Quem hoje vê milhões de plays se acumulando nas plataformas de streaming talvez não imagine o tamanho do corre de Fabrício Soares, o FBC. Durante os quase dez anos que se passaram entre a sua primeira faixa lançada, em 2010, e o lançamento do segundo disco, PADRIM (2019), o artista mineiro trabalhou com faxina, vendendo água no sinal, varrendo rua.
O EP de estreia, C.A.O.S. (2013), foi prensado em CD e vendido por ele de mão em mão, a R$5, no Duelo de MC’s, em Belo Horizonte. Aos poucos Fabrício foi se tornando mais conhecido, não só nas batalhas de rima, mas também por ter sido membro do DV Tribo, grupo no qual cantava ao lado de Djonga, Clara Lima e Hot e Oreia.
No entanto, foi como artista solo que se consagrou. Referenciando a capa de I.N.R.I. (1987), álbum de estreia da banda de metal mineira Sarcófago, o primeiro disco de FBC – S.C.A. (Sexo, Cocaína e Assassinatos) (2018) – tornou-se um clássico instantâneo do rap mineiro. Porém, como o artista conta no papo a seguir, foi no sucessor PADRIM que a maturidade chegou.
Como era o bairro em que você nasceu?
Nasci na região metropolitana, em Santa Luzia, perto do campo do Cristal. Cresci até a minha adolescência perto do Colégio Caveirinha, o Afonsino Altino Diniz tem esse apelido porque, antes da praça que tem lá agora, era um cemitério. Isso nos anos 90, né? Nasci em 1989, cresci ali, que era onde meus avós maternos viviam desde quando vieram lá da roça, de Santa Maria do Suaçuí. Vivi lá até os 19 anos, desperdicei muitas oportunidades e fui tentar a vida lá no Barreiro. Aí conheci a minha esposa, comecei a trabalhar e o dinheiro que sobrava eu investia no meu rap. Depois, mudei pro Cabana.
Quando você começou a pensar sobre música?
Eu sempre fiz música, desde meus 10 anos de idade. Na escola, fiz meu primeiro rap. Tenho muito orgulho dele, falava que “os velho tá ficando sem remédio” [risos]. Sempre tive facilidade com a palavra. Acho engraçado que meu filho se parece muito comigo, com essa coisa de ter retórica boa e reclamar quando se sente injustiçado. Geralmente nossos primeiros conflitos com a imagem de pessoa no poder é com a professora, o diretor ou diretora da escola, que é quase um juiz, uma juíza, te mandando pra detenção.
Você teve muito esse problema quando era novo?
Ah, sempre fui um transgressor. Sempre fui mais por esse lado da malandragem, de fazer um dinheiro. Não ligava muito para as leis, entendeu? Tentar sobreviver aqui, viver ali, sem dar prejuízo pros outros, mas o que eu posso falar das pessoas que têm muito e têm mais do que precisam, né? Às vezes, a rua é cruel com a gente, mano. A gente às vezes faz o que tem que fazer, né? Quem falou isso foi o Chorão: “Às vezes faço o que quero, às vezes o que tenho que fazer” [risos]. Grande poeta.
E como o rap chegou na sua vida?
Com 14 anos, me envolvi com os movimentos estudantis. Comecei a ler alguns livros, a ouvir outros tipos de música… Do rock, fui entrando mais na música de protesto, até que comecei a entender o quanto o rap era uma ferramenta de trabalho dentro do local onde eu estava inserido.
Porque eu conseguia chegar em muito mais pessoas colocando um rap na caixa ou ou trazendo as referências do rap pro lugar onde eu vivia, que é uma grande periferia, a região do São Benedito, Asteca, Londrina, Baronesa, Palmital, São Cosme, Nova Conquista, Cristina A, Cristina B, Cristina C. Fui fazer rap, com meus 14, 15 anos, porque eu queria salvar o mundo. Mas eu já ouvia rap, já ouvia funk, ouvia axé. Sempre ouvi tudo.
Quando você percebeu que o rap era um caminho profissional?
Aconteceu em 2019, no álbum PADRIM.
Você começou a lançar bem antes, no seu Spotify tem faixas desde 2013.
Não, mas aquilo ali era só um hobby, né, pai?
E como foram esses primeiros lançamentos?
Pô, tendo que trabalhar no sinal, vendendo água, faxineiro de prédio, varrendo rua. Já trabalhei de muita coisa pra pagar um som honesto. É caro mixar, masterizar… O primeiro som de qualidade que lancei foi em 2010, com a Família de Rua [coletivo de BH], “Vende-se”, saiu no Som que vem das Ruas [coletânea]. Não sei se tem em streaming, mas estava no YouTube. O segundo som de qualidade que eu lancei foi “Meus amigo pixador” (2015).
