Em Amanheci, segundo álbum da carreira, Luíza Boê inaugura uma nova fase. O registro que chegou às plataformas digitais no último dia 21, via Altafonte, revela a mpb translúcida, pop, solar, dançante e sexy de uma cantora e compositora sem medo de ser vista à luz do dia. O gatilho para a transformação sonora surgiu a partir do resgate de uma memória musical e afetiva que parece ter enchido os pulmões de Boê com ares de curiosidade e coragem, no estilo daqueles que costumamos ter quando crianças. Ela é quem conta em release divulgado à imprensa: “Durante a pandemia, me reconectei com o meu primeiro instrumento literalmente – o teclado que ganhei da minha mãe com 8 anos. Isso me inspirou a estudar timbres de sintetizadores e comecei a criar projetos no Garage Band”.
Com esses projetos dando os primeiros tons do disco, a artista capixaba decidiu convidar Kassin para a produção musical, parceria já realizada em Terramar (2019), e decidiu-se, então, investigar as combinações entre camadas de sintetizadores e percussão. Foi por essa última, inclusive, que Kassin definiu o terceiro convidado, o multi-instrumentista baiano Leonardo Reis. O trabalho, expansivo mas íntimo, contou também com as parcerias de Illy, Victor Bressière e Flaira Ferro. Ao abrir suas memórias e processos em cada uma das 10 composições autorais, Luíza mostra as diversas facetas de seu amanhecer interno em um álbum que, como um caleidoscópio, é capaz de iluminar e colorir seu entorno. A pedido da Noize, a cantora e compositora comenta cada uma das faixas de Amanheci. Leia abaixo!
Faixa a faixa de Amanheci
1 – “Azul”
Foi a música que, quando eu compus, saí cantando pela casa, imaginando cantá-la num trio elétrico, porque me traz muita alegria, uma energia solar que vivifica. Sentei no teclado, comecei a tocar uns acordes e logo me veio “Abram-se os caminhos na avenida/ Que hoje acordei decidida/ A deixar as lamentações”. A letra, cheia de afirmações, se inspira no poder do “abracadabra”, palavra em aramaico que significa “eu crio conforme eu falo”. Então, são como decretos matinais para criar o dia azul que merecemos, mesmo quando o mundo é um grande dia nublado. Sonoramente, eu queria uma mistura de ABBA com axé music – com a produção do Kassin e a percussão do Léo Reis, a música virou algo deliciosamente parecido com isso.
2 – “Ela voltou da Bahia”
Compus essa música inteira num voo Rio-BH, em 2018, prestes a reencontrar minha tia-madrinha pela primeira vez em quase 10 anos. Ela havia parado de falar com a família, eu sabia que seria um momento sensível para todos nós, e senti de colocar em música a celebração desse reencontro, de ela ter voltado da Bahia. Não pensava em gravar essa música tão íntima, mas quando mandei pro Kassin, ele amou, e aí comecei a gravar uns sintetizadores no Garage Band pra dar um norte de pra onde essa produção deveria ir.
3 – “Camaleão”: Compus essa música no violão, em 2018, inspirada nos beats que o DJ Art In Motion (Vicente Amadeo) tinha me mandado. Sempre senti que essa música tinha que ser gravada com sons eletrônicos e isso ainda não estava presente nos meus trabalhos anteriores. Então, quando eu decidi que queria fazer um disco que fosse basicamente camadas de sintetizadores e percussão acústica, eu logo trouxe “Camaleão “pra dentro do repertório. A minha principal referência sonora pra essa música foi o álbum Tropix, da Céu. –
4 – “Martim”
Essa eu compus quando a Illy me contou que estava grávida do Martim. Tenho um carinho imenso por ela e Jorginho – que descobriram a gravidez quando se hospedavam na minha casa, em Vitória – e isso me inspirou a compor uma música a partir do olhar dela, me sonhando mãe. Imaginei: o que eu diria se tivesse carregando uma pessoa dentro de mim? Como eu gostaria de apresentar o mundo pra esse filho? Assim como o Caetano Veloso diz que a vida é gostosa em “Boas Vindas” [canção de Circuladô (1991)], acho bonito isso de cantar que o coração da vida é bom, que o medo é regulador. No estúdio, gravei borbulhas de água na garrafa estilo Hermeto Pascoal na lagoa, pra trazer uma sonoridade lúdica, aquática, que remete às águas no ventre da mãe.
