O MECAMaquiné 2018 em solo gaúcho era muito além de um retorno às raízes: era a oportunidade de se reconciliar com o público do Rio Grande do Sul, ainda marcado pela insegurança causada pela edição do festival em 2016. Dois anos atrás, o MECA acontecia na Fazenda Butiá, região metropolitana de Porto Alegre, em uma noite de frustração. Uma tempestade causou problemas estruturais, expôs fragilidades organizacionais e acabou no cancelamento das duas principais atrações da noite – Miami Horror e Oh Wonder – por falta de segurança o palco.
De volta a Maquiné, com várias edições bem-sucedidas pelo Brasil e com um line up robusto e eclético, o MECA esticou a mão para público do sul – que estendeu de volta e, a partir das 15h de sábado, dia 3, já tomava conta da Fazenda Pontal para aproveitar o festival desde cedo.
Às 16h, a SUPERVÃO abriu os trabalhos do palco principal. Com a pegada contemporânea, eletrônica, despojada e lisérgica, combinaram o set entre as faixas dos psicodélicos Eps Lua Degradê (2016) e TMJNT (2017). Às 16h50, foi a vez de Tagua Tagua inaugurar o Heineken Stage. Passeando pelo soul, música eletrônica e rock, Felipe Puperi apresentou faixas dos Eps Tombamento Inevitável (2017) e Pedaço Vivo, trabalho mais recente.
De volta ao palco principal, também de volta à lisergia. Dessa vez, comandada pela banda Catavento. Mergulhada em Ansiedade Na Cidade, elogiado disco lançado neste ano, os guris transportaram para o palco a atmosfera de escapismo, psicodelia e groove da turnê atual. Combinando com a lírica reflexiva, pós-moderna e urbana do grupo, uma projeção de uma bandeira do brasil na vertical, com outras cores no lugar do habitual verde-amarelo-azul e com um “cancela” no lugar de “ordem e progresso” ficou exposta durante todo o show.
Ao vivo, desde faixas mais pesadas e introspectivas como “Panca Úmida” até as mais dançantes como “This Is Life/Corre”, passando por “Alergia, Alergia” e “Leve Agora Mesmo!” ganharam uma interpretação ainda mais lo-fi e rasgada. As guitarras rápidas embalaram um público crescente e dançante que, iluminados pelas luzes do palco, cortavam um céu cinza carregado por nuvens. “Deus Online” encerrou o set da Catavento cheia de distorção e fritação.
No Heineken Stage, as atrações continuavam à moda da casa com duas bandas gaúchas: Alpargatos e a Cuscobayo. A Alpargatos subiu ao palco toda de vermelho, cor predominante da nova fase encabeçada pelo EP O Chão É Lava (2018) que orientou a performance no festival. Já a Cuscobayo chegou com sua dançante mistura de indie-folk-reggae e forte influência platina para encerrar as atividades do palco alternativo sem deixar ninguém ficar parado.
Nos intervalos entre as duas bandas, o palco principal não ficou vazio. Na verdade, ficou bem ocupado pelos 10 integrantes da Trabalhos Espaciais Manuais – devidamente trajados com seus macacões. Não importa se você já era fã de carteirinha, se você só tinha ouvido falar sobre ou se nem fazia ideia de quem é a T.E.M. – ou se os Manuais vem antes ou depois dos Espaciais: a partir das 19h20 a plateia inteira embarcou no que seria uma viagem irresistível aos cosmos.
Guiados pelo disco de estreia T.E.M. ‘18 (2018), eles abriram a noite e comandaram um verdadeiro baile que não pegou ninguém desavisado, afinal a banda fez questão de anunciar que “faz de tudo pras pessoas dançarem”. A performance empolgante dava forma à atmosfera marcada pela fusão de instrumentos e ritmos e, porque não dizer, entre banda e plateia.
O público se rendeu, fez a festa acontecer e dançou como nunca e de todos os jeitos – de olhos fechados em suas próprias vibes; de jeitos desengonçados; em grupo; descendo até o chão e subindo junto com os integrantes da T.E.M. ou mesmo imitando um dois pra lá, dois pra cá e pézinho pro alto coreografado pela banda. Ao final, a T.E.M. se despediu nos deixando sem fôlego, querendo mais e marcando seu nome como um dos destaques do evento.
