Entrevistas completas, sessões de fotos completas, áudios, vídeos, depoimentos dos repórteres e fotógrafos… Enfim, tudo que a gente quis muito colocar na revista impressa e não teve como vem NA ÍNTEGRA para o site da NOIZE.
Essa semana, Lucas Santanna: as fotos que não entraram na revista e a entrevista completa com o cantor, que apareceu na NOIZE
Sem nostalgia nem contradição, o baiano-quase-carioca-com-pé-em-recife Lucas Santtana chega aos 10 anos de carreira como sempre fez: olhando para trás ao seguir em frente. Seu último álbum, Sem Nostalgia, desconstrói um dos maiores ícones da música brasileira – a voz e o violão – a partir de samples de Baden Powell, Caymmi e Jorge Ben e canções. Belas canções.
Dono de uma das mais importantes discografias da recente música brasileira, Lucas conta a NOIZE como insetos e ficar brincando com equalizador ao ouvir João Gilberto podem influenciar um disco e fala também daquilo que o circunda: a internet, sua geração e, sim, a música brasileira.
Queria que você começasse falando como foi seu primeiro contato com música e quando você começou a ter vontade de fazer música?
Meu pai trabalhou em gravadora por muitos anos e minha mãe trabalhava com dança. Tem a ver com música, mas indiretamente. Com 13 anos foi quando eu descobri a música: minha mãe me levou aos primeiros shows e tal. Perto do trabalho dela tinha um cara que passava vendendo vinil e ela sempre comprava para mim discos de jazz, de música clássica, de música popular. Eu pirava com aqueles discos, ficava ouvindo o dia todo, foi nesse momento que acabei me apaixonando por música mesmo.
Com 13 anos também meu pai me deu uma flauta doce, depois uma transversal e eu comecei a estudar música. Aí, com 18, eu já estava trabalhando com música, tocando flauta. Fui fazer faculdade na Escola de Música da Universidade, que eu abandonei para tocar com o Gil. Aí ele me chamou para tocar no “Unplugged” (disco de 94), aí fiquei três anos tocando com ele. Nesse tempo eu comecei a compor e sai da banda para gravar o primeiro disco (“Eletro Bem Dodo”, lançado em 2000 pela Natasha Records/Universal).
Como que surgiu a ideia do “Sem Nostalgia”? Ou melhor, o que surgiu primeiro, a ideia do disco ou as faixas em si?
A ideia, na real, se divide em duas.
A primeira ideia que eu tive, na verdade, não era um disco. Foi quando em 94 eu fui tocar com os Doces Bárbaros, em Londres, num show no Royal Albert Hall. Atrás do Royal Albert tem o Museu de História Natural de Londres e uma das salas, a sala dos insetos, que era toda feita para criança, tinha umas máquinas como se fossem displays em que você botava o fone, visualizava os insetos e ao clicar neles, ia ouvindo os sons que eles faziam, descobria de que país eles eram. Quando eu ouvi aquilo, pensei que tinha tudo a ver com sintetizadores, porque era “de mentira”, sabe? Tinha a ver com música eletrônica e o lance da ambiência, como aqueles sons se misturavam ao ambiente e tal. Aí eu pensei que, “porra, podia usar os insetos como instrumentos, como ambiência”.
Daí passou um tempo, quando eu tava em São Paulo na casa de um amigo ouvindo um disco do João Gilberto, eu comecei a aumentar os graves, mexer nas freqüências das caixas de som. Quando puxava o “gravão” do disco, o baixo do violão mudava muito, sabe? Então eu pensei que poderia fazer um disco “voz e violão” que mexesse com essa parada da tradição, que eu pudesse avançar e me divertir com isso de várias formas. Aí eu decidi: “porra, quero fazer um disco voz e violão”. E fiquei com isso na cabeça por muitos anos.
Finalmente em 2008, “tá na hora, vou fazer esse disco porque ta há muito tempo na minha cabeça”. Precisava dar uma esvaziada, poder pensar em outras coisas, sabe? Aí eu comecei a compor o disco e pensar de que maneira eu poderia fugir do esquema de dois canais, só voz e violão. Começou a surgir essa ideia dos samples, comecei a samplear vários discos do Caymmi, do Baden, só os trechos com os caras tocando violão. Comecei a sacar que eu poderia fazer uma faixa no Jardim Botânico, de noite, e pegar o ambiente. Comecei então a ter várias ideias de como extrapolar aquilo, como fazer o “voz e violão” soar diferente.
