“O funk cantado por mulheres é libertador”: confira nossa entrevista com Deize Tigrona

22/03/2024

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Por: Erick Bonder

Fotos: Lau Baldo

22/03/2024

Deize Tigrona, a lenda do funk carioca, acabou de lançar seu terceiro álbum Não Tem Rolê Tranquilo, com participações de BADSISTA, Boogarins, Iasmim Turbininha, LARINHX e KD Soundsystem. Dois anos após sua volta à cena com Foi Eu Que Fiz, pelo selo Batekoo Records, a compositora chega com um trabalho independente e extremamente pessoal.


“Eu estou acompanhando, eu estou realmente crescendo e estou vendo vocês crescerem junto comigo”, declarou Deize sobre a produção em colaboração com artistas da nova geração e a busca pela atualização constante de sua sonoridade. Não Tem Rolê Tranquilo chega às plataformas de streaming com letras no melhor estilo da Tigrona, sem pudores para expôr suas próprias vivências e para abordar temas como prazer, desejo e sexualidade.

Na última sexta-feira, dia 15/03, fomos ao show de Deize, no Agulha, em Porto Alegre, onde estava acompanhada pelo DJ Chernobyl, e trocamos uma ideia sobre seu novo álbum e sua história de pioneirismo no funk. Abaixo, confira a entrevista completa.

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De certa maneira, Não tem rolê tranquilo consolida a segunda fase da sua carreira. O que você tinha em mente ao conceber o álbum? 

São coisas da vida. E também uma parada de experiência de pista, ouvindo outra galera. São muitas situações, vivências, então a necessidade de lançar o álbum foi também para aumentar o setlist. E eu queria uma mudança, uma atualização em relação aos beats, a escrita, as melodias. Me peguei nessa necessidade de juntar, no Não tem Rolê Tranquilo, o romance, o house, a “Viagem no tempo”, com o Boogarins, a favela, com Iasmin Turbininha, em “Meu vilão”. E tem o grito pra gringo, “BCTNH PLOC PLOC”, que eu estava na Europa quando escrevi. Aí eu pensei no verso “vem que vem sarrar na glock”, priorizando a voz, a melodia, como foi em “Injeção”. Então, teve essa necessidade de experiências, vivências, de enriquecer e mostrar que sei fazer. Estudar para poder fazer algo maneiro, porque eu acho que, por mais que eu seja uma compositora que vem lá de trás do funk, antes disso, eu escrevia poesia. Eu queria ser atriz, modelo. Queria ser artista de qualquer jeito, então quando eu escrevo poesia e vou para o funk e do funk eu conheço um outro mundo, que é Europa, com outros produtores musicais, acaba rolando essa visão de mudança, do novo. E acho que hoje as plataformas, os aplicativos que fazem essa distribuição, também fazem a música mudar. O Foi Eu Que Fiz e o Não tem rolê tranquilo vem com essa necessidade de desenvoltura no setor. Eu estou acompanhando, estou realmente vendo vocês crescerem e eu estou crescendo junto. E quem está crescendo agora, me vê como uma referência lá de trás. Então, vamos ampliar essa arte, esse gênero, trabalhar com a galera da atualidade, da produção. BADSISTA, LARINHX, Iasmin Turbininha, Boogarins. Essa é a necessidade do álbum novo. Eu entendo a pergunta de vocês, não só pelo título, mas também por querer saber porque vem um álbum tão pouco tempo depois do outro.

Foi um período curto, mas ao mesmo tempo, os dois álbuns tem uma sonoridade bem diferente entre si, apesar de ter características marcantes da tua música. Os produtores também trazem essa mudança. Como você escolheu essa galera? 