Às 21h foi a vez de Rubel subir ao palco para fazer um dos shows mais esperados por uma plateia repleta de fãs. Desde o primeiro momento da entrada, em que chegou reverenciando o público com as mãos juntas, ele deu o tom do que estava por vir. Com o íntimo e aconchegante Casas (2018), Rubel rompeu o silêncio com “Colégio”. Acompanhado de uma banda super afinada – com destaque para o desempenho do trompetista – ele fez da união entre synths, cordas e sopros uma das forças da sua apresentação, que fazia o público começar a soltar o corpo.
Com um seteno “Boa noite, MECA”, Rubel já emendou para “Pinguim” e, sozinho no palco com o seu violão, relembrou a fase mais folk do disco Pearl (2013). Assim que anunciou a faixa “O Velho e o Mar”, despertou gritos do público, que quebrou a timidez e cantou verso a verso. O mesmo ocorreu na sequência com “Ben”. Surpreendendo as expectativas, Rubel dispensou o clima intimista na hora de cantar o hit “Quando Bate Aquela Saudade”, em uma roupagem mais Casas, anunciada pelo trompete. Logo após, mais do presente trabalho com “Casquinha” e “Mantra”.
Em mais um momento de interação com a plateia, Rubel declarou: “Não à homofobia. Não ao racismo. Não à mentira. Não à tortura. Não à ditadura”, convocando uma das pautas mais clipantes entre os artistas desta edição do MECA: a resistência. A declaração, num tom de compromisso social, não trouxe nenhum tipo de peso pro momento. O que reinou durante o show do cantor carioca foi o acolhimento, a sensação de plenitude e de afeto – indispensáveis para quem precisa resistir, não é mesmo? A romântica “Partilhar” encerrou a apresentação, momento marcado por beijos entre casais e declarações entre amigos na plateia.
Perto das 22h, foi a vez de SASKIA performar perto do espaço apelidado de igrejinha. Em uma apresentação lotada, quem não estava na primeira linha não conseguia enxergar a artista, que era reconhecida pelas suas distorções, seus beats e sua voz entre luzes vermelhas. No mesmo horário, começaram os trabalhos nos clubinhos – ambientes paralelos pelo terreno da Fazenda Pontal comandado por DJS e iniciativas da cena de música eletrônica de Porto Alegre, como a Fennda e o DOMA. A galera comandou a fritação até às 7h.
Às 22h30 foi a vez de Silva. Sua entrada foi recepcionada por um áudio em espanhol que enunciava instrumentos do samba, como pandeiro, cuíca, agogô e tamborim; era o anúncio da atmosfera da turnê de Brasileiro (2018). “Nada Mais Será Como Era Antes” foi a primeira do set e já recebeu a recepção devota de uma plateia cheia de fãs.
Com a destreza de quem já acumula bons discos na carreira e um público fiel, Silva não deu arrego: foi música atrás de música, sem papo com a plateia. “Let Me Stay”, “Caju”, “Guerra do Amor”, sempre acompanhadas pelo público, até o primeiro momento fora de Brasileiro: a canção “Feliz e Ponto”, do disco Júpiter (2015), que foi sucedida por “Não Vá Embora”, de Marisa Monte.
Silva era impecável na afinação e nos teclados. O sorriso acolhedor, as luzes em tons de rosa, azul e laranja e a vibrante performance da banda preenchiam o palco principal do MECAMaquiné com a aura do cantor – com todo o amor de canceriano e toda a leveza e calmaria de capixaba que nasceu de frente pro mar. Com um público cada vez mais encantado, o show foi se encaminhando pro fim com a mesma entrega nas gostosas “Duas da Tarde”, “Fica Tudo Bem” e “A Cor É Rosa”. A surpresa ficou com a escolha do encerramento com “Janeiro”, de Vista pro Mar (2014). Com um “Obrigado, boa noite”, Silva se despediu.
Os ansiosos foram ajudados pelo horário de verão: depois de 23h59, os relógios já apontavam para uma da manhã, anunciando a chegada da atração internacional da edição: Warpaint.