Como foram as gravações? Você trabalhou com vários produtores diferentes e com vários músicos diferentes. Lendo a ficha técnica, eu fiquei até meio assustado, vendo que você colocou dois bateristas fodas, como o Curumin e o Marcelo Callado (Do Amor e banda Cê, do Caetano), para tocar bateria no violão. Como foi escolher cada músico e produtor para cada faixa?
Quando eu pensei no disco, eu chamei vários produtores e vários músicos, porque eu pensava que como era um disco que já tinha uma amarração, só podia ser voz e violão, quanto mais gente eu chamar para produzir junto comigo, gravar em estúdios diferentes, mais vai enriquecer uma coisa que é uma só, voz e violão. E daí eu comecei a chamar a galera que eu já trampo há algum tempo. Como o Curumin, que eu já tinha feito faixa do disco dele, o João Brasil que já tinha feito coisa junto, o Chico Neves, o Do Amor, que já tocavam comigo. Daí cada faixa eu fui chamando quem tinha a ver. Uma faixa que era samba-rock como “Um Amor Em Jacumã”, então eu chamava alguém com uma pegada samba-rock legal, como o Curumin. No “Who Can Say Which Way”, que era uma parada meio rock, chamava o Do Amor, que é uma banda rock, mas não é tão rock assim. No “Recado A Pio Lobato”, eu gravei a faixa toda com o Régis (Damasceno, guitarrista do Cidadão Instigado e faz-tudo do Mr. Spaceman) e joguei todo resto na mão do Rica Amabis, que é um cara que saca muito de plugins e tal. Enfim, eu chamava quem tinha a ver com a faixa, que pudesse catalisar o que a faixa estava pedindo.
Qual é sua relação com o violão em si, como instrumento?
A primeira referência é a de ouvir mesmo. Ouvi muito João Gilberto quando era adolescente, ouvi disco do Caymmi voz e violão de 59 (“Caymmi e Seu Violão”, EMI/Odeon), que é clássico, ouvi discos do João Bosco, do Jorge Ben. A segunda relação foi com o próprio instrumento, quando comecei a compor em quarto de hotel, quando ainda tocava com Gil, o violão era tipo meu companheiro, sabe? Foi ali que eu comecei a compor, que eu aprendi a fazer música. A terceira, então, eu posso dizer que foi fazendo o disco, que foi essa história de desconstruir essas duas referências que eu tinha.
Esses seus 10 anos de carreira foram os 10 anos que a indústria fonográfica ruiu. Mesmo sendo um artista muito bem adaptado a internet, você às vezes sente algo que, talvez não seja nostalgia, mas talvez uma vontade de ter vivido numa outra época? Você acha que teria sido mais fácil ter aparecido como artista em outros anos?
Não, eu realmente sou um cara que não tem essa parada nostálgica, sabe? Eu acho que a época que a gente está vivendo é a época mais legal, mais democrática. É uma época, sim, muito difícil, porque todo mundo faz música, a concorrência é grande.
Tem um lado muito legal que é esse de eu e toda essa galera da minha geração estar se inventando. A gente não está só fazendo música, a gente tá inventando um jeito de fazer música, um jeito de viver de música, um jeito de empreender música. Não é que a gente não tenha gravadora, a gente nunca teve. Nunca teve gravadora, nunca teve jabá pra tocar em rádio. Então, a internet vira nossa única aliada.
Por exemplo, em Recife, depois do show no Rec Beat, eu saí na rua e uma um monte de gente veio me parar para dizer “pô, eu tenho um blog, coloquei teu disco para baixar lá”, sabe? Então, é muito boa essa coisa do boca-a-boca, do blog, de colocar aquele disco para 100 amigos seus que acessam aquilo lá. E pensar que isso é multiplicado por milhares de blogs.
