Héloa carrega em si o que foi, o que é e o por vir. Se debruçando aos entrecruzamentos das tecnologias ancestrais enquanto fonte inesgotável de futuros possíveis, a artista sergipana condensa em sua carreira musical uma estética que toca no âmago da raiz brasileira. Combina a visão criativa de artistas contemporâneos, como os figurinos do estilista Altair Santos, com a herança afro indígena de povos seculares, como os Kariri-Xocó, situados entre Sergipe e Alagoas.
Para celebrar o primeiro aniversário de lançamento do álbum Opará, Héloa decidiu investigar os caminhos sonoros das timbragens eletrônicas e soltar o EP Opará na Pista. Para navegar por essas águas sintéticas, convocou um time para ninguém botar defeito: a dupla pernambucana DJ Dolores e Yuri Queiroga, o baiano DJ Raiz, o paraibano Furmiga Dub, e os paraenses Lucas Estrela e Strr.
O resultado chega ao streamings só amanhã, dia 20, mas você pode conferir as quatro faixas do EP e o clipe inédito de “Maré Mansa 2.0” com exclusividade para NOIZE. O trabalho apresentado por Héloa emociona, mobiliza, aciona os traços ancestrais da terra Brasil quando ela recebia outro nome, ouvia outras línguas, e era organizada de acordo com as tradições de seus povos originários, mas também de povos que chegaram depois e fizeram do Brasil um território de continuação de suas origens. É ancestralidade em movimento, é síntese contemporânea e em experimento mais fiel de representar o Brasil do que as palavras “ordem e progresso”. Abaixo, ouça as tracks Opará na Pista, assista ao clipe e confira um papo que batemos com a artista.
Héloa, por que você decidiu levar o Opará para a pista?
O processo aconteceu de maneira natural e a partir da relação com parceiros e produtores da música eletrônica que estenderam o convite para trazer uma leitura para a obra que pudesse respeitar e manter essencialmente os ritmos de matriz africana e indígenas como pulso condutor das canções e o caráter de conexão ancestral com essas matrizes. Uma vez que o álbum Opará é, além de um trabalho musical, um álbum manifesto que reverencia a força dos Orixás, das águas e dos encantados. O trabalho com os produtores e DJs se deu de maneira coletiva e comunitária, onde cada um traz consigo a magia do estado brasileiro que representa, bem como as influência da diáspora e indígena nesses lugares.
Como se deu a escolha dos Djs e produtores musicais? A regionalidade foi um dos critérios?
A escolha se deu pela representatividade de cada cada um deles e isso transpassa a “regionalidade”. Todos têm em seus trabalhos pesquisas sobre a música eletrônica em âmbito mundial e fusão com ritmos conhecidos como brasileiros. Nesse caso, escolhi produtores que pudessem trazer a aura e a autenticidade já destacada em seus trabalhos individuais para o Opará, assim se deu também a escolha de cada canção para cada produtor e DJ.
[Foi] muito especial trazer DJ Raiz, um dos precursores da cultura sound system na Bahia, Lucas Estrela, que traz sua guitarra com toque experimental e de influência caribenha, Furmiga dub, que traz diálogo do dub com o xote, e a dupla DJ Dolores e Yuri Queiroga, que explora a música eletrônica mantendo uma certa organicidade, trazendo a referência da música ritualística africana fortemente presente em Pernambuco.
Que sonoridades são integradas com o resultado final de cada faixa? Como é se conectar com essa outra versão de sua sonoridade?
Me conectar com esse outro olhar sobre o Opará é maravilhoso. Em cada faixa é possível perceber sons que têm referência na África contemporânea e também ritmos da diáspora espalhados pelo mundo, como reggae, dub, ragga, kizomba, samba-reggae, repique. Houve experimentalismo e sound system, além de sons que remetem a misturas que resultam em um inspirado balanço de ritmos africanos que tem como base a dança como força de expressão dos rituais como o funaná, Gweta, Hapingo, Ikoku, pantsula, entre outros. É o caso da faixa “Maré Mansa 2.0” que tem a presença do grupo Mulheres Livres (grupo vocal formado dentro do [presídios] Carandiru por sul-africanas em um projeto de ressocialização para mulheres em situação de cárcere) que traz sons ritualísticos e o canto na língua Zulu (originária da África do Sul) e que sai especialmente com um videoclipe.
Héloa, a parada de diásporas eletrônicas e urbanas ainda não é tão destacada no nosso imaginário musical. Suas estéticas lírica e visual soam bastante orgânicas enquanto as timbragens do EP são assumidamente inorgânicas. Qual a potência dessa fusão? Por que propor esse diálogo entre o “orgânico ancestral” e o “inorgânico digital”?
É só uma questão de olhar e de entendimento do que representa a diáspora nos contextos urbanos. Temos a diáspora essencialmente na música eletrônica, como é o caso do funk, hip hop, sound system, carimbó, house, kuduro, e tantos outros ritmos que tem a base eletrônica como pulso e que surgem em contextos urbanos.
O EP Opará na Pista é também um estudo sobre a diáspora e a África contemporânea, com beats que buscam aproximação com o sons dos atabaques sagrados de terreiro, do samba-reggae- repique, samba-duro, todos ritmos de matriz africana. Isso também é ancestral. Não podemos olhar para o continente Africano e a diáspora de maneira purista e estática, fazendo uma polarização entre orgânico e inorgânico, ou ancestral e digital. Tudo se funde. A diáspora foi e é tecnológica, e representa o que é a tecnologia ancestral africana, o que explica a fusão entre ritmos conhecidos como tradicionais e a presença de sons eletrônicos há mais de décadas tanto em no próprio continente, como em outros países que tiveram a sua influência. Há vários estudos que afirmam que a música eletrônica é essencialmente africana e que o estudo dos beats são em torno da grande contribuição de instrumentos percussivos das matrizes africanas. E esse é o grande diferencial dos artistas da música pop/eletrônica africana que têm ganhado o mundo. Essa é a grande potência.
Sou uma mulher preta fruto da diáspora que constantemente busca o diálogo com a África ancestral e contemporânea e suas variadas facetas, pois entendo que assim posso contribuir para a quebra de estereótipos e a descolonização do olhar sobre o continente africano e toda sua contribuição musical nos principais gêneros da música, bem como os diversos representantes da música preta mundial. Do pop, passando pelo rock, reggae, dub, samba, funk, hip hop, música eletrônica, tudo é África.