Amo muito. Eu gosto de música eletrônica, house, ir até de manhã na ferveção, a fritação. Adoro isso e BADSISTA faz isso faz isso muito bem, tem muita desenvoltura, está em todo o mundo, no Brasil, na Europa e é isso que eu também sigo. Eu gosto disso. A LARINHX me pegou pelo pé, real. Quando eu vi as composições dela e a produção, quando ela lança “Eu gosto de garotas” e me convidou. Ela tem um lado sensível. Eu estava pra lançar um EP de três faixas no mês dos namorados e acabou não saindo, mas uma delas era “Prazer Sou Eu”, que a LARINHX já tinha produzido. E aí acabou que saiu no álbum agora. Depois, comecei a escrever “Massagem”, que é uma outra sensibilidade em relação à paixão. “Massagem” na real é uma mistura do “Sadomasoquista” com uma massagem tântrica. E aí conforme a melodia e tudo mais foi ficando pronto, eu pensei que precisava da pegada da LARINHX. Adorei essa poesia: “De bruço ela tem minha alma/ De frente ela tem minha vida”. E tem “LSD”, que é uma escrita dela e que eu falei, “Nossa, você tem que você tem que vingar isso, essa música não pode lançar e parar por aí”. A Iasmim Turbininha eu já queria que participasse do meu álbum há bastante tempo, desde a época da Batekoo, no Foi Eu Que Fiz. Não sei por que não rolou, mas aí agora eu falei: “Vou atrás, porque eu preciso realmente de uma batida de favelão e eu quero a Iasmin Turbininha aqui porque ela manda muito bem”. Aí ela topou e saiu “Vilão”. O Boogarins foi uma parada do São Paulo Fashion Week, fui convidada, depois teve um after com sushi humano e tudo mais. Nossa, foi uma loucura. Aí, eu voltei lá atrás naquele tempo para poder compor “25 de Abril”.

Deize, você é pioneira em vários aspectos. Começou no funk, quando o próprio funk estava no começo e ainda era um gênero muito mais marginalizado do que hoje em dia, era até tratado como não sendo música. Mesmo que isso ainda aconteça, a gente vê o funk sendo reconhecido não só pelo público, como também pela crítica e pelo mercado. Como é que você enxerga essa mudança?

É, eu iniciei no finalzinho de 1997, mas antes disso já tinha o funk melody, com Mc Cacau, Marcinho, Claudinho e Bochecha. E aí começou o Baile de Briga, o Baile de Corredor. No finalzinho de 97 tem esse lance de uns DJs do Rio, da Cidade de Deus, o Duda e o Marcos, chamarem no microfone dizendo que iriam produzir e queriam alguém que tivesse alguma voz. Como eu já escrevia poesia, já tinha escrito também uma música, fui lá, gravei e isso deu abertura para outras meninas também. Elas se influenciaram por isso e viram como referência, achando que era uma coisa um grito para elas. E aí se formou o Corredor das Meninas, no Coroado da Cidade de Deus. De repente, o Baile de Briga acabou e os meninos também passaram a vir para o Baile do Coroado. Então começou a vir galera de fora fazendo também os bailes funk na comunidade e com isso despertando  essa desenvoltura de outros moradores cantando funk. E mais à frente a gente vai vendo as coisas acontecerem. O funk começa a ir para o asfalto, começam a vir as produtoras e as gravadoras de fora, tipo Furacão 2000, Big Mix. Essa galera começa a vir pra comunidade para ver o que tá acontecendo. E aí, o Marcos e o Duda, que tinham a gente lá no Coroado, não souberam o que fazer, porque foi muito sucesso, né? Por exemplo, “Cavalo de pau”, “Cerol na mão”, isso é tudo da época do Coroado. Todo mundo que a gente canta já tem três décadas. E isso tudo nasceu lá na minha época, no Corredor das Meninas. A gente começou a ver isso evoluindo. De repente veio o Diplo, usando o sample de “Injeção”, com a M.I.A, veio esse lance do primeiro convite de ir pra Europa. E eu vejo isso realmente como um ponto positivo, porque, querendo ou não, o funk tá no giro capital. E é um dos gêneros mais populares, com quem até o sertanejo, o pagode procura fazer feat.

 

De que maneiras o preconceito contra o funk ainda resiste no meio cultural? 

Ainda existe esse preconceito e eu vejo que, no Brasil, isso vem do fato do país ser racista. Tem essa diferença entre a composição feita à beira do mar, com violão, e o funk, com batidão, da favela. Entende? Então é tipo assim: está com violão, na beira do mar, é poesia, mas dentro da favela é marginalizado. Até hoje. Ainda sou chamada para palestras, para falar sobre o funk e sobre esses preconceitos ainda que existem. Na minha época, muitos meninos foram detidos, presos por cantar proibidão. Um proibidão que é praticamente um filme do Pablo Escobar não pode ser cantado. Os garotos na favela cantando uma vivência ou então algo que viram em um filme, isso não pode. Mas tem um monte de filme de faroeste em que os caras roubam banco, vendem droga e isso é considerado arte, isso pode. Toda vez que falam da minha arte, que é putaria, isso e aquilo, eu digo que tô escrevendo um roteiro para uma grande artista interpretar. Essa resistência do funk é algo sem igual. E essa mudança foi boa, mas infelizmente ainda há palestras para falar sobre isso, sobre essa questão do preconceito. Mas hoje o funk não é aquele lance só do cara que carrega a caixa de som, da tia que vende cachorro quente. Hoje funk é o style, é o cabelo, é a make, é a casa de show no asfalto, é a favela e é o mundo, está sem fronteiras.