5 – “O Melhor de Mim”
A música nasceu entre prantos de lágrimas. É um storytelling sobre a minha infância e a minha vida hoje, a partir do olhar da minha mãe. Às vezes eu tenho a impressão de que ela acha que eu não ouço o que ela diz e essa música é tipo “Mãe, eu te escuto, sempre te escutei e eu te agradeço por tudo que você fez por mim, me criando sozinha”. Eu me emociono sempre que ouço. Ela, então, nem se fala. Esse tema da relação mãe-filha é presente no meu trabalho desde o EP Terramar – a música “Mãe” é usada por diversos psicólogos e terapeutas de todo o país em seus trabalhos de cura. Acho que enquanto esse tema me gerar encantamento, seguirei compondo sobre ele.
6 – “Purpurina Cósmica”
É a raspa do tacho, risos. Eu sentia que Amanheci não estaria completo sem mais uma música pop, dançante e alegre como “Azul”. “Pelejei, matutei, fui atrás” [em referência aos versos de “Pelejei”, de Marina Sena] das palavras, da melodia perfeita, e “Purpurina Cósmica” nasceu horas antes de eu entrar no estúdio, às 5h da manhã, no meio dos rabiscos das minhas páginas matinais. Eu estava hospedada na casa de uma amiga, no Rio, e eu tomava banho de hortelã na banheira dela todos os dias, como um ritual do processo de gravação. Senti que isso precisava estar presente em algum verso. Foi a última música que compus e a primeira que gravei, meu grande xodó.
7 – “Poema Inacabado”
Foi a primeira música que compus e me fez sentir que eu precisava gravar um novo álbum. Compus no teclado, e o processo criativo se deu exatamente como escrevi nos primeiros versos da música – abri um livro, caiu uma foto de um ex-namorado e se abriu um portal pro passado que me fez compor essa canção. O encadeamento de acordes é bem clássico de músicas country-pop americanas, então eu e Kassin sentimos de fazer uma produção bem pop. Minha referência sonora foi 1989, da Taylor Swift.
8 – “Eu Quero Encontrar um Amor”
Compus essa música num estado de profunda vulnerabilidade, depois de curar dores muito profundas de relacionamentos afetivos. Me fechei por quase 2 anos pra uma reforma interna, pra entender quem eu sou e o que eu valorizo dentro de uma relação. Depois de ter sido machucada, é preciso muita coragem pra bancar e nomear o desejo de encontrar alguém, se abrir de verdade pra isso. E a música acabou ganhando mais vida na voz de um amigo, Victor Bessière, que compôs a parte em francês para essa canção que, por pura sincronicidade, traduz bem o encontro dele com sua companheira. Eu comecei a produzir a música no Garage Band, fiz a melodia da intro, e o Kassin trabalhou em cima do projeto.
9 – “Fortaleza”
É uma música-rezo que me veio após um trabalho espiritual. Carrega muita força, dá chão, gravidade, contorno. Me lembra quem sou e o que vim fazer aqui. Compus só voz e maracá, mas eu queria que fosse algo mais dançante, grave, minha referência sonora era o Oyá Tempo, da Luiza Lian. O Kassin fez uma produção foda e o Léo Reis trouxe um pagodão baiano, que deixou a música ainda mais foda. Convidei a Flaira Ferro pra cantar comigo, porque já queríamos fazer algo juntas, e somos companheiras do aprofundar-se nos mistérios e magias da vida.
10 – “Amanheci”
É um manifesto, uma partilha íntima do meu processo pessoal e criativo que culmina nesse disco. Ela dá o nome ao disco, conta de onde eu vim até esse amanhecer. Eu sentia que precisava de uma música que fosse um elo entre Terramar, meu último trabalho, e essa nova Luíza Boê pop, solar, sexy, colorida e alegre que estou apresentando. Pouco antes de gravar, senti que meu primeiro disco solar, que fala sobre amanhecer e mostra tantas facetas minhas, precisava terminar saudando esse sol. Escolhi, então, o Gayatri mantra, que é o mantra pro sol, para terminar o disco, pois essa é uma das linguagens musicais que faz parte da minha vida há quase 10 anos. Minha referência sonora pro disco e, especialmente, pra essa música que compus no teclado foi o “Ray of Light”, da Madonna.