Localizada no centro do Rio de Janeiro, a Praça Onze é considerada o palco pioneiro do samba. A conjuntura cultural que resultaria neste fenômeno se conecta aos efeitos imediatos do pós-abolição. Inicialmente, a região é herdeira dos arruamentos próximos à Quinta da Boa Vista, área na qual D. João VI, se instala em sua chegada à cidade, o que atrai diversas pessoas da elite.
Após decretada o fim da escravidão no Brasil, em 1888, essa mesma elite se transfere para a Zona Sul; em seu lugar, aparecem casebres e cortiços que seriam habitados por negros ex-escravizados, judeus e, em menor parte, ciganos, imigrantes portugueses e italianos. A paisagem sonora era regida por diversas origens, sotaques, classes sociais e ritmos.
É nesse caldo cultural que está o sobrado de Tia Ciata, reduto do candomblé e de festas com a presença de artistas e intelectuais, que seria reconhecido como berço do samba e, posteriormente, referência para os ancestrais dos desfiles carnavalescos na avenida: os carnavais de rancho. A Praça Onze, território, testemunha e, por que não, agente da criação do gênero tido como o mais brasileiro de todos, foi engolida por uma obra. No ano de 1941, na gestão de Getúlio Vargas, as obras da Avenida Presidente Vargas – vejam só – desalojam famílias, extinguem as ruas Senador Eusébio, General Câmara (Rua do Sabão) e a Visconde de Itaúna e mutilam uma parte da memória histórica do samba.
Para o compositor, escritor e estudioso Nei Lopes, a origem geográfica é importante para a compreensão do samba, seu desenvolvimento e suas influências. Se a Praça Onze teve esse destino assustador, como será que foram tratados os redutos no qual outras formas de samba surgiram? Como damos conta de cuidar e zelar pelo nome de pioneiros desse fenômeno, em sua grande parte formado por pessoas marginalizadas – negros, pobres, iletrados ou semiletrados, quando não tudo isso junto?
É hora de chamar o teórico cultural e sociólogo jamaicano Stuart Hall para a conversa. No artigo “Notas sobre a desconstrução do ‘popular’”, ele joga luz na intensa dinâmica de disputa quando o assunto é a cultura popular, guarda-chuva que contempla o samba. “Há uma luta contínua e necessariamente irregular e desigual por parte da cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar constantemente a cultura popular; para cercá-la e confinar suas definições e formas em uma gama mais abrangente de formas dominantes”, pontua.
Nesse sentido, o samba, produto e suporte de discursos marginalizados, foi desvalorizado por muito tempo, e, para ser aceito pela cultura dominante, parece precisar ser dominado por ela. Enquanto não é absorvido, óbvio, não é passivo: deixa suas marcas, seus legados e suas memórias à sua maneira. Mas, como uma cultura originada por esse país tropical, abençoado por Deus, bonito por natureza e colonizado por portugueses, o samba está condicionado e sua memória não sai ilesa do epistemicídio.
Cunhado pelo pesquisador português Boaventura de Sousa Santos, esse termo é, em linhas gerais, utilizado para analisar a influência da colonização europeia branca (e seus legados) sobre a produção, reprodução e destruição de saberes, conhecimentos e culturas não assimiladas pela cultura ocidental branca.
No artigo “Aspectos acerca da construção da memória negra do samba no Rio de Janeiro”, de Victor Nigro Fernandes Solis, há a reiteração do impacto de iniciativas oficiais, diretas e indiretas, que foram atuantes no desmonte da memória dos grupos populares de maioria negra no Brasil. No samba, não faltam exemplos, articulados com o racismo em seu nível institucional. Nos jornais de 1920 e 1930, não é raridade encontrar ocorrências de ações policiais em rodas de sambas que acabavam em tumulto ou prisão. Em depoimento concedido ao Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, o lendário João da Baiana afirmou ter visitados a cadeia mais de uma vez: “Fui preso várias vezes por tocar pandeiro”, atesta. Essa coerção dialoga com práticas higienistas, contra as práticas de “vadiagem” associadas à comunidade negra.
O autor ainda cita políticas como o “’bota-abaixo’, quando se redefine a estrutura urbana carioca, além da ausência de políticas de integração social dos negros no pós-abolição, perseguição de práticas culturais e artísticas afro. Solis indica:
“Os impactos das políticas públicas de segregação e afastamento dos moradores mais pobres das regiões mais valorizadas, ou em vias de valorização da cidade, produziriam um apagamento de práticas tradicionais aos grupos pertencentes dos setores populares”. Ele complementa: “Tal apagamento se daria por meio da invisibilização de seus aspectos simbólicos”, uma vez enquadrados nos moldes de segmentos sociais hegemônicos com intuito de uniformizar a cultura em questão.
O que é assinalado por ele conversa com a designação do samba enquanto símbolo nacional. Restrito às comunidades tidas como subalternas, ele era visto como algo primitivo. Aproximadamente uma década após a primeira gravação do gênero, “Pelo Telefone” (1916), o samba começa a se consolidar como suporte da voz dos excluídos. O samba, mais do que uma música, é um suporte de afirmação identitária de um povo que não era legitimado, de comunicação de vivências periféricas e de estratégias de liberdade.
Nos anos 1930, o samba é reconhecido pela sua penetração e consumo nas camadas populares. O presidente Getúlio Vargas, em pleno projeto nacionalista, abraça o gênero e o eleva a “música nacional”. Reforça-se seu ponto de vista comercial e, então, o samba fica mais branco. De 1930 a 50, nota-se a diluição de sua negritude. Em sua clássica tese “O samba segundo as ialodês: Mulheres negras e cultura midiática”, a pesquisadora Jurema Werneck registra:
– Esta transição do produto negro para o produto brasileiro significou, muitas vezes, a substituição da face negra à medida que angariava maior valor simbólico e econômico. O recurso do mito da democracia racial e ainda, à celebração da mestiçagem constitutiva da população brasileira, vai atuar como modelo de justificação da circulação do samba e suas criatividades para além da comunidade negra.
Aqui, ganhou importância a criação da figura do carioca, que foi apresentado como alternativa à africanidade representada pela população negra e seus atributos culturais, sem a necessidade de abrir mão de suas criações sedutoras e geniais. (…) Suas características em muito se assemelham àqueles estereótipos atribuídos à figura do sambista ou ao malandro, como o detalhe providencial do desaparecimento de seu pertencimento ao grupo racial negro.
Uma vez que o samba é alçado como patrimônio, ele pressupõe salvaguarda, ou seja, dispositivos de garantia, defesa e amparo. Além de zelar pela conservação da história do samba, é necessário se perguntar: o que conta essa história? E o que não se conta dessa história? Talvez um dos caminhos possíveis esteja no pedido imperativo de Candeia na faixa “Dia de Graça”: “Não negue a raça”.
Esta matéria foi publicada originalmente na edição 97 da revista NOIZE, lançada com o vinil “Axé”, de Candeia, em 2020.
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