Falando nessa coisa das fronteiras, tu foi uma das principais responsáveis por internacionalizar o funk ao longo do tempo. Como é esse lance de ver gringo sampleando e gringo chamando funkeiro para feat? 

Eu vejo como uma coisa boa. Porque o mundo existe e é óbvio que a gente quer ir para lá e para cá. A gente quer ocupar esses espaços que também são nossos. Como é que se fala? É descolonizar. Então, é um espaço que é nosso. O fato é que isso é que paga o meu dinheiro. Inclusive, muita gente que fala que o Diplo não me pagou pelo sample. Mas pagou, sim, só que foi para o DJ Marlboro e ele sim que não me pagou, porque disse que o Diplo usou um sample do beat e não a letra de “Injeção”, entendeu? Essa história é mal contada. Ele pagou e o Marlboro, que não me repassou. E assim, hoje eu posso falar isso abertamente, porque até então eu não estava entendendo porque a galera falava que o Diplo tinha me roubado, quando na verdade não foi isso.

Outro sentido do seu pioneirismo é falar sobre sexo e sexualidade, naquele momento em que não era tão aberto a esses assuntos quanto hoje. Mas, ao mesmo tempo, tem uma galera que enxerga isso como simplesmente vulgar, como se o sexo, a putaria, não fizesse parte da vida e como se não tivesse também um sentido político por trás dessas letras. Pode comentar a respeito?

Quando a gente iniciou, não tínhamos essa noção de que a gente estava reivindicando um feminismo. A gente não tinha essa noção de que seria um ato de empoderamento feminino. Não rolava essa noção dessa política feminina. Mas o funk cantado por mulheres é libertador. Ele é um grito de ousadia, de liberdade. O funk , quando é cantado por mulheres, incentiva a mulher a denunciar o abuso, a ter coragem. Então o funk é visto realmente nesse empoderamento feminino, ele é um ato político, ele é um ato de coragem, uma coisa que instiga, uma referência para para outras mulheres, não só dentro da comunidade, mas também no asfalto e até mesmo em outros estados, outros países. Mas é como eu já tinha dito para você lá atrás: quando eu, mulher preta, tô fazendo funk dentro da comunidade, ele é visto como putaria, mas quando vai para o asfalto e é feito por uma mulher branca, herdeira e tudo mais, aí vira poesia, entendeu? Então assim, é pesado, porque a mulher branca que está cantando funk, ela vê a gente como referência. Mas será que elas são abordadas em relação a escrita delas no funk, questionadas como nós somos, quando elas conseguem uma mega produção no funk? Elas vêm cantando, “Toma, toma, hoje eu vou sentar, hoje eu vou quicar, hoje eu vou dar”, e isso é poesia. Mas se sou eu, aí é putaria.

Quais são os planos agora para esse novo álbum?

É uma loucura lançar um álbum. Peço até desculpa aos meus fãs se acharem que os vídeos, as fotos, não tão bem, mas é para mostrar realmente que esse rolê é independente, entendeu? Isso foi até uma questão minha e da minha produtora ali. Mas o plano é buscar espaço nos festivais, mostrar que realmente há uma artista aqui, que elabora, que cria, faz coisas certas, coisas erradas, mas também aceita opiniões e trabalha junto. O plano é que a recompensa venha em capital, para a gente poder fazer melhor um visual melhor. Mas o que eu quero, principalmente, é que a galera que goste e sinta, que dê a crítica positiva. E também seguir nas artes plásticas, que agora eu estou lançando o “Livro de Pau” lá no Rio, estou terminando a edição física. E vou continuar tentando conquistar o mundo, vivendo e aprendendo.

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22/03/2024

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