No Spotify, tem faixas suas anteriores: “BH Estado da Mente” (2013), “Filho Bastardo” (2014), “Rapúdio”(2014)…
Não, mas esses aí eu nem compartilho, porque é uma qualidade muito ruim. É mais um registro, não é um som bom, não. Meu ouvido tá ficando meio absoluto, não sei, mas eu não consigo ouvir a música se a timbragem não estiver boa.
E o seu EP de 2013, o C.A.O.S.?
Mano, muito ruim [risos]. Não dá, não, pai. Não é nem uma coisa só minha, é muito ruim a mix, a master, o Coyote [Beatz, produtor] que fez. O Coyote, se estiver vendo isso, você tem que tomar vergonha na cara, pegar aqueles beats lá e remasterizar, mano [risos].
Aquilo é outros tempos, mano. Era o começo, ninguém acreditava. Eu lancei em 2013 no Duelo [de Mc’s], fiz mil CDs pra vender. Vendia a R$5. As pessoas falaram: “Mano, qualquer um pode lançar um álbum, o FBC lançou”. Fiquei pensando, será que eles estão me elogiando ou me tirando?
Mas é isso, quem quiser lança, faz seu corre, é difícil pra caralho, eu fiz mais pela ideia, tipo assim: “Cara, eu consigo vender água, pipoca, pra muita gente. Eu vou fazer um CD e vou vender o meu produto, eu sou bom nisso”. Por muito tempo, pensei que eu não “fazia” música, eu “vendia” música. Mas acredito que sou um cara que faz música.
De onde veio o sentimento de querer gravar seu som?
Não sei, acho que do estímulo das outras pessoas, mas até hoje eu tenho dificuldade de gravar. Eu consegui gostar de gravar em BEST DUO (2020), me senti muito inseguro em S.C.A. e em PADRIM. Mas em BEST DUO eu já tava com um sentimento de: “Foda-se, nunca vou deixar de experimentar”. Todo álbum meu é experimental, sempre vem da sensação de: “Deixa eu ver como é que soa assim”.
Teve um momento ali que você se chamava de “Filho Bastardo do Caos”, como foi isso?
Foi em 2013, 2014, quando houve as jornadas, acho que foi em junho de 2013. A gente ficou mais politizado, viajando mais. Foi aquela nossa época lisérgica, e a gente começou a estudar muita coisa. Teve uma coisa que fez sentido, que foram os escritos de Hakim Bey, tá ligado? Caos: Terrorismo Poético e Outros Crimes Exemplares (2003), sabe? Esse livro. Tanto que o grupo, antes de DV Tribo, o nome era Caos. Mas se autointitular Caos é muito genérico. Eu gosto muito dos temas que tem nesse livro, e peguei isso pra mim e me transformei no Filho Bastardo do Caos. Não tem coisa muito profunda, não. É sobre Hakim Bey mesmo e a nossa época de DV Tribo.
Teve essa época do DV Tribo, que você tocou com Djonga, Clara Lima e Hot e Oreia, até 2018, quando saiu o S.C.A., oito anos depois de sair a sua primeira faixa. Foi uma fase de profissionalização?
Eu ainda tô me profissionalizando, pai. Ainda vou fazer um disco profissional. Tudo que fiz é experimental, total independente. Todos os álbuns foram caseiros até O AMOR, O PERDÃO… (2023), que foi todo feito dentro de estúdio. Não era na minha casa ou na casa dos outros. Não era o Vhoor sentado no chão com os equipamentos em cima de um banco.
Falta muito recurso ainda. Falta muita coisa. Falta muita sabedoria da minha parte, muito conhecimento de execução do som pra fazer uma parada que eu fale assim: “Ó, pela ordem”. O AMOR, O PERDÃO… foi o menos experimental, PADRIM é total experimental, total lisergia. E eu de cara, só no oxigênio, eu tinha parado, fiz o álbum todo sem fumar [maconha]. No finalzinho, fazendo os retoques, as últimas pinceladas, eu voltei a fumar. Aí algumas ordens mudaram.
Como começou a relação com o Go Dassisti?
Foi no final de 2017, que loucura, ele até namorou uma amiga minha. É um cara que tem pai, tem mãe, sempre foi músico, fazia música eletrônica e tinha começado a fazer rap. “A Morte do Auto-tune”, do Matuê, é dele, tá ligado?
