_por Cris Lisbôa
Eu não ouço CDs. Sério. Na vida real, assim, por minha escolha, em casa de bobeira, não ouço. E nem vem com aquele papinho chato de “ah, mas você não é editora de uma revista de música?”. Porque é exatamente por isso. Passo meus dias com pilhas e mais pilhas deles. A cada mês converso com os colaboradores sobre lançamentos, escolhas de repertório, caminhos, acertos, desastres. Tenho, inclusive, pesadelos em que bolachinhas prateadas invadem a minha casa e afogam Caio Fernando Abreu, meu gato de 14 quilos. Mas ouvir porque eu quero, não. Porque não sei você, mas gosto de escutar com os olhos. Embora me encante uma voz melodiosa dentro dos ouvidos ou a possibilidade de colocar pra tocar aquela canção no exato momento em que ela deve entrar em cena (Trilha sonora na vida. Quem nunca?), o que me espanta/apaixona é escutar o que pode ser feito enquanto observo. Porque o que está ali, guardado nas faixas invisíveis, pode ser pouco demais. Bonito, é verdade. Bem-feito, pode ser. Mas minúsculo diante do que certas pessoas são capazes de fazer.
Nos últimos dias, Porto Alegre me confirmou esta teoria. Em uma quinta-feira quente demais para maio, Tulipa Ruiz finalmente levou a turnê de Efêmera, seu primeiro disco, para o Opinião (onde já estiveram Bob Dylan, Primal Scream e outras lendas más) e provou por a + b porque mesmo é festejada por público e crítica. Ao mesmo tempo. Dona do próprio dom e acompanhada de uma banda que trabalha junto como a família que de fato é (o pai e o irmão, dois músicos sensacionais que a acompanham), ela dá-se a luxos. Inverte arranjos. Mostra uma versão realmente inédita de “Da Maior Importância”, aquela em que – se não me falha a memória – Caetano fala “Porque eu sou tímido e teve um negócio de você perguntar o meu signo quando não havia signo nenhum”. E fecha os olhos por longos minutos enquanto sorri. Pois o público estava cantando alto o tal bom som, palavra por palavra daquelas canções que ela fez no quarto, na sala, no bar. Também projeta umas bonitezas ao fundo, provoca danças incontroláveis e deixa claro e cristalino que o CD é coisa linda mesmo, mas é vendo ela sorrir que o canto da sereia acontece.
Na sequência, e no mesmo palco, Mariana Aydar chamou. Acompanhada de Cavaleiro Selvagem Aqui Te Sigo, seu 3o CD, a moça refaz os caminhos do cancioneiro brasileiro para pessoas que até ontem só ouviam o que mandava o hype. Com elegância desfila afrobeat, música nordestina e outros sons que o coração verde-amarelo conhece sem precisar de grandes explicações teóricas.
Ganhou quem ainda desafiava a madrugada, improvisou bonitezas com voz, banda e músicas que mesmo quando não conhecidas de cor e salteado passaram a existir em voz alta. Como bem resumiu a moça que tirou o salto para dançar. “Acho que ela me hipnotizou.”
Dois dias de outono com final de tarde dourado despues, Filipe Catto – Disco do Ano, Intérprete de MPB e Disco de MPB no Açorianos 2012 – mandou abrir as cortinas do Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Fui apreensiva, te confesso. Era o espetáculo que no começo do ano tive a honra de assistir em um absolutamente lotado auditório do Ibirapuera. E você sabe que ver o mesmo show, filme, peça de novo é como voltar para um ex-amor. Pode ser que não dê certo. Quase nunca dá. Pois deu. O palco da turnê de Fôlego, seu primeiro disco, estava completo, cenário (palavras e coração feito de luz e sombra), figurino (com direito a um casaco Elvis Presley branco com fundo vermelho com o qual sonhei a noite toda) e, você me perdoe dizer isso, mas não encontrei palavra a altura para dizer o que é preciso: fôlego. Banda rock ‘n’ roll, bebê, forte, funda, larga, confiante do que estava fazendo. Em volta de um intérprete que segura o público entre os dedos, deixa escorregar quando quer, puxa de volta, faz da emoção uma marionete levíssima. Em algumas canções – como na linda versão de “Nescafé”, da Apanhador Só, era possível ouvir uma e outra lágrima caindo tal o silêncio respeitoso para que fosse possível compreender de fato as palavras da canção. Em outras, como “Saga”, braços e pernas mexendo-se em ritmo certo. No final, 8 minutos de aplausos e desconhecidos sorrindo uns para os outros.
Quase domingo e entro em táxi laranja – em POA todos os táxis são laranjas – pensando que se o disco morreu e o CD tá com pé na cova, temos mais é que comemorar. Porque podem estar de volta os bons velhos tempos em que se saía de casa para ver e ouvir um músico obedecer a Nietzsche e de frente para o seu público tornar-se o que é.
Não, não me mande seu CD. Mas pode me chamar pro show. (:
@crislis é editora-chefe da Revista Noize e de gênio uma cachaça, mas de alma um guaraná.