Theresa, Emily, Stella e Jenny subiram ao palco animadas e sob luzes roxas e azuis e já abriram com “The Stall”. Empolgada, Theresa, em nome da banda, se arriscou no português e mandou um “obrigada”, “como vocês estão?” e “nós te amamos”, ganhando a plateia pela simpatia.
Warpaint (Foto: Vinícius Angeli)
Com 14 anos de carreira, a banda construiu um setlist focado mais no álbum mais recente Heads Up (2016), mas contemplou sucessos de Warpaint (2013) e até pérolas do EP de estreia Exquisite Corpse (2008), como a faixa “Beetles”.
“Loves Is To Die”, uma das faixas mais famosas da banda, foi sucesso absoluto no coro que acompanhava as vocalistas. Os reverbs, os synths, e as melodias davam o tom shoegaze e dream pop que tomava conta do MECAMaquiné – o que não significa que a apresentação foi intimista. As vocalistas e guitarristas Theresa e Emily se divertiam em momentos de danças e de conversas e carinhos com o público. Emily contou que no instagram oficial da banda, o que elas mais recebiam eram mensagens de “come to brazil!”.
A apresentação não foge do que se espera de um show de rock, mas longe de ser monótono. A espontaneidade e a fluidez do setlist criaram uma aura envolvente e capaz de encantar os fãs mais recentes até os de longa data, sem deixar o público que conhecia a banda na hora de fora.
“So Good” e “Above Control” deixaram a performance com mais cadência. Logo após, elas anunciaram que o show estava próximo do fim – o que foi recebido com lamento. “New Song” e o hit “Disco Very” coroaram o fim da apresentação potente – girl power! – das headliners do festival.
No meio da madrugada, por volta das 3h, outro nome forte do festival aparecia no palco principal do MECAMaquiné: Teto Preto. O live jam eletrônico-orgânica se anuncia pouco pouco, primeiro através do noisey violento e da experimentação inicial comandada por Savio, Zopelar e Bica, na cuíca e percussão. Logo surge ao fundo o dançarino-entidade Louic Koutana e assim o teto vai se escurecendo até a chegada de Angela Carneosso com um figurino com estampa militar e a sua presença insubmissa e antropofágica.
É sempre difícil colocar em palavras o que se assiste em uma apresentação do Teto Preto. É meio show, meio performance, meio intervenção. É dança, é música, é teatro. É, sobretudo, arte no sentido mais subversivo do termo. Gradualmente, Louic vai tirando as amarras de seu figurino inicial até fica só de calção. Quanto mais a noite adentra no ritual do grupo, mais ele e Angela se conectam. Em jogos de luz e sombra, essas duas personagens vão se confundindo cada vez mais com entidades. As drummachines pesadas, os cantos e recitações incômodas e provocativas tiram o público da zona de conforto.
A performance é complexa e completa. Por mais que os synths e a vibe eletrônica endossem você a fechar os olhos para sentir a vibe, é quase impossível piscar e não ater-se a cada momento do que se mostra no palco. O hit “Gasolina” foi um dos pontos altos da apresentação, convocando o coro da plateia.
Mas foi em “Bate Mais” que vimos um dos momentos mais viscerais do show em uma das canções mais rasgantes do grupo. Denunciando as violências do sistema, Angela Carneosso evoca os nomes de “Matheusa” (modelo queer assassinada brutalmente no Rio de Janeiro neste ano) e “Marielle” (vereadora executada no Rio de Janeiro também neste ano) e visivelmente se emociona. Do quase choro, ela transforma dor em motor da sua performance. Ao final, declarou “Tá na hora do indie deixar de ser chapa branca”, encaminhando o encerramento da sempre impactante apresentação.
O duo de Djs Selvagem, formado por Millos Kaiser e Trepanado, foi responsável por cuidar da noite e recepcionar o amanhecer no festival, com um set recheado de canções da música popular brasileira em roupagens eletrônicas.
Selvagem (Foto: Helena Yoshioka – I Hate Flash)
Com a música e a lua atravessando a noite e invadindo a manhã, o MECAMaquiné se manteve de pé até o fim em uma edição que traz novos ares para a região sul. Com adesivos LGBTfriendly e com artistas trazendo releituras da bandeira do Brasil, bandeiras LGBTS e discursos políticos, podemos esperar que onde a música ecoar, haverá resistência.