Acho muito legal viver esse tempo em que a gente está vivendo, mas não só isso, acho legal pensar sobre ele, não só do ponto de vista artístico, mas do ponto de vista do negócio da música mesmo.
Falando em relação a essa história de blogs, de repercussão na internet, como é para você essa ideia de ser meio que descoberto ou redescoberto a cada disco? Você já falou em outras entrevistas que muita gente acha que o “Sem Nostalgia” ou “3 Sessions In A Greenhouse” são seus primeiros discos.
Cara, isso é bem um sintoma do que eu estava falando. O “3 Sessions…” foi o primeiro disco que eu disponibilizei de graça na rede, então para uma galera que é aquela que chega nos discos através da internet, através dos sites para baixar, é mais fácil chegar nele ou no “Sem Nostalgia”. Eu sei que os outros dois existem nos sites para baixar, mas não da maneira que eu coloquei, com a possibilidade da galera remixar e tal.
É louco isso. Acontece muito de eu chegar nos lugares e ver uma galera conversando e numa hora alguém falando de música, fala desses discos, conhece esses discos, mas não me conhece. Conhece o som, mas não conhece o Lucas. É muito louco isso de na internet às vezes o som chegar antes da imagem.
De uns 3, 4 anos para cá, de certa forma dá para falar que estamos vivendo uma espécie de renascimento da “canção brasileira”, algo que tem tanto a ver com a tropicália, a bossa nova e com Roberto e jovem guarda, algo que seria talvez o que hoje o Marcelo Jeneci, o Romulo Fróes e vários outros fazem. Essa história de haver um tipo de canção é especialmente brasileira, algo que não é exatamente samba, não é bossa nova, mas você nunca vai ouvir um americano fazendo, por exemplo. Como você vê o “Sem Nostalgia” no meio dessa ideia, sendo ele um disco que, de certa forma, tenta descontruir e reconstruir essas canções?
O “Sem Nostalgia” é um disco muito de canção, apesar dos experimentalismos que tem. E são canções bem brasileiras, mesmo que algumas sejam cantadas em inglês. Eu acho que realmente essa coisa da canção está voltando, porque essa coisa de groove, de você soltar uma batida e construir uma música em cima dela cansou um pouco, ficou nos anos 90. E a coisa da canção que se defende sozinha, independente de ter uma sonoridade atrás, isso voltou. E ao mesmo tempo, na minha geração, gente como o Curumin, a Céu, tem muito essa história das texturas musicais, que é o meu barato. Apesar de fazermos canções, temos uma preocupação muito grande para que na hora que aquelas canções forem gravadas, que aquilo não seja feito num arranjo tradicionalista. Ao contrário, a gente vai tentar colocar um arranjo com maior número de timbragens possível, para que aquilo seja tão interessante quanto a canção. Eu canso de ouvir canções bonitas, mas que quando são gravadas, isso é feito de uma maneira tão careta que a canção fica feia, que me fazem perder o interesse. Então, se não tiver som abraçando a canção, é uma coisa que eu não curto tanto. Tanto é que eu acho a MPB hoje uma coisa muito careta, na sonoridade.
De uns três, quatro anos pra cá, vem aparecendo com mais força no Brasil uma geração de artistas incríveis, tanto compositores, produtores, instrumentistas…
Sim, tanto é que você falou do (Marcelo) Jeneci, que eu pude acompanhar um ensaio umas semanas atrás, porque o Régis Damasceno que toca comigo, toca com ele também. Eu vi o ensaio e falei para ele “cara, parabéns, essas canções são lindas!” e ele: “valeu, agora eu estou trabalhando para fazer o som delas”, que é bem isso que estava falando. Não importa só ter canção bonita, tem que chegar com um som próprio, isso é muito importante para essa geração. A coisa do autoral não está ligado só a canção, ao jeito de fazer melodia, ao que você diz na letra, mas também ao tipo de som que você vai chegar. Se você chega com uma canção bonita, mas com um som parecido com o do Romulo Fróes, você vai ser o “sub-Romulo”, entendeu? Todo mundo está preocupado em chegar com um som próprio, não é só a canção.
Apesar de guardarem semelhanças, seus quatro discos têm ideias completamente diferentes. O que você acha que seria então seu som? O que te define?