Fui na casa do Márcio Buzelin, tecladista do Jota Quest, aí eu fiz as notas de “Se Eu Não te Cantar”, e ele elogiou: “Nossa, essas nonas bonitas, tensiona e descansa”. Sempre falo: o Go é foda. Geralmente o cara que produz faz o pezinho de galinha, né? Fá, Sol. Fá, Ré. Lá, Ré. Dó, Fá. Mano, é só aquilo ali: um, dois. O Go, não. O Go cria acorde, um arranjo bonito, ele realmente pode falar que faz um tema pro beat.
E como nasceu o PADRIM?
Ah, mano, eu tava muito pra baixo com a ideia de que música não dá dinheiro. Tinha lançado o álbum, gastei uns R$9 mil pra lançar o S.C.A. Aí vai descobrindo como é a indústria, e a indústria é um abismo. Você olha para ela, ela te olha de volta.
Ali em 2019, eu fazia alguns shows, tava pra baixo. Todo mundo falando que eu tinha que lançar outro álbum, porque o S.C.A. foi um clássico instantâneo, e eu: “Que lançar, velho? Queria ter continuado a profissão de meia colher e, quem sabe, um dia eu ia ser pedreiro”. Pra mim a minha carreira ia ser de pedreiro, depois montar um lava-jato ou um boteco, e talvez, se eu fosse muito esperto, abrir uma empresa de construção. Era isso, a perspectiva que eu tinha era essa.
E o pessoal falando: “Faz, faz, faz”. Mas eu tristão, pá. Aí fiz PADRIM, falando o que eu tava sentindo. “Ah, vou tentar competir, vou tentar fazer esse som virar”. Divulguei o “15/11” [a data de lançamento], acreditando que fosse revolucionar. De certa forma, revolucionou. Mas da onde a gente vem, e o que a gente já fez pra sobreviver, o bagulho mesmo é ganhar dinheiro, pai. O bagulho mesmo é virar, não passar necessidade, conseguir investir nas coisas. É isso.
“A indústria é um abismo. Você olha para ela, ela te olha de volta”.
Quanto tempo levou pra fazer o disco?
Se for pôr na ponta do lápis, uns dois meses. Porque eu ia pra lá e ficava três dias. Fui umas quatro vezes, fora as vezes que eu ficava em casa escrevendo, né? Eu ia pra casa do Go [em São Paulo], mostrava pra ele uma referência. Na maioria das vezes, fui escolhendo beats já prontos que ele tinha. Eu chegava, escolhia um flow, ficava cantarolando, aí gravava e levava pra casa. Em casa, escrevia a música em cima do flow que eu tinha feito. Foi rápido, o problema é que não tinha dinheiro. Então eu tinha que esperar, era de três em três meses, de dois em dois meses. Mas o disco começou em 2019 e foi lançado em 2019.
E vocês exploram várias vertentes de beat no álbum, né?
Eu tinha ganhado um dinheirinho ali de S.C.A., e estava começando a entender como funcionava esse lance de loja, de playlist. Realmente, foi um álbum que eu fiz pra competir no mercado da música. Eu fiz clipe, tá ligado? Muita coisa eu estava experimentando pra tentar encaixar dentro de um conceito de se vender. Comecei a fazer no começo de 2019, ainda não era tão forte o trap, tá ligado?
É um álbum de trap. Mas quando você chega no final, você vê que o álbum não é sobre um jeito de fazer beat, mas sim sobre sentimentos que eu tenho, escolhendo os beats que combinam. Mas com essa ideia de sempre competir pra conseguir pegar uma playlist. Artista independente, o bagulho é esse. Eu tive a felicidade de acertar, mas não é sempre que a gente acerta, né? O PADRIM é a minha parada mais experimental. Tanto que tem um Club [“CAPA 3”] e depois um No Melody [“THC”], coisas que, aqui no Brasil, foram chegar distantes uma da outra.
As pessoas dizem: “Ah, a sua melhor música ainda é ‘Se Eu Não Te Cantar, FBC”. Mas tem um feat muito bonito com o Gee Rocha no final, em “Ode à Tristeza”. Pô, é muito experimental. Olha a discrepância que existe entre “$enhor” e “Se Eu Não Te Cantar. É como se mudasse a playlist na JBL. Parece que nem o cantor é o mesmo, nem o artista é o mesmo.
Sobre a capa, como surgiu a ideia de pegar essa foto sua antiga?
A primeira ideia seria que fosse um altar, e eu estivesse batizando alguém, ou o Go, ou a mim mesmo. Fui ver quanto custaria: “É isso? Não, vamos tentar outra coisa”. E meses antes, uma amiga de infância, a Karine, mandou essa foto do aniversário da Ana Paula. A Ana Paula não aparece porque eu estou na frente, tá ligado? Era na hora do “Parabéns”, ali tá todo mundo cantando: “Parabéns pra você…”, aí eu chego na hora de tirar a foto. A Ana Paula ficou com raiva de mim por muito tempo.
