelou certeira. O uso corretivo do Auto-Tune foi sendo deixado de lado cada vez mais — que ficou sob o cargo de outro software, o Melodyne. Em entrevista à Folha de São Paulo, o produtor Rodrigo Gorky observou: “Hoje, é melhor pensar no Auto-Tune como o filtro do Instagram, enquanto o Melodyne é o Photoshop. O Auto-Tune é um efeito, como distorção, fuzz ou delay”, disse o responsável por hits de Pabblo Vittar, Banda Uó e Bonde do Rolê.

Foi no trap que o Auto-Tune assumiu um papel principal como recurso expressivo. As experimentações com o software colocaram as vozes dos MCs num entrelugar entre o orgânico e o robótico, envoltas em arranjos atmosféricos e texturais, repletos de espaços vazios e reverberações que arquitetam um ambiente de dubiedade às voz, que soam mais fluidas e deslizantes. 

É difícil afirmar quem foi o pioneiro nos trabalhos com o Auto-Tune no rap brasileiro. Muitos apontam C4bal, Recayd Mob e Raffa Moreira como alguns dos responsáveis por abrirem esses caminhos, que hoje continuam se desenvolvendo em uma linhagem rica e diversa. Do piquezinho funk e clima ensolarado de Poze do Rodo e João Gomes em “Frio e Calculista” à ostentação marrenta de L7ennon em “Freio da Blazer”, passando ainda pela libidinosa  “Tropa do Mais Novo” de Chefin e Vulgo FK: em vez de homogeneizar a voz humana, o Auto-Tune é usado para ressaltar os mais variados temperos e abordagens de flows dos MCs.

E se antes a voz modelada em Auto-Tune era considerada como anti-natural, artificial, desprovida de calor humano e, portanto, sem possibilidade de criar conexões emocionais, agora podemos ouvir o oposto: a voz irreal simboliza os paradoxos da vida em multitelas, a era de simultânea hiperconectividade e isolamento simultâneos. “Não Faz Isso Comigo Não”, de TZ da Coronel, fala da solidão de um trabalhador do tráfico no plantão da boca, longe da pessoa que ama, enquanto observa as cargas indo e vindo e os fuzis passando. A voz de TZ é fria e distante, expressando uma angústia abissal que é ampliada pela sonoridade fria e inumana do Auto-Tune distorcendo os lamentos do MC. A matéria se desintegra em pixels e sua voz se transforma num som de sofrimento distante, traduzindo a nossa impotência de transformar essa realidade.

Sociólogo, filósofo e semiólogo francês, Roland Barthes cunhou a ideia de “grão da voz” para se referir à qualidade única e singular de uma voz individual. É a maneira particular como uma pessoa fala ou canta, que a torna diferente de todas as outras vozes. O grão, atesta Barthes, é o corpo na voz. Na era da edição com inteligência artificial, deep fake e filtros de imagem disseminados, essas fronteiras se embaralham também no som. Saímos do grão da voz para aquilo que o pesquisador Thiago Soares chamou de “píxel da voz”, que rompe com as premissas de que existiria uma voz “natural” e outra “processada”. A voz passa a ser a metamorfose do corpo que canta. O Auto-Tune poderia fazer nossa voz mais real que a própria realidade. Como os celulares com cada vez mais câmeras e maiores resoluções, como as imagens de paisagens naturais coloridíssimas em 4k nas telas dos televisores à venda em alguma loja de eletrodomésticos que parecem mais reais do que a própria natureza: de tão reais se tornam outra coisa.

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 139 da revista NOIZE, lançada com o vinil de “Vício Inerente”, de Marina Sena, em 2023.

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26/09/2024

GG Albuquerque

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