Meu som sempre foi textura musical. Canção com textura musical. Desde o primeiro disco meu barato sempre foi achar sonoridade, sabe? Achar sonoridade do instrumento, achar sonoridade da guitarra, do baixo e achar principalmente a sonoridade da faixa, que é tudo isso junto, que se forma e dá vida a um som só. Em todos os discos, se você ouvir, essa ideia é bem presente. Se você tirar a voz, o som que tem atrás é muito uma coisa de tapeçaria musical, de culinária, pode chamar do que você quiser. É muito uma ideia de ir temperando até a faixa ter um sabor próprio.
De onde veio o título do álbum?
Na verdade eu estava sem título, aí conversando com um amigo meu, o Bruno Natal (jornalista, editor do URBe), ele falou “nunca mais tiveram discos em que os títulos foram tirados de um pedaço da letra da canção”. Nem sei se isso é verdade, mas quando ele falou isso, eu que tava doidão, “porra, vou fazer isso”. Aí eu peguei as letras do disco e parei na canção “Cá Pra Nós”, que diz “Sem ilusão / sem nostalgia / só o querer que acende”. Aí eu achei que essa frase tinha tudo a ver, porque “sem ilusão” é uma característica muito da minha geração, em que o foco foi sempre na música, nunca no glamour, ninguém acha que vai estourar. Tinha tudo a ver com o que o disco queria ser.
Você acha que o título “Sem Nostalgia” talvez seja um resumo de como você conduz sua carreira?
É um resumo no sentido de que eu nunca quis muito reproduzir a música popular que veio antes de mim. E quando eu falo isso, não quer dizer que eu não goste, porque no “Sem Nostalgia” tem samples do Jorge Ben, do Caymmi, do Baden, do Gil, eu gosto muito de tudo isso, mas nunca achei que teria sentido se eu fosse fazer “uma nova MPB”, sabe? Sempre achei essa ideia muito caída, tentar fazer o que já foi feito. Sempre achei que era mais arriscado e e me daria mais tesão se eu fosse fazer coisas que nunca foram feitas.
Como surgiu a ideia de fazer o Trio Ghettotech?
Rolou um edital do governo da Bahia que iria apoiar 10 trios independentes, sem cordão de isolamento, para o folião mesmo na rua. Aí eu pensei que tinha tudo a ver fazer um trio Ghettotech lá, porque a cidade (Salvador) tem muita influência de música negra, seja do Caribe, seja da América do Sul, dos EUA, da Jamaica. Aí chamei o Chico Dub e o Pedro Sieler (DJs da festa carioca Dancing Cheetah) com que eu toco aqui no Rio, só que eles não iam poder. Aí eu chamei o El Roque, que é de um soundsystem lá de Brasília, o Confronto, um amigão meu que toca esse tipo de som também. Então fui com essa ideia de levar soca digital (ritmo dançante de Trinidad e Tobago), esses de estilos de Global Ghettotech para lá. E foi do caralho porque o povão na rua na entendeu. Entendia no corpo, né? Quando rolaram as músicas, a galera entedia na hora, dançava para caralho. E fez muito sentido, porque todos esses estilos de Global Ghettotech que rolam, por exemplo a cumbia na Argetina, o dancehall na Jamaica, a soca em Trinidad e Tobago, em todos esses lugares as músicas são produzidas para sistema de som, para caixa, e o trio elétrico nada mais é que um soundsystem ambulante. Foi perfeito o casamento da parada!
Você pretende fazer mais vezes ou em outros lugares?
Ano que vem eu estou pensando em fazer de novo lá, porque deu muito certo.
Você já sabe o que quer fazer num próximo disco?
Não. Tem várias ideias, mas o “Sem Nostalgia” tem tão pouco tempo, nem um ano. Eu até tenho muita vontade de fazer outro disco, mas vou segurar, amadurecer as ideias.
O restante da sessão de fotos com Lucas Santtana pode ser conferido no Flickr da NOIZE: http://www.flickr.com/photos/revistanoize/sets/72157623593684880/
As fotos são de Pedro Cupertino
O texto é de Livio Vilela