Eu considero a minha melhor capa, é a que eu tenho mais sentimento. A simetria, o skate longboard, a disposição das pessoas em volta da mesa, aqueles dois refrigerantes ali, que são característicos de BH e região metropolitana, é o suco da mineiridade dos anos 90. Aquilo é a infância de todo mundo da minha geração.
Comparando com o disco de estreia, que diferenças você nota no segundo álbum?
Em PADRIM queria falar de temas que eram pertinentes na época, mas de uma forma romântica. Falar sobre mim, do meu lugar, como que eu reagi às coisas. O S.C.A. foi mais uma mixtape, músicas que fui fazendo aqui e ali e depois juntei. Deu certo como álbum, pois a capa é muito boa e você vê que os temas são parecidos. PADRIM é mais introspectivo, pode-se dizer que eu falo abertamente sobre como eu me comporto. O disco já tem nome, é PADRIM, né? É sobre mim.
Eu tava percebendo, desde o S.C.A., que tudo que eu vou falar tem a ver com dinheiro, propriedade, correr atrás, estar difícil ou não estar tão ruim. É sempre essa condição. Mas sempre quis falar de outras coisas, que fossem mais sentimentos sobre a existência do que sobre a falta. Queria falar do que eu tinha, do que eu sentia, e fui tentando evoluir.
S.C.A. é um pouco debochado, com piadinha, sacadinha. E na maioria das vezes são assuntos muito sérios, tratando com naturalidade coisas que hoje eu não concordo e não pratico. O lance com droga mesmo, de abuso de drogas, ser irresponsável na saúde. Pô, eu penso sempre que eu sou um pai de família.
PADRIM foi a maturidade começando a bater mais, a doer mais. Porque a maturidade vai doendo aos poucos. No PADRIM a maturidade estava batendo demais, as consequências das escolhas eram muito mais tangíveis e a cobrança vinha muito mais rápido. Muitas vezes eu tinha que resolver comigo mesmo, isso é ser adulto, né? Morando de aluguel, com algumas coisas começando a dar certo e uma – quem sabe – possibilidade de mudar de vida, fazendo música, com pessoas no Brasil inteiro escutando. E o cenário também mudando, o midstream se consolidando.
Mas eu queria dizer alguma coisa. Queria mostrar que eu também sentia o clima que todo mundo tava sentindo, aquela ressaca de perder pra ideologia que o Bolsonaro trazia. Uma coisa que dava medo, e a gente muitas vezes se sentiu dividido, pensando se o que a gente tá pensando é o certo mesmo. Muitas vezes discutindo até entre nós mesmos. Tudo é política, né? Cargo é detalhe, o lance é ter poder de mobilização. O “15/11” é isso, pra mim tudo é isso. É um movimento popular. Você acredita, e eu acredito, então bora.
Fala mais sobre a campanha de lançamento do “15/11”. Você divulgou nas redes sociais essa data e chegou muito longe, né?
Pô, então, Marília Mendonça comentou, elogiou. A Anitta ouviu o “IPHONE” durante muito tempo. Foi crescendo. Mas uma crítica tentou queimar o álbum, uma galera mais bairrista, um pessoal de São Paulo. Porque a mobilização foi muita. Eu era inescapável, né pai? No 15/11, todo mundo sabia que era um lançamento de um cara aí chamado FBC. Talvez não soubesse que o FBC cantou com o Djonga, ou no Duelo de MC’s, mas sabia que 15/11 teria essa coisa aí.
Foi um pico no Spotify, quando lançou, foram 300 mil pessoas simultaneamente ouvindo. Pra uma pessoa independente, sem estar ali pagando playlist, coisa orgânica, falei: “Mano, foi um sucesso”. Hoje já é álbum de platina, tem mais de 60 milhões de streams.
Como você avalia aquele momento do PADRIM hoje?
Eu tinha acabado de comprar minha casa no morro do Cabana por R$45 mil. Ao mesmo tempo que estava muito feliz, estava muito inseguro pelo futuro, né? “Pô, como é que eu vou manter essa casa?”. Eu ainda não entendia a força que eu tinha de mobilizar e fazer as coisas.
Hoje eu tô muito mais tranquilo. Hoje eu acredito, abandonei um pouco a Síndrome de Impostor, né? Naquela época, era muito foda. Ainda mais sendo mineiro. As pessoas acreditam que Minas Gerais faz parte do eixo, mas não faz. Falar “uai”, ter sotaque, pessoal do eixo tira pra trouxa. Mineiro é sempre tirado pra roça, né?
É difícil, porque o rap é um som “urbano”, de metrópole, que é mais consumido por pessoas que estão nas grandes cidades e entendem os temas que estão ali. Questões sociais, questões sobre raça, gênero, luta, espaço, lugar de fala, os movimentos que acontecem pela luta pela igualdade, pela moradia. Aí você vai pensar no cara da roça falando, e o cara tem o flow do tio do interior, e você não vai dar atenção. Hoje as coisas mudaram, mas tinha muito esse tabu de que, se você veio de qualquer estado que não seja Rio e São Paulo, seu rap não traz tanta coisa pra mesa.
Minas se tornou um pólo do rap nacional, e você costuma comentar sobre como o sotaque tem uma musicalidade interessante.
É essa coisa de estender bem a vogal e de fazer a síncope, né? “Oncotô” [onde que eu estou], “onconvô” [onde que eu vou], “proncevai” [para onde você vai], entendeu? São instrumentos da rima. O mineiro tem essa coisa, mas até você ter autoestima pra olhar e falar que é bonito, aí é outros 500.
Cara, foi mais ou menos isso que eu tinha preparado. Tem algum outro assunto importante que a gente deixou de fora e você queria trazer?
Sobre PADRIM?… Pô, PADRIM eu fiz em uma época em que eu tava muito mal, mano. Muito mal. Estava me afundando cada vez mais no meu vício com cocaína, tá ligado? Era um problema nítido. Muitas portas profissionais se fecharam. Perdi vários amigos e amigas. Foi uma época em que eu sentia e via os olhares de muita gente, na cidade onde eu vivo, por conta da forma que eu estava me comportando.
Eu entendo o quanto as pessoas vibram e o quanto as pessoas esperam que a gente siga bem e faça o certo, sabe? Mas a vida nem sempre é assim, né? E nem sempre todo mundo reage da melhor forma. Eu tava muito mal. Até hoje choro muito quando ouço “MONEY MANIN”, “$ENHOR”, “SE EU NÃO TE CANTAR”, porque foi um álbum em que eu me apoiei muito pra poder continuar vivo.
Quem me conhece, meus fãs de 2013, do Duelo de MC’s, as pessoas que me acompanhavam no Instagram, no meus posts diários, elas viam e se preocupavam. Eu sinto que a gente tem essa afinidade por saber que eu não tava sozinho, que tinha outras pessoas que eram por mim naquela época. A gente ouve e lembra daquela época, e se sente feliz por hoje estar tudo bem, tá ligado?
Sim, é uma questão muito delicada, muita gente glamouriza, e sem moralismo aqui, mas é uma parada perigosa, né?
É, eu não sou ninguém e não gosto da ideia de julgar como as pessoas levam a sua vida. Acredito que tudo tem um espaço e um limite, que é o respeito do outro, o espaço do outro. E eu também não tenho controle, e não quero ter, sobre como as pessoas se comportam perto dos outros e o que elas provocam nas outras pessoas. Mas eu sei muito bem o que eu quero. E eu não quero vibrar de certa forma ou em certos lugares.
Então eu busco a paz que eu quero, a luz que eu quero, o sentimento que eu quero, a vibração que eu quero. Eu não entendo qual é a busca de cada um, mas eu vivi uma vida, outras pessoas vivem uma vida diferente, e o quanto elas conseguem se comportar diferente em situações semelhantes. Bem, eu não consigo, eu não me dou bem com a droga, e eu causava muito mal pras pessoas à minha volta. Se uma pessoa vive a vida dela, e as pessoas que estão com ela estão bem com isso… E mesmo se não, o que eu posso fazer? Eu não sou o SUS, eu não sou o Lula, eu não sou o Bolsonaro, eu não sou nada.
Eu sou um músico. Eu vim pro mundo pra errar, pra sentir, pra experimentar tudo que eu puder, e transmitir e transcrever isso em forma de arte, e – quem sabe um dia – isso vai fazer sentido pra outras pessoas. E é isso. Eu quero ser notado. A base de ser artista é saber que um dia você morre, que você tem que deixar sua presença, e que alguém respondeu o seu grito. A vida é isso. A vida é um grito, e quando ninguém responde a esse grito, você se sente sozinho. Eu não quero me sentir assim na maioria dos momentos. Se bem que tem hora que a melhor companheira é a solidão, né?
Esta matéria foi publicada originalmente na edição 143 da revista NOIZE, lançada com o vinil de PADRIM, do FBC, em 2023.
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