Sou louca por revistas. Deste vício, nem uma rehab me salva. Provavelmente por isso, trabalho em uma, e é com orgulho que afirmo: a história da cultura pop de 1990 (e até um pouquinho antes, confesso) até hoje está contada na minha coleção. E foi num dos eventuais atos de faxina (nos quais descarto muitas coisas, menos as revistas), que encontrei uma relíquia. Trata-se de uma Capricho de 1996, cuja capa lamentava a morte de um ídolo da minha geração, Renato Russo.
A faxina rolou neste último fim de semana, pouco tempo depois de ter recebido, em meu email, um comunidado de Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, que dizia:
“Através da imprensa – e com muita indignação – tomamos conhecimento que no próximo dia 4 de junho será lançada uma nova versão do site ‘oficial’ da banda Legião Urbana, desta vez desenvolvido unilateralmente pelo herdeiro de Renato Manfredini Jr, Giuliano, sócio majoritário da empresa Legião Urbana Produções Artísticas.
Achamos por bem esclarecer que essa nova versão do site não conta com a participação, apoio ou qualquer tipo de consentimento e/ou autorização da nossa parte.
Informamos que não temos conhecimento algum sobre o conteúdo ou o que esse novo site pretende apresentar, e que também não nos foram solicitadas as eventuais autorizações para o uso da nossa imagem ou das nossas gravações originais.
Como é de conhecimento público, em março deste ano foi lançado – também por parte do herdeiro e da empresa Legião Urbana Produções Artísticas – o site oficial www.renatorusso.com.br. Até aí, tudo bem; não fosse o fato do site original da banda Legião Urbana (esse sim, site colaborativo desenvolvido conjuntamente pelas três partes da Legião Urbana e pelos fãs da banda, em 2010), ter sido por eles apagado e redirecionado para o site particular de Renato Russo quando digitado www.legiaourbana.com.br.”
Enquanto aguardamos uma entrevista de Dado e Bonfá, tomo a liberdade de (mesmo com alguns dias de atraso) expressar minha indignação (com a qual toda a equipe da Revista NOIZE concorda) diante dos fatos.
Acabei de digitar www.legiaourbana.com.br e percebi que o site da BANDA está lá. Talvez, Giuliano tenha tomado um choque de realidade (espero!) e percebido que não há Legião Urbana sem Dado e Bonfá. No entanto, como você vai saber a seguir, existe uma batalha judicial andando – a passos lentos, por sinal.
Giuliano ainda era um garotinho de 7 anos quando Renato morreu. Fruto de um namorico do músico com a modelo Raphaela Bueno, ele foi entregue ao pai com alguns meses de vida. A mãe, que alegou não ter condições de criá-lo, morreu logo em seguida, vítima de um acidente, e coube aos avós paternos tomar conta dele. Em entrevistas, o menino sempre falou sobre o orgulho que sentia do pai, embora tivesse, segundo ele, sofrido preconceito por ser filho de um gay, e sobre seu interesse em manter viva a imagem de Renato.
Ok, tudo lindo, não fosse pelo fato de Giuliano querer ignorar completamente a existência – e importância – de Dado e Bonfá nesta história toda.
O comunicado dos músicos ainda afirma que:
“1) Nem o herdeiro de Renato Manfredini Jr. nem a empresa Legião Urbana Produções Artísticas nos representa e tampouco representa idealística e/ou artisticamente a banda Legião Urbana.
2) A empresa Legião Urbana Produções Artísticas detém perante o INPI o registro da marca comercial LEGIÃO URBANA, porém, existe um Processo Judicial com o objetivo de que sejam reconhecidos os nossos direitos sobre o nome da banda que formamos juntamente com Renato Russo e que hoje é conhecida e reconhecida tanto no Brasil quanto no exterior. Quem quiser entender mais sobre esta disputa, pode ler a verdade dos fatos em http://entendaocasolegiao.blogspot.com.br/
3) Não será autorizado por nossa parte o lançamento de qualquer produto da banda Legião Urbana (seja esse site, CD’s, DVD’s, etc.) enquanto o processo que hoje está no âmbito da Justiça não seja resolvido e os nossos direitos sejam reconhecidos.
4) Não existe – nem nunca existiu – nenhum tipo de envolvimento ou participação da nossa parte em projetos ou tributos realizados pelo herdeiro ou pela empresa Legião Urbana Produções Artísticas desde o falecimento do Renato.
5) Em momento algum pensamos em nos aproveitar da triste situação de Renato Rocha para tentar ganhar a simpatia dos fãs. Reconhecemos e valorizamos sua participação nos primeiros 3 dos 8 discos de estúdio da Legião, mas a sua saída da banda aconteceu – contratualmente – no começo de 1989. Tanto ele quanto os verdadeiros fãs sabem que tentamos ajudá-lo quando foi necessário, inclusive convidando-o para tocar no ultimo CD de estúdio, chamado Uma Outra Estação.
6) Como publicado num comunicado assinado pela própria família Manfredini e por nós no dia 5 de setembro de 2009: ‘não existe Legião Urbana sem Renato, Dado e Bonfá’.”
Eu, como uma simples fã, não sei dos bastidores. Porém, vivi a era Legião Urbana. Foi ao som da banda que lamentei amores perdidos, curti festinhas com os amigos, aprendi a gostar de rock e a entender que é possível gostar de meninos e meninas. Foi ao som da banda que fiquei por horas esmagada na primeira fila de um show lotado (no caso, no Gigantinho, em Porto Alegre, em 1994) pela primeira vez na vida. Eu era uma pirralha, mas nunca vou esquecer desse dia.
Era a última tour da Legião. O disco: “O Descobrimento do Brasil”. Renato já sofria com a Aids, mas escondido dos fãs. Apenas seus amigos mais próximos sabiam da doença. Naquele momento, jamais imaginei que seria minha primeira e única chance de vê-lo ao vivo – mais tarde, ainda bem, tive a oportunidade de conhecer e entrevistar Dado e Bonfá, além dos amigos da vida inteira, Dinho Ouro Preto, Fê e Flávio Lemos, com quem ele formou o Aborto Elétrico, cujo desfecho deu origem à Legião e ao Capital Inicial.
Foi emocionante ver os três juntos no palco. Estava posicionada em frente ao Dado, muso master da banda. Bonfá, lá atrás, também era uma cena linda de se ver, ainda mais pra uma fã de bateria como eu. Renato jogou flores pra plateia. Não consegui pegar uma pétala sequer, mas lembro bem do momento em que ele olhou nos olhos de cada um da primeira fila, inclusive nos meus. Foi incrível, e aquele olhar me custou pelo menos uma semana de dor nas costas – ficar na primeira fila, num tempo em que as pessoas apenas curtiam os shows, sem fotos, selfies ou vídeos, era doloroso.
Não encontrei imagens do show em Porto Alegre, mas foi o mesmo que você vê abaixo, num especial da Band:
Dois anos depois, Renato virava cinzas que, segundo consta, foram jogadas num jardim a seu pedido. Lembro bem desse dia. Acordei, liguei o rádio (na Ipanema FM) e só tocava Legião. Era óbvio, uma tragédia havia acontecido. Foi o tempo de esperar o locutor explicar novamente, pra quem ligava o rádio àquela hora, que Renato Russo estava morto.
Então, a tal Capricho, sobre a qual falei lá no início deste post gigantesco, chegou às bancas. Uma capa produzida especialmente pra Renato anunciava um texto exclusivo de Dado, que reproduzo abaixo:
“Ninguém consegue imaginar a Legião sem Renato. Por outro lado, vamos cuidar para que o próximo disco e o que quer que venha a ser lançado tenha a nossa marca, o nosso jeito. Foi muito difícil conviver com o fim do nosso trabalho. O último disco foi superdoloroso e eu me defendia disso pensando que aquilo já não era mais tão importante para mim e nem para ninguém. Já não nos encontrávamos mais para tocar, fazer shows, nada. Só nos reuníamos para compor e gravar as canções. Para fazer discos. Acho que era a nossa forma de lidar com o fim iminente, tentar não perceber o quanto aquilo era fundamental em nossas vidas. Hoje eu penso que o Renato foi importante para o Brasil nos anos 80. Ele significou muito para todos nós. Muito mesmo. E pensar que tudo começou numa brincadeira, que a gente nunca imaginou que pudesse crescer tanto. O Renato tinha um senso de humor único e, quando queria, sabia ser engraçadíssimo. Ele era jornalista e nós, estudantes. Hoje vejo que o que nós fizemos foi realmente importante, coisa que eu não gostava de pensar ultimamente. Quem gostou do que nós fizemos tem as canções prediletas e pode ouvi-las, mas eu não tinha idéia de como iria assimilar tudo isso. O que é que eu vou fazer? Tô com preguiça até de jogar bola.”
Pergunto: diante deste texto, escrito às lágrimas por um melhor amigo, com quem Renato dividiu praticamente sua vida inteira, Giuliano – que mal entendia o que era a vida quando seu pai partiu – pode ter a coragem de ignorar Dado e Bonfá? Como único herdeiro, ele tem seus direitos, mas com que direito ele retira personagens da história?
Talvez sua herança esteja apenas na obra, não na sensibilidade do pai